Há uma crise na crítica do valor. O texto mais recente de Anselm Jappe, “Lebendiges und Totes in der Wertkritik” [1] Anselm Jappe, Vivos e mortos na crítica do valor. Algumas teses apressadas sobre o estado atual da crítica do valor. Zero a esquerda, 2024. ”, expressa isso de forma direta. O contexto alemão no qual essa abordagem foi elaborada, desde os anos 1980 [2]Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social” – entrevista com Marcos Barreira e Javier Blank (2018), in: … Continue reading se fragmentou e, ao mesmo tempo, ampliou-se a difusão da crítica do valor em outros países, que tem de se adequar às circunstâncias e dinâmicas de cada lugar. Essa difusão ocorre hoje especialmente na França, onde há um projeto editorial recente orientado para esse fim e no qual o próprio Jappe teve um papel importante. No Brasil, a recepção da “crítica do valor” remonta à primeira metade dos anos 1990.[3] Robert Kurz, O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993. Aqui também essa teoria seguiu um percurso diferente daquele de sua matriz original. Uma diferença nesse caso foi a presença mais significativa no debate universitário e nos meios de comunicação. Não por acaso, uma das formas de desqualificação da crítica do valor no Brasil há alguns anos consistia na afirmação de que o interesse que ela despertava não passava de uma “peculiaridade local” e que Robert Kurz era muito mais conhecido no Brasil do que em seu país de origem. [4]Em todo caso, seu livro O colapso da modernização, de 1991, já encontrou um público mais amplo na Alemanha do que as publicações iniciais da então chamada “crítica fundamental do valor” … Continue reading Mesmo assim, a crítica do valor, de fato, teve um papel relevante no debate da esquerda local. “Na década de 1990”, diz Jappe, “quando a situação econômica no Brasil era muito incerta, Kurz gozava de grande popularidade na mídia brasileira como ‘profeta do apocalipse’ […] ‘assim que o mercado de ações ou a moeda caiam, seu telefone tocava e um jornal brasileiro pedia um comentário”. [5]Anselm Jappe, op. cit.A situação hoje, mais de duas décadas depois, é diferente. Por um lado, a teoria da crise não despertou grande interesse, mesmo depois de 2008; por outro, a crítica do valor ganhou novo impulso nos últimos anos, incluindo um conjunto mais variado de temas e de abordagens: da crise do sujeito moderno à teoria do antissemitismo, passando pelo debate sobre o papel da China na economia global e sobre a guerra na Ucrânia.[6]Algumas publicações relevantes: Robert Kurz, A crise do valor de troca (Consequência, 2018), Grupo Krisis, Manifesto contra o trabalho – edição de 20 anos (Krisis/Igra Kniga, 2019), dossiê … Continue reading O Brasil faz parte, assim, tanto do interesse renovado pela difusão da crítica do valor quanto de seu processo geral de fragmentação.

     Em seu texto, Jappe resume a recepção da teoria da crise no Brasil durante os anos 2000: “quando o Brasil experimentou uma recuperação momentânea durante a primeira presidência de Lula (2003-2010) e a sensação de ‘êxito’ e de não ser mais um país do Terceiro Mundo se espalhou, o interesse pela crítica do valor diminuiu drasticamente, e alguns dos grupos de crítica do valor restantes se distanciaram explicitamente da teoria da crise”. Essa afirmação tem algo de desconcertante. Ela parte de um dado da realidade, mas constrói a partir dele um elemento puramente ficcional. No texto de Jappe, que discute muitos temas centrais do debate na Alemanha e na França, tal fragmento tem pouca importância. Esse pequeno detalhe “periférico”, porém, se confunde com os nossos últimos vinte anos de estudos e atividades, o que também é válido para outras pessoas com trajetórias diferentes aqui no Brasil.

A difusão inicial da “crítica do valor”, ainda na primeira metade da década de 1990, se deve principalmente a Roberto Schwarz, que apresentou O colapso da modernização ao público brasileiro. Como em seu país de origem, esse “livro audacioso” saiu da obscuridade pelas mãos de um crítico literário renomado, que, no nosso caso, viu nele, a partir da tese do encerramento do ciclo da modernização, uma brecha para desmontar o “mito da convergência providencial entre progresso e sociedade brasileira em formação”.[7] Roberto Schwarz, “Ainda o livro de Kurz”, Novos Estudos – CEBRAP, n. 37, nov. 1993, p. 137.Em seguida, o livro foi debatido no CEBRAP, um centro de pesquisa ligado à Universidade de São Paulo. [8]Para uma análise do debate do CEBRAP em torno do livro de Kurz, ver Maurilio L. Botelho, “Um desencontro teórico: notas sobre a recepção inicial de O colapso da modernização no Brasil”; … Continue reading A partir daí, suas teses (ou o que se tomava por elas) foram bastante difundidas e Kurz figurou entre os maiores nomes da esquerda, ao lado de autores como Antonio Negri, Slavoj Zizek ou David Harvey. Kurz passou a assinar uma coluna no caderno de cultura do jornal de maior prestígio no país (pelo menos para a “classe intelectual”) e teve seu ensaio sobre o significado da derrocada do “socialismo real” comentado e muitas vezes duramente criticado por alguns dos maiores expoentes da esquerda brasileira. A característica principal do (des)encontro dessa intelligentia local com a crítica do valor foi a ausência quase total dos pressupostos da teoria da crise, reduzida pelos opositores marxistas a uma disputa sobre a “crise do trabalho”. Pouca coisa nesse debate seria hoje digna de registro. De modo geral, os críticos de Kurz se apressaram em declarar a vitória do antigo marxismo sobre a teoria da crise a partir de pobres espantalhos fabricados por eles mesmos. Mesmo assim, o confronto da esquerda universitária com fragmentos dessa abordagem incompreendida não deixou de funcionar como fermento para o debate local sobre aspectos até então negligenciados da obra de Marx, como o conceito de fetichismo da mercadoria. [9]O conceito marxiano de fetichismo ficou durante muito tempo preso a leituras subjetivistas, que denunciavam a “falsa consciência” ou o consumismo exagerado dos indivíduos no capitalismo, ou … Continue reading Esse foi, sem dúvida, um saldo positivo do confronto com a crítica do valor, que abriu caminho para leituras mais sofisticadas e não imediatamente “políticas” da obra de Marx. [10]Vide o interesse crescente pela “Nova Leitura de Marx”.

