100 Anos de Lênin: a Melancolia de uma Utopia
“Hoje, o fim do comunismo interrompeu essa dialética entre o passado e o futuro, e o eclipse das utopias engendrado por nosso tempo ‘presentista’ quase extingiu a memória marxista”
Enzo TRAVERSO,
Melancolia de Esquerda: marxismo, história e memória, 2021, p.16
Se o século XX ficou marcado pela emergência das revoluções em todo o mundo, o nosso século XXI parece ser subordinado ao colapso do imaginário político e utópico, como um “eclipse geral das utopias”. Nosso imaginário constitui-se, então, pela máxima de Fredric Jameson que ganhou destaque através das reflexões de Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Enquanto “esquerda radical”, nosso horizonte de expectativas é decrescente e o comunismo já não é uma utopia reguladora, como se tivéssemos abdicado do princípio blochiano de esperança por um certo princípio de responsabilidade voltado para a minimização dos estragos do avanço neoliberalista do progresso. “A expectativa desapareceu, enquanto a experiência tomou a forma de um monte de ruínas” (TRAVERSO, 2021, p.31) – o que nos coloca na mesma posição do Angelus Novus de Klee, apresentado por Walter Benjamin como “um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. […] Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade […]. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro […]. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade” (BENJAMIN apud LÖWY, 2005, p..87). Nesses 100 anos da morte de Lênin que se completam em 21 de Janeiro de 2024, quais são as reflexões que nos tomam? Em que medida seu legado nos alcança e a que medidas ele ainda nos impele com sua atualidade? Qual é a circunstância da melancolia de esquerda neste quadro?
Com a atrofia da imaginação política, parece que encurtamos nossos horizontes até se tornarem prazos de validade e abdicamos do nosso comprometimento com a práxis revolucionária que visa transformar o atual estado de coisas em ordem. Contra essa esquerda melancólica que parece ter sucumbido fatalmente à hegemonia do capitalismo tardio e aceito de maneira resignada seus dogmas neoliberais, nos parece que ainda há centelhas de esperança que nos tomam e fazem arder hoje a potencialidade dos projetos políticos elaborados por Lênin há um século.
As revoluções do século XX possuem uma dinâmica que podemos chamar de “dialética da derrota”, que passa pelas interrupções dos caminhos que até então pareciam certos e garantidos (como acreditavam e ainda acreditam alguns marxistas vulgares, plenos de mecanicismo e teleologias progressistas). Podemos entender que o movimento das revoluções é intermitente; que ele avança, regride e salta para, aparentemente, recomeçar do início, mas com um aprendizado obtido pelas suas derrotas anteriores. A interrupção deve ser vista como uma abertura de novos possíveis. Nem sempre se trata de avanços ou de acúmulos que nos direcionariam à melhorias certeiras, mas de sermos capazes de avaliar de maneira ponderada a nossa situação à luz de todas as tentativas fracassadas.
A derrota dos projetos, a morte dos vencidos, o fascínio dos ditadores e a escassez de propostas alternativas são o material necessário para uma terra fértil para o constante ressurgimento dos fascismos que se apresentam agora na roupagem da nova extrema-direita. Com o colapso do socialismo de Estado – a degeneração burocrática da Revolução Russa sustentada pelos círculos stalinistas -, a “época de ouro” do capitalismo surgiu como uma onda de entusiasmos, com grandes expectativas para o que viria a ser essa nova razão do mundo em que vivemos hoje. “A queda do Muro de Berlim simboliza uma transição na qual velhas e novas formas emergiram juntas. Não foi o mero reaparecimento da velha retórica anticomunista.” (TRAVERSO, 2021, p.25), por outro lado, o fim da URSS também nos mostrou que o marxismo oficial não era o único marxismo possível, e hoje vemos essa pluralidade se expressar como partes necessárias de uma totalidade: os movimentos feminista, negro, LGBT, o movimento dos estudantes e dos ambientalistas. Todos eles nos apresentam a atualidade do marxismo e dos projetos comunistas, além de elevarem o mínimo exigido de qualquer programa político: que sejam antipatriarcais, antirracistas e abolicionistas, anti-LGBTfóbicos e ecossocialistas/ antiprodutivistas e que tenham na juventude a sua potência de constante renovação e atualização para as novas gerações. É somente com essas propostas de alternativas diante do mundo em crise é que podemos esmagar o fascismo, presente até mesmo nos valores de uma certa esquerda ainda ressentida com o fim histórico do stalinismo.