A difusão da crítica do valor no Brasil começou a seguir um rumo diferente ainda no final da década de 1990. Surgiram outras publicações, como Guy Debord, de Anselm Jappe, que acompanhava um “boom” do interesse pela teoria do espetáculo, e principalmente o Manifesto contra o trabalho, do Grupo Krisis, ambos publicados em 1999 – este último recebido de modo especialmente alérgico no meio universitário e na esquerda política. A título de exemplo, um crítico diz que, “em termos de explicação de textos [a leitura da crítica do valor] é de bom nível”, mas, em seguida, reclama do uso imediatista de um texto “hiper-teórico” como os Grundrisse e pergunta: “afinal, o que se pretende com o infantilismo de manifestos que reclamam o fim do trabalho?” [11]Ruy Fausto, Marx: Lógica e política, vol. III, Ed. 34, SP, 2002, p. 34.A crítica do trabalho, que ainda aparecia de modo ambíguo no livro de Kurz, ergueu uma barreira entre a crítica do valor e a esquerda formada na ortodoxia marxista e/ou no realismo político.[12]Não se trata de uma “peculiaridade local”. Essa reação seguiu, em linhas gerais, o mesmo padrão de argumentação diante da difusão do “Manifesto”, por exemplo, em países como França e … Continue reading Uma reportagem na imprensa ilustra esse quadro: “mais uma crise chega ao Brasil. Essa fala alemã e os estragos que pretende fazer são apenas teóricos. Desembarcou na última sexta-feira em São Paulo trazendo na bagagem uma bomba intelectual – um ‘Manifesto contra o Trabalho’. Trata-se do grupo Krisis, formado por intelectuais dissidentes de esquerda na Alemanha, que não militam em nenhum partido político e vivem à margem da vida acadêmica”[13]Cf. “Krisis chega ao Brasil”, Folha de São Paulo, 1999. Mesmo assim, o “Manifesto” teve ampla divulgação pelas margens da “empresa universitária” e da mídia oficial – e ainda hoje, mais de vinte anos depois, desperta interesse em alguns meios.[14]O Manifesto contra o trabalho apareceu inicialmente em uma pequena tiragem divulgada pelo Labur-USP e, pouco depois, na coleção Baderna da editora Conrad. Uma edição comemorativa de vinte anos, … Continue reading

     Nessa época havia no Brasil dois grupos de estudos diretamente interessados na teoria da crise da crítica do valor. Um no Laboratório de Geografia Urbana/Labur, na USP, formado durante a primeira onda da recepção dos escritos de Kurz; o segundo, formado um pouco depois, por volta de 1999/2000, no Rio de Janeiro, sem filiação institucional. Este último também editava a página do “Antivalor” e por vezes se apresentava como “Coletivo Antivalor”. Em ambos os casos, tratava-se ainda de uma recepção inicial, que dispunha apenas de escasso material proveniente do contexto teórico original e permanecia orientada para o estudo coletivo.[15]Na mesma época, um terceiro grupo, em Fortaleza, desenvolveu uma aproximação paradoxalmente “política” desse debate sobre a crise do capitalismo, apresentando-se como um “partido da … Continue reading Em São Paulo, havia iniciativas pontuais de tradução de textos e um padrão de argumentação que começava a assimilar aspectos da teoria da crise, mas que, na ausência dos textos fundamentais da crítica do valor, ainda permanecia dependente de fórmulas “substitutas”.[16]Um texto antigo de Claudio R. Duarte, O ponto aporético e sem retorno, que comenta as teses do “Manifesto”,nos dá um exemplo: ele opera basicamente com elementos fragmentários da teoria da … Continue reading

A conjuntura iniciada pelo primeiro governo Lula, em 2003, pouco alterou esse quadro. A teoria da crise permaneceu como referência para o espectro já então pequeno de leitores da crítica do valor, ainda que muitas vezes de modo unilateralmente econômico e sempre “completada” com elementos provenientes da Teoria Crítica ou das correntes heterodoxas de esquerda. Data dessa época o volume Com todo vapor ao colapso (UFJF/Pazulin), de Kurz, publicado em 2004, a última iniciativa de divulgação realizada pelo grupo do Labur. Nenhum dos grupos mencionados tinha então uma elaboração teórica própria bem desenvolvida em termos de teoria da crise, devido ao estado ainda pouco amadurecido do debate local. Os poucos textos de “crítica do valor” que surgiram durante esse período faziam parte de uma etapa de aprendizado natural e, vistos de hoje, não se destacam pela sua qualidade teórica – o que também é válido ainda hoje para a maior parte do que se escreve sobre o assunto no Brasil. [17]Poderíamos mencionar, em todo caso, uma tentativa inicial como a de Célia Nunes, que, partindo do exemplo de Moçambique, interpretou o fim das ilusões de desenvolvimento em uma sociedade … Continue reading

     O primeiro texto dentro desses círculos a apresentar uma contribuição original do debate local sobre a crítica do valor é, provavelmente, o comentário de Maurílio Botelho sobre As aventuras da mercadoria, de Anselm Jappe, livro lançado na França em 2003 [a edição portuguesa é de 2006]. Esse livro é, ainda hoje, o que mais se aproximou de uma apresentação da crítica do valor em termos globais. Jappe contribui nos capítulos iniciais sobre a “mercadoria” e o “trabalho” para o avanço da leitura filológica dos textos de Marx – em todo caso, o objetivo principal da crítica do valor é, antes, explicar a disfuncionalidade crescente do capitalismo do que produzir uma “nova leitura” de Marx. Ao contrário da ênfase do Grupo Krisis, especialmente durante a década de 1990, na ruptura com o “marxismo tradicional”, sua reconstituição da crítica do fetichismo enxerga a si própria como parte de uma tradição que remonta ao marxismo crítico dos anos 1920. Em termos de teoria da crise, por outro lado, Jappe retoma a argumentação de Kurz em A crise do valor de troca: “o dispêndio individual de força de trabalho é cada vez menos o fator principal da produção. São as ciências aplicadas, bem como os saberes e capacidades difundidos ao nível social, que se tornam diretamente a força produtiva social […] Estas novas forças produtivas são obra da sociedade no seu todo […] Determinar o trabalho por cada produtor passa então a ser algo tão impossível quanto inútil”. [18]Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria, Antígona, Portugal, 2006,  p. 140-1. O comentário sobre esse texto, escrito, por volta de 2008, no antigo contexto de “Antivalor”, permaneceu, porém, restrito à nossa discussão interna. Ao contrário da nova geração de leitores apresentada à crítica do valor na última década e que teve em Aventuras da mercadoria a sua referência principal, esse texto, que reflete uma compreensão mais ampla do seu objeto, já distinguia tanto a via original seguida por Jappe na reconstituição dos momentos mais atuais da crítica marxiana quanto as diferenças de fundo dessa leitura em relação à matriz teórica do “valor-cisão”. Argumenta-se, contra a ideia de um abandono da teoria da crise que “a fundamentação da crise na teoria do valo é uma das [contribuições] mais importantes do livro”[19]Maurílio Botelho, “Sobre ‘As aventuras da mercadoria’”. Mimeo. Em seguida, são formuladas críticas pontuais: primeiro, quanto ao apelo à fórmula da circulação simples de mercadorias “na compreensão do metabolismo reprodutivo das sociedades não capitalistas”, que desde o início dos anos 1990 já havia sido abandonada no projeto da Krisis; segundo, a “ausência de mediação entre um conceito de ‘forma total’ e as esferas cindidas de relacionamento”. [20]Ibidem

Durante esse período, em meio à crise financeira global, o grupo de estudos do Labur desenvolveu sua linha de pesquisa sobre a “modernização retardatária brasileira” a partir de estudos de caso e chegou a esboçar uma interpretação – abandonada em seguida – da “condição periférica” como momento “cindido” da reprodução capitalista global.[21]“Formação do Trabalho e Modernização Retardatária no Brasil”. Esse texto, produzido inicialmente para o debate entre os Grupos de Estudos Crítica do Valor-dissociação (SP, Brasil) e o … Continue reading Isso, por si só, dá uma ideia do estado ainda rudimentar da tentativa de incorporação do “teorema da cisão” no estudo da condição periférica. As pesquisas no âmbito do Labur seguiram, assim, um caminho peculiar e pretendiam corrigir o enfoque da crítica do valor a respeito dos modelos de acumulação na periferia.[22]Toledo, C. de A., Boechat, C. A., & Heidemann, H. D. (2012). “Vinte anos de um grupo de estudos do Labur – crise e crítica do sistema fetichista produtor de mercadorias e da modernização … Continue reading

     Enquanto os contextos de debate teórico da crítica do valor permaneceram durante anos, por assim dizer, retraídos e orientados para si próprios, uma segunda onda de difusão iniciou-se por meio de uma leitura que parecia mais preocupada em limitar o alcance teórico da crítica do valor do que em recepcioná-la como enfoque original e desenvolver seu conteúdo. Nos anos 1990, a redução da teoria da crise à sua dimensão sociológica superficial, como “crise do trabalho”, permaneceu sem relação com os problemas da “forma” do trabalho e da “substância” do capital. [23]Ver, por exemplo, Ricardo Antunes, que aproxima de modo quase aleatório a crítica do valor das teorias da “perda da centralidade do trabalho” de Offe, Habermas e Gorz. Adeus ao trabalho? … Continue reading Na década seguinte, foi através da revista eletrônica Sinal de Menos, desde 2009, que apareceram algumas referências à crítica do valor, na maioria das vezes misturadas com enfoques não apenas diferentes, mas também antagônicos. Em mais de uma ocasião, a crítica do valor era um objeto a ser “desconstruído”. Essa apropriação assumiu logo de início um aspecto teoricista: ela se concentrou na “forma” de mercadoria das relações, que estava ausente no marxismo tradicional, mas ao preço de esvaziar em grande parte a dimensão concreta que podia ser desdobrada analiticamente do princípio geral abstrato. Por isso, as instâncias e processos de mediação foram igualmente negligenciadas. Em vez de uma reconstituição cuidadosa da estrutura teórico-categorial da nova abordagem, alguns de seus fragmentos foram pinçados e atirados em um liquidificador teórico, bem ao estilo da teorização pós-moderna. É evidente que, nessas condições, a crítica do valor permanecia apenas como embalagem superficial diluída em termos de conteúdo. Prevaleceu aqui, em contraste com os grupos de crítica do valor, não um programa de pesquisa, mas uma apropriação de momentos isolados dessa teoria (crítica do trabalho, teoria do fetichismo etc.). Isso se deu, no entanto, por meio de um padrão reativo que confrontou a nova teoria de maneira apenas externa, a partir da absolutização do “ponto de vista de classe”. Essa recepção, baseada na “apreensão crítica de conceitos originalmente negativos como os de proletariado, classe e luta de classes”.[24]Ver o Editorial de Sinal de Menos No.1.foi, desde o início, essencialmente uma crítica da crítica do valor.[25]De fato, os poucos artigos do contexto da crítica do valor alemã publicados em Sinal de Menos permaneceram sempre como corpos estranhos e não mediados com o conteúdo principal da revista.Não houve, aqui, uma elaboração adequada dos limites do “ponto de vista de classe”. Tal atitude defensivo-reativa consistia essencialmente em estabelecer como princípio axiomático que toda luta social é, por definição, “luta de classes” e que a crítica desta última, a despeito do seu conteúdo, só pode ser uma renúncia ao conflito social.[26]Esse argumento circular foi “formalizado” pela primeira vez por Daniel Cunha em “Penúltimos combates”, Sinal de Menos, vol. 1., tornando-se, a parir daí, um modelo de “anticrítica” … Continue reading Na melhor das hipóteses, esse “motor da história” continuava a figurar como “desejo reprimido”. [27]Um caso parcialmente discrepante é o estudo de Joelton Nascimento, Crítica do valor e crítica do direito (SP, Perse: 2014), que contrapõe à “crítica de tipo classista” uma crítica … Continue readingTal posição, que, em termos de leitura do texto, pode ser qualificada apenas como teoricamente indigente, não era só incapaz de fazer avançar o debate sobre as novas linhas de conflito – limitando-se a esvaziar determinações sociológicas concretas a partir de um conceito de sujeito social homogêneo determinado pela “forma” -, mas também ficou aquém da primeira recepção da teoria da crise. Esta apontava, ainda nos anos 1990, que o antagonismo social no quadro de esgotamento da modernização capitalista não podia mais ser um enfrentamento entre as duas classes fundamentais por meio do qual o capitalismo funcionou durante dois séculos, mas que, em vez disso, ele seria produzido por uma “dinâmica destrutiva e excludente” de novo tipo. [28]Roberto Schwarz, “O livro audacioso de Robert Kurz”, Sequências brasileiras. Ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 1999, p. 186. Em outras palavras, as “tendências estruturais” do capitalismo de crise são “mais segmentadoras que integradoras” e vêm acompanhadas de desqualificação e desemprego tecnológico.[29]Roberto Schwarz, “Fim de século”, Folha de São Paulo, -4/12/1994.. É precisamente o inverso do processo de formação das classes da etapa inicial da modernização. A absolutização do ponto de vista de classe permaneceu, assim, uma posição apenas doutrinária, surda para o debate teórico que ela recepcionava.  