A melancolia de esquerda deve ser tematizada entre todos nós para que sejamos capazes de repensar a ideia de socialismo que temos hoje. Isso significa “repensar o socialismo em uma época em que sua memória está perdida, escondida e esquecida, precisando ser redimida. Essa melancolia não significa o luto de uma utopia perdida, mas um esforço em repensar um projeto revolucionário em uma era não revolucionária” (TRAVERSO, 2021, p.53).
Se ainda recuperamos hoje a figura de Lênin, é porque há possíveis ainda não realizados que aprendemos com ele. Contra o luto eternizado sobre sua figura, contra a celebração daqueles que acreditam comemorar o fim de sua política, nós ainda enxergamos nele a potência de um sentido político – seu espectro continua a nos rondar. Solenizar os 100 anos de sua morte deve ser a pedra angular de nossas reflexões sobre nossos desafios para continuar a renovação do marxismo e para explicitar seu teor de verdade diante da situação de catástrofe climática que vivemos – o fim do mundo está logo ali, e nosso prazo já está dado. O que fazer? Não há alternativas: é o marxismo heterodoxo, com seu potencial revolucionário e não dogmático que nos permite efetivar incontáveis intervenções voltadas para um mesmo objetivo, que é a emancipação plena de todos os explorados e oprimidos em uma sociedade sem classes, sem raças e sem gêneros. A experiência de felicidade que buscamos passa pelo movimento revolucionário de acabar com a infelicidade de cada um que é violentado.
Contra essa melancolia de esquerda, Lênin nos ensina em O Estado e a revolução como as experiências passadas (como a Comuna de Paris de 1871) devem ser rememoradas não enquanto modelos ou acúmulos, mas como horizontes de possibilidades, uma abertura para o que ainda pode ser realizado. Como Lênin, que ponderou sobre sua situação atual a partir das reflexões de Marx, devemos ainda fazer uma guinada em direção a Lênin para ponderarmos sobre nossas possibilidades práticas do exercício da política em nossa situação. Sem doutrinas prontas para executar ou burocracias para fazer adiar as experiências, o que está posto é a necessidade de continuamente reavaliarmos nossas análises de conjuntura, nossos diagnósticos e nossos programas de intervenção que surgem a partir deles. Não há garantias para nosso sucesso – o que nos resta é continuar apostando na revolução, continuar tentando, pois não são os raciocínios lógicos que irão nos garantir sucesso, mas sempre as experiências vivas revolucionárias:
“Onde quer que a luta de classes ganhe alguma consistência, seja qual for a configuração e as condições sob as quais ela se dê, é um fato natural que os membros de nossa Associação apareçam no primeiro plano. O solo de onde brota a nossa Associação é a própria sociedade moderna. Não haverá carnificina capaz de exterminá-la. Para fazê-lo, os governos teriam de exterminar o despotismo do capital sobre o trabalho, a condição de sua própria existência parasitária.