    Outra característica do campo de elaboração em torno de Sinal de Menos é que nele está ausente não só uma teoria da crise da forma social, mas até mesmo uma análise da crise em termos empíricos/descritivos, como se pode ver já nos primeiros volumes da revista. Isso vale tanto para o debate teórico geral sobre o capitalismo de crise quanto para a situação periférica do Brasil. Não por acaso, a apropriação de fragmentos descontextualizados da teoria da crise atravessou o período iniciado em 2008 com uma ênfase apenas literária e político-abstrata.[30]Por outro lado, a inconsistência dessa posição é exemplificada no fato de que, em Sinal de Menos, as referências quase onipresentes à “luta de classes” e a um proletariado “selvagem” … Continue reading Por mais que nessa eterna busca pelos últimos vestígios do “não idêntico” alguns textos esbarrassem aqui e ali no cenário de catástrofe atual, nunca foram além de um discurso teoricamente indeterminado e, por vezes, abertamente contraditório,sobre a crise. No editorial de Sinal de Menos n. 14, por exemplo, lê-se que “o capital está travado e ameaça (!) entrar numa longa depressão”. Se essa “ameaça” ao que seria até aqui uma reprodução capitalista normal se concretizar, porém, ela deve levar a uma reprodução das relações capitalistas “pela força política do Estado” ou até mesmo a uma “transição para outro sistema de dominação”, que eventualmente já teria até ocorrido. Por outro lado, o mesmo editorial que anuncia um mundo já quase pós-capitalista assegura que “para continuar a funcionar ad infinitum” (!) a maquina capitalista precisa “apenas de engajamento”. E arremata: “é esse engajamento que não nos falta”. O funcionamento cada vez mais precário da reprodução do capital é descrito, assim, como um “poder formidável” de “recuperar e normalizar qualquer situação”. Em um contexto como esse, é evidente que não podia se desenvolver qualquer reflexão sistemática e teoricamente consistente sobre a “condição periférica” no quadro da crise global.    

  Tal como na anterior, essa segunda onda, já esgotada, da recepção da crítica do valor se relacionou de um modo apenas superficial com a teoria da crise. Diante disso, qual é a relação, abordada de passagem no texto de Jappe, entre o debate sobre a teoria da crise e o período de crescimento econômico durante a ascensão dos governos “progressistas” na América Latina na década passada? No caso brasileiro, esse período breve pode ser dividido em dois momentos. O primeiro começa com o crescimento das exportações agrícolas, já em 2003, em meio ao boom de commodities puxado pelas economias asiáticas.[31]Para uma análise do crescimento das economias asiáticas a partir do ponto de vista da crítica do valor ver Norbert Trenkle, “O trabalho dependente da injeção de capital fictício” (mimeo), … Continue reading A isso se seguiu uma forte expansão de atividades precárias e de baixa qualificação nos “serviços”, juntamente com medidas que elevaram o poder de compra e o crédito das famílias de baixa renda, bem como a ampliação em larga escala dos programas de “renda mínima”. Tudo isso, resumido na fórmula governista do “espetáculo do crescimento”, gerou um quadro de recuperação econômica que garantiu reeleições seguidas do campo “progressista”. Nessa época, porém, já era evidente, não só para os interessados na crítica do valor, mas também para o enfoque “desenvolvimentista”, que a natureza dessas medidas era apenas conjuntural e que elas não podiam representar nenhum modelo de desenvolvimento de longo prazo. Em vez disso, elas estavam associadas à reprimarização da produção e permaneciam totalmente sujeitas à instabilidade crescente do mercado mundial.

A crise de 2008 deu início a um segundo momento: a conjuntura de crescimento e emprego teve de ser mantida, com a popularidade de Lula, por um conjunto de medidas “anticrise” de expansão do crédito em todos os níveis. A partir de 2010, tais medidas de emergência tornaram-se a base da ideologia da “nova matriz” de desenvolvimento. Era muito claro, portanto, que a “decolagem” do Brasil possuía fundamentos precários, pois correspondia a um subproduto dos mecanismos de adiamento de crise. Também aqui não é preciso recorrer à teoria da crise da crítica do valor. Pouca gente, mesmo na esquerda tradicional, realmente se convenceu da suposta “mudança estrutural” da economia brasileira.

     Esse conjunto de questões já estava perfeitamente assentado no debate interno dos grupos de crítica do valor durante o breve período de crescimento da “Era Lula”. Em todo caso, os dois grupos orientados pela recepção sistemática da teoria da crise reagiram de maneira muito distinta a essa conjuntura. Esta é uma oportunidade para esclarecer, em vista disso, algumas diferenças relevantes entre eles.

Em primeiro lugar, o antigo grupo “Antivalor”, naquela altura sem uma identidade definida, [32]Esse também foi um período em que o grupo do Rio de Janeiro passou por uma forte tendência de dissolução. Havia em seu interior duas posições antagônicas: uma orientada para o desenvolvimento … Continue readingvoltou-se para um programa de estudos sobre o impacto do boom nas commodities e da crise de 2008 nos governos “progressistas” da América Latina. Esse estudo também se voltou para um aspecto bem particular da administração de crise: a preparação dos “megaeventos” na cidade do Rio de Janeiro, idealizados como coroação internacional do modelo de pacificação social lulista.[33]Ver, Até o último Homem: visões cariocas da administração armada da vida social, Boitempo, SP, 2013. Aqui, no entanto, a escolha do plano local como referência central, que não se deu sem forte oposição de ideias genéricas sobre a “crise civilizatória” do capital, e que ajudava a compreender parte do subsolo social dessa época de crescimento como uma economia periférica de pilhagem em ascensão,[34]Marcos Barreira, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, em Até o último homem. impedia, por outro lado, um enfoque voltado diretamente para a teoria da crise. Com certeza, não faltam em Até o último homem, que apareceu em 2013, na coleção “Estado de sítio”, referências ao contexto de crise, a começar pela ideia central de um avanço da “administração armada da vida social”, que indica a desintegração da regulação política em um plano local. Por outro lado, é obviamente um mal entendido apresentar esse conjunto de reflexões locais sob o rótulo de “crítica do valor”. Esta exigiria um tratamento completamente diferente do contexto de mediação social, que têm de ser formulados de um ponto de vista não imediatamente empírico e “concretista”, mas mediado teoricamente. [35]Esse ponto, que foi enfatizado por Kurz em Dinheiro sem valor, de 2012, já está presente nos primeiros escritos da crítica do valor, embora não sem contradições. Em A crise do valor de troca, … Continue reading

Desse ponto de vista, também o problema do limite interno da reprodução capitalista, por definição, não é formulável a partir da “tacanha perspectiva empírica”.[36]Dinheiro sem valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política [Tradução de Lumir Nahodil], Lisboa, Antígona, 2014, p. 267.Esse plano do “limite interno”, que se desenrola como parte do processo global do capital, não pode nem mesmo ser colocado adequadamente em termos “locais” ou na escala da economia nacional [37]O problema das “particularidades nacionais”, por outro lado, não é de maneira nenhuma estranho ao debate da crítica do valor, a exemplo dos ensaios de Kurz sobre a crise da unificação alemã … Continue reading E tampouco pode ser estabelecida, em conexão com a escala nacional, uma teoria geral do contexto de mediação social que é apenas “aplicada” a casos particulares. Em vez disso, o problema do limite interno – e do processo fetichista como um todo – tem de ser delineado em termos categoriais e progressivamente confrontado com outros planos de análises. Por outro lado, é claro que fenômenos descritos no nível empírico “tacanho” também fazem parte da “facticidade” de um encadeamento de crises cada vez mais visível e não são de modo algum negligenciáveis. O que se pode descartar desde logo é a tentativa de apreender o movimento substancial do valor imediatamente em termos empíricos. A apreensão dessa dimensão substancial exige, assim, um complexo de mediações, a começar pela relação entre essência e aparência, que não coincidem no plano empírico-imediato. Tal relação, por sua vez, é mediada teoricamente com outros planos: a análise do real, a constituição sócio-histórica dos processos sociais e das próprias categoriais e a crítica da ideologia. Nenhum desses planos, p.e., a análise do mercado mundial como um todo ou de alguns de seus segmentos e os diferentes modos de “digestão ideológica” das crises “empíricas”, pode subsistir em separado nem cada um deles pode ser fundido imediatamente com os demais níveis.      Quando iniciamos nosso programa de estudos sobre a crise do “pacto social” lulista, já havia amadurecido, de um lado, um diagnóstico da crise mundial que seguia, em linhas gerais, o argumento básico da teoria da crise, e, de outro, a compreensão do modo como o Brasil se encaixava nessa dinâmica geral ;[38]Quanto a isso, é preciso confrontar a leitura segundo a qual o Brasil teria se integrado no processo de industrialização em grande escala dos países emergentes, como China e Índia, com base na … Continue reading mas parecia claro que a posição da economia brasileira nas cadeias globais de produção era um ponto de referência muito limitado para a análise de qualquer aspecto relevante do cenário global – as exportações brasileiras, hoje a décima maior economia do mundo, ocupam uma fatia exígua do PIB mundial. Isso que é válido no plano das relações globais de troca, é ainda mais verdadeiro quando considerado o processo de dessubstancialização em termos categoriais. Neste caso, nenhum apelo direto às condições imediatas de produção (supressão de postos de trabalho etc.) poderia fornecer qualquer indício realmente relevante do processo de crise em termos globais. Não há de fato como estabelecer uma diferença categorial entre uma tendência de “dessubstancialização” da produção e o que é um processo de crise local, que também ocorre no quadro perfeitamente normal da reprodução do capital. Por isso, nos concentramos na dinâmica interna do particular de administração de crise – do modelo de crescimento aos padrões ideológicos e de conflitos distributivos que ele gerou – do que na sua relação direta com o processo social geral capitalista. A dinâmica geral de crise podia ser, aqui, um elemento pressuposto, mas não imediatamente tematizado como tal. Isso envolvia, p.e., um debate em termos locais sobre a redução da política a mecanismos de administração da pobreza em massa, as metamorfoses do sindicalismo, agora “financeiro”, as políticas sociais de mercado e a ascensão de ideologias fundamentalistas, o novo papel dos militares e os mecanismos deficitários na base da “nova matriz” após a crise de 2008 [39]Maurilio L. Botelho, “Trabalhadores no mercado de capitais: ‘capitalismo para poucos’ e sindicalismo financeiro dos fundos de pensão”; André Villar Gomez, “Brasil potência? As ilusões … Continue reading