A Paris dos trabalhadores, com sua Comuna, será eternamente celebrada como a gloriosa precursora de uma nova sociedade. Seus mártires estão gravados no grande coração da classe trabalhadora. Quanto a seus exterminadores, a história já os acorrentou àquele eterno pelourinho, do qual todas as preces de seus clérigos de nada servirão para os redimir”
MARX, 2011, ´p.78-9
Não nos basta lamentar a derrota das experiências que tivemos. É preciso “matar o morto”, garantindo-lhe honra em sua existência. Hegel, filósofo tão estudado por Lênin à luz dos processos revolucionários, nos esclareceu que “o que é medíocre dura e governa por fim o mundo; essa mediocridade tem também pensamentos, com eles achata o mundo existente, extingue a vitalidade espiritual, faz dela mero hábito, e assim dura. Sua duração consiste justamente em persistir na inverdade, não lograr seu direito, não dar ao conceito sua honra, não expor-se nela a verdade como processo” (apud ARANTES, 2000, p.212). Há mais honra no desaparecimento do que na duração indefinida, que caduca. Deve-se ir além do lamento do fim da experiência que foi a União Soviética – há muito ela havia se deturpado das ideias que a conceberam. Nossas reflexões devem ter um ganho conceitual para as nossas tarefas históricas atuais. Por um lado, “o luto, suscitado pela ruína, só é possível por uma identificação com o desaparecido”, com seus valores, seus sonhos, seus desejos, suas promessas e suas expectativas mas, por outro lado, “o trabalho conceitual do luto culmina, também, numa liberação que igualmente torna possíveis outros investimentos: liberta-os da tristeza da finitude por uma ruptura da ligação com o objeto suprimido, esta ruptura assume aqui a forma da dupla negação, pois é o desaparecimento da desaparição” (ibidem, p.210, grifo nosso).
As ruínas da União Soviética, junto com as estátuas de Lênin, não devem ser objeto de lamentação, como se o socialismo tivesse chegado ao seu fim com a queda do Muro de Berlim. Lênin pode ter caído de seu pedestal, “mas sua cabeça segue intacta” – ainda que seu busto possa ser encontrado ao pé de uma escada solitária nas estruturas de um apartamento decrépito (como na foto de Artyom Kushneruk) – “e segue sombrio seu olhar; não sabemos se ele lança seu olhar repreensivo àqueles que destruíram sua estátua ou àqueles que decidiram erigi-la, obrigando-o a desempenhar um papel que não havia escolhido” (TRAVERSO, 2021, p.146).
Que a memória de Lênin preserve não apenas as falhas em si, mas também o futuro que elas delineavam. Contra uma “utopia fria”, a imagem de socialismo que se desenha para nós deve preservar as promessas e desejos ainda não realizados, em função de todos os explorados e oprimidos pela sociabilidade capitalista. A memória que nos alcança hoje vem com o espírito de revolta, esperança e de redenção – trata-se de caminharmos como os zapatistas: poniendo un pié en el pasado y otro en el futuro, isto é, construir o futuro através de desvios pelo passado. Que sejamos capazes de ponderar os limites e necessidades das experiências socialistas do século XX, constituídas pela figura de Lênin, para que possamos circunscrever o nosso programa e nossas atuações para salvar o mundo de hoje, o de ontem e o de amanhã. “O fim do socialismo real não engendrou o eclipse da esperança socialista, só o revelou” (TRAVERSO, 2021, p.158).
REFERÊNCIAS
ARANTES, Paulo Eduardo. “A prosa da história” IN: Hegel: a ordem do tempo. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. – São Paulo: Hucitec/ Polis, 2000.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a revolução: a doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução. – 1.ed. – São Paulo: Boitempo, 2017.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnbin, Marcos Lutz Müller. – São Paulo: Boitempo, 2005.
MARX, Karl. A guerra civil na França. Seleção de textos, tradução e notas de Rubens Enderle, apresentação de Antonio Rago Filho. – São Paulo: Boitempo, 2011.
TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. Tradução de André Bezamat. – Belo Horizonte: Âyiné, 2021.
Leonardo Silvério
Tradutor, artista, ensaísta e mestrando em Filosofia na USP na área de Estética e Filosofia da Arte. Mais um zero à esquerda.