Esse conjunto de elementos nos permitia avaliar a relação entre dinâmicas sociais e econômicas particulares e tendências gerais do capitalismo de crise [40]Também do ponto de vista das disputas ideológicas há uma diferença fundamental entre o contexto latino-americano e o centro do capitalismo. Nos países centrais, o discurso neoliberal deu lugar a … Continue reading Nosso objetivo, em linhas gerais, era documentar as medidas de emergência cujo desfecho desastroso parecia certo em um futuro não muito distante. Nessa radiografia do pacto social da era Lula, tanto o modelo de crescimento quanto o ideal de “pacificação social” foram apresentados desde o início como fracassos anunciados. Mesmo o êxito da economia de exportação foi descrito sobretudo em seus aspectos catastróficos do ponto de vista social e ambiental. [41]Marcos Barreira, André Villar Gomez, A catástrofe como modelo. Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais durante o período 2003-2013, Sinal de Menos n. 11, vol 1, 2015.O processo de crise, porém, não teve qualquer consideração pelo nosso calendário de publicação. De forma avassaladora, desmontaram-se uma a uma as bases do “pacto social” em meio à regressão econômica aberta [42]Marcos Barreira e Maurilio L. Botelho, A implosão do “pacto social” brasileiro, cit. Em termos de análise do real, porém, o que nos interessava era tratar esse caso particular em sua dinâmica própria e não como mera expressão de uma crise geral, que também não pode ser formulada nesse plano. Esse programa de estudo do modelo da “era Lula” se tornou, portanto, pela própria dinâmica do objeto, um conjunto de análises fragmentárias sobre o desmonte social em todos os planos: da corrosão dramática do mercado de trabalho à destruição das mediações político-institucionais. [43]Maurilio L. Botelho, Guerra aos “vagabundos”: Sobre os fundamentos sociais da militarização em curso. Blog da Boitempo, 12/02/2018; Marcos Barreira, Brasil em tempos de declínio social, Margem … Continue reading

O grupo do Labur, de “crítica do valor-cisão”, seguiu outro caminho. Uma vez abandonado o ímpeto inicial de divulgação que marcou a sua primeira geração, [44]Já em meados dos anos 2000 a maioria dos integrantes dessa primeira geração havia abdicado de uma perspectiva crítica do valor e, de modo geral, seguiu o padrão de reação da esquerda … Continue reading o grupo da USP se voltou para um programa de estudos sobre a realidade nacional apresentado, ao mesmo tempo, como um olhar particular sobre a acumulação na periferia e uma “defesa enfática das teses de Kurz”. “defesa enfática das teses de Kurz”. [45]Toledo, C. de A., Boechat, C. A., & Heidemann, H. D. (2012). “Vinte anos de um grupo de estudos do Labur”. Revista Do Departamento de Geografia, 154-170. Uma elaboração que, no entanto, apareceu mesclada desde o início com a exigência da “pesquisa empírica”, que atribui grande peso informativo aos capitais individuais. Essa versão local sobre a crise se constitui a partir de um conjunto de estudos de caso bastante localizados que, em seguida, são articulados para fornecer uma interpretação da “particularidade nacional”. Para Kurz, por outro lado, “a forma como tudo se passa no caso de um qualquer capital individual empírico e aleatório é absolutamente irrelevante e não teria qualquer valor informativo; o que está em causa é unicamente o capital global” (grifo meu). [46]Robert Kurz, Op. cit., p. 254. De início, essa contradição evidente parece nem ter sido notada dentro e fora do contexto do Labur. Em 2011, um estudo-padrão do grupo, de Fábio Pitta, pretendia “verificar se a necessidade reiterada de intervenção estatal via créditos subsidiados junto à produção do setor [sucroalcooleiro paulista] indicava uma crise da acumulação capitalista (!) na sua forma atual, a partir do que Marx denominou como capital fictício”. [47]Ver Fábio T. Pitta, “Modernização retardatária e agroindústria sucroalcooleira paulista: o Proálcool como reprodução fictícia do capital em crise”, dissertação de Mestrado, FFLCH, USP, … Continue reading

     Formulada nesses termos, a “pesquisa” só podia ser uma aplicação do diagnóstico geral da teoria da crise ao caso particular ou, inversamente, uma tentativa de contribuir com o diagnóstico geral a partir “um qualquer capital individual empírico e aleatório”. Era preciso encontrar uma solução para essa contradição. Esse foi o papel da “teoria” sobre a “mediação do capital fictício”, que Pitta apresentou em um longo texto sobre a crise brasileira. [48]Fábio T. Pitta, “O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho”, Sinal de Menos n. 14, vol. 1, 2020. A contradição, porém, foi resolvida de maneira apenas aparente, já que a alegada “mediação”, transformada em argumento padrão nas pesquisas do Labur e replicada em série, ainda revestia-se de um caráter totalizante. Essa inovação, portanto, apenas recolocava, sob nova base, o dilema inicial e apenas repetia de modo dissimulado a mesma posição dedutivista. Além disso, os dados particulares aleatórios determinados pela “mediação geral do capital fictício” ainda podiam ser descritos, assim, como expressões imediatas da crise geral. As publicações subsequentes do Labur se apoiaram confortavelmente na “descoberta” da mediação geral aplicada a “casos” individuais apenas para, em seguida, voltar ao ponto de partida baseado em dados “absolutamente irrelevantes” do ponto de vista do capital geral: “o capital fictício promovia, portanto, a ficcionalização da reprodução do agronegócio sucroenergético, uma vez que desdobrava de maneira irreversível a expulsão da substância do capital – o trabalho – no setor, pelo aumento da composição orgânica do capital aí aplicado”. [49]Cássio Arruda Boechat, “Capital fictício e conflitos na reprodução crítica do grupo francês Tereos no agronegócio sucroenergético paulista”, p. 170, em Cássio A. Boechat (Org.), … Continue reading As tendências do processo geral, segundo tal ponto de vista, podiam ser perfeitamente descortinadas a partir de um “capital empírico qualquer e aleatório” que, por sua vez, apenas reproduzia, como em qualquer outra parte, a mesma dinâmica geral.

O problema dessa tautologia reside no próprio conceito de mediação [50]Para uma análise mais detalhada desse tratamento peculiar da teoria da crise, ver: Marcos Barreira, O jargão da mediação. Notas sobre “O crescimento e a crise da economia brasileira”, de … Continue reading Isso coloca em xeque todo padrão de leitura do Labur a respeito de um aspecto elementar da formulação de Kurz em Dinheiro sem valor. Pitta entende de modo errôneo e completamente ingênuo o argumento segundo a qual “o valor é, por princípio, não empírico”, uma “determinação essencial”[51] Dinheiro sem valor, p. 163. que só se manifesta através da relação de mediação. Em vez de pensar a mediação como uma aproximação indireta da dinâmica de crise, ele pretende estabelecer uma identidade imediata entre determinação essencial não empírica e “particularidade concreta”. Em outras palavras, o que ele entende por mediação é o oposto dessa aproximação indireta por meio da análise do real. Desse ponto de vista, “real” é apenas o que coincide, aqui e agora, com a determinação geral não empírica. As categorias que, segundo Kurz, “não podem se manifestar imediatamente enquanto tais”, [52]Idem, p. 29. tornam-se, assim, imediatamente empíricas (referindo-se a programas sociais de distribuição de renda, Pitta chega a falar, p.e., em “políticas de distribuição de capital fictício” etc.). Isso significa que todo esse programa de estudos das “particularidades” baseia-se em uma inversão do argumento segundo o qual “teoria e empiria não podem fundir-se uma com a outra”. [53]Ibidem. Uma exceção digna de nota é a pesquisa de Ana Carolina Gonçalves Leite, no volume Geografia da crise no agronegócio sucroenergético, que aborda um caso particular de expansão do … Continue reading Duas implicações decorrem dessa confusão elementar: a) conjunturas de crescimento econômico têm de ser declaradas falsas ou puramente “simuladas”, porque o crescimento material perfeitamente real não pode ser definido, no plano local, imediatamente como produção de valor – embora, de acordo com um argumento de Kurz, esse problema só possa ser colocado do ponto de vista do capital global; b) uma vez que já não há nada “real”, mas apenas simulação, a própria reprodução capitalista torna-se fictícia. Pitta nos oferece, então, uma segunda contribuição original com o conceito de “reprodução fictícia”, que praticamente já não tem nada a ver com a análise concreta da dinâmica de crise [54]Em sua crítica a Pitta, em Sinal de Menos, n. 15, Claudio Duarte apontou com razão que a ideia de “reprodução fictícia”, inexistente na teoria da crise da crítica do valor, remete … Continue reading

     Outro aspecto dessa segunda via de interpretação da teoria da crise é a negligência em relação à reprodução social. A ênfase de Pitta está toda nas categorias econômicas, a partir das quais ele pretende derivar a esfera social. [55]Também isso foi corretamente observado por Cláudio Duarte em sua crítica. Há duas implicações aqui: de um lado, a cisão do valor, que é afirmada em termos puramente formais, fica inteiramente fora da sua “análise econômica” e aparece apenas como efeito secundário do processo de crise [56]Em seu texto sobre o diagnóstico do colapso e a teoria do valor-cisão, Agnes de Oliveira Costa esboçou uma formulação que rompe com esse padrão e aponta a relação intrínseca entre o plano da … Continue readingPor outro lado, essa negligência em face da dinâmica social aparece também na ausência de qualquer tratamento teórico do problema da crise das formas de mediação política. Essa lacuna é então preenchida com o velho procedimento substitutivo: em vez de analisar, a partir do ponto de vista da crítica do valor (e da cisão), as contradições específicas nesse plano e como elas se relacionam com a crise da reprodução capitalista, Pitta apela à fórmula substituta da “gestão da barbárie”, que tem em comum com sua abordagem econômica primária uma forma problemática de lidar com a relação entre o particular e o geral – nesse caso, a diluição do particular em uma abordagem completamente vaga e indeterminada. A tentativa de análise de um caso particular de gestão de crise a partir da ideia genérica de “gestão da barbárie”, por sua vez, não é só mais um exemplo de desencontro na mediação do geral com o particular, mas também, mais uma vez, uma inversão da posição original supostamente representada pela “ortodoxia” de Pitta: “a noção de barbárie é um tanto impotente. Eu também não tenho outra, mas acho que é aí que termina a teorização. E quando nós mesmos entramos gradualmente no estado de barbárie, então é claro que a teorização também cessa”. [57]Cf. Interview mit Robert Kurz, Geführt am 26.07.1994 em Exit-online (grifo meu). Se é um fato que a barbárie, na sua forma de dissolução progressiva da socialização pelo valor, é um “estado” social cada vez mais presente, não significa que seja possível elaborar a partir desse quadro uma “economia política da barbárie”, nem uma análise de situações particulares da administração de crise a partir dessa noção genérica e “impotente”.  

    Essa contraposição entre diferentes recepções locais da teoria da crise nos ajuda a colocar no primeiro plano o problema das mediações. Predominaram até aqui na recepção da crítica do valor tentativas teoricamente improvisadas de contornar esse problema fundamental. Produziu-se, assim, uma convergência de dois tipos principais de imediatismo: a aplicação direta de uma teoria econômica geral, ainda que disfarçada de teoria da mediação, a casos particulares e, de outro lado, a redução da relação estrutural entre democracia de mercado e processo de barbarização a uma identidade pura e simples. A essas duas formas de imediatismo se soma uma terceira, que consiste na redução da crítica do valor e da teoria da crise a uma exposição interminável das categoriais teóricas gerais, da qual muitas vezes se deriva um gesto “anti-político” não mediado [58]O Crítica Radical, p.e., se constituiu como movimento social local imediatamente “anti-político”, sem avançar em uma iniciativa de elaboração teórica. Em vez da separação rígida entre … Continue reading de recusa ou uma tentativa de explicação da dinâmica de crise derivada diretamente da “lógica da mercadoria”, sem consideração pelos processos históricos.

Tudo isso faz parte de uma trajetória já relativamente longa de recepção intensa, mas extremamente superficial de uma nova teorização, cujos fundamentos permanecem em grande parte incompreendidos. Muitas vezes os críticos dessa teoria têm apontado tais distorções como formas caricaturais de análise do real e certamente não conta a favor da crítica do valor que seus representantes locais amiúde tenham assumido a caricatura como algo positivo. O resultado é um debate todo orientado por falsos problemas e pela bricolagem teórica. Resguardar-se contra as armadilhas do imediatismo é provavelmente a tarefa a mais importante, hoje, na recepção da crítica do valor. Junto com ela, é preciso avançar na reconstituição criteriosa dos principais momentos dessa elaboração, o que exige uma atividade paciente e não orientada para a “aplicação” imediata, seja no ativismo raso ou na produção em série de “teses”.      Os déficits teóricos imensos na recepção da crítica do valor não são de modo algum um problema teórico puro. Jappe afirma que “a crítica do valor não pode ser usada para lançar uma carreira ou obter financiamento”. Seu desenvolvimento no Brasil, no entanto, foi marcado nos últimos anos precisamente pela integração da teoria no aparato da universidade e na massificação da “pesquisa” em sentido positivista. Isso só foi possível porque ela, de fato, “traiu a si mesma e a sua especificidade”[59]Vivos e mortos na crítica do valor, cit.Muitas vezes, as exigências da teoria e as da pesquisa institucional se chocam diretamente, sempre em prejuízo da primeira, pois os critérios burocráticos de financiamento, a pressão por resultados e o “networking” falam mais alto. Isso contribui de modo decisivo para o conjunto de distorções que descrevi no padrão local de recepção da crítica do valor. A mais evidente é a contradição entre o plano teórico geral da teoria da crise e a pesquisas de casos particulares. Enquanto “o verdadeiro movimento do capital global real só pode ser registrado de forma empírica com base nos seus efeitos sociais”,[60]Robert Kurz, Dinheiro sem valor, p. 159 (grifo meu).produziu-se aqui, de modo inverso, uma tentativa de associação direta dos dados econômicos empíricos com o movimento global, descartando precisamente os efeitos sociais empíricos. Nesse sentido, a via que buscava uma aproximação indireta com a teoria da crise por meio dos seus “efeitos sociais” mostrou-se mais consistente, mesmo que ela ainda não tenha estabelecido adequadamente a mediação dos desenvolvimentos sociais autoritários com a dinâmica geral do processo fetichista.[61]Isso, no entanto, é completamente diferente de interpretar a cisão como um efeito secundário de processos econômicos, uma vez que o “cindido” faz parte do modo como é estruturada a dinâmica … Continue reading A partir dessa via, a mediação do empírico pode aparecer, juntamente com a crítica da ideologia, como um elemento de “concretização” da análise do real, mas por si só ela não fornece qualquer “acesso” direto ao contexto social global.

     Apesar de todas as diferenças de abordagem, permanece, porém, o fato de que nenhuma dessas vias de recepção da crítica do valor abandonou a teoria da crise. Em vez disso, elas tentaram explicar um êxito econômico conjuntural a partir dessa teoria. Esse é, portanto, um falso problema. É verdade que houve uma oscilação do interesse pela teoria da crise que corresponde, até certo ponto, à situação econômica local e mundial, mas reduzir a ausência de uma ampla teorização sistemática sobre a crise neste contexto a um reflexo da economia é negligenciar fatores decisivos como o padrão ideológico de recepção da teoria e a dinâmica particular dos núcleos envolvidos nessa recepção. A descrição abreviada de Jappe sobre o caso brasileiro perde de vista, portanto, o que precisa ser explicado: por que, afinal, ainda não se desenvolveram realmente “grupos de crítica do valor” no Brasil, a despeito de uma influência difusa de suas ideias e de um conjunto relevante de publicações que há muito circulam em língua portuguesa?   

   Uma resposta inicial passa pelo reconhecimento dos limites da análise doutrinária a partir das “categorias fundamentais”, sem um tratamento adequado da reprodução social. Não há dúvida de que isso leva a uma abordagem dedutivista e unilateralmente “econômica” sem capacidade explicativa real. De um lado, o contexto social geral não pode ser “acessado” pelas partes; de outro, ele não informa diretamente o estado de cada particularidade. Do ponto de vista da análise de contextos locais, uma solução é, portanto, a ênfase nos “efeitos sociais”, que já não podem ser pensados como formas secundárias de manifestação. Isso implica, antes de tudo, a renúncia à pretensão positivista de estabelecer uma identidade entre o local e o geral. Essa via representa uma solução não imediatista da relação entre teoria e empiria, ou, entre a análise teórica do processo de crise e a dimensão da particularidade. Isso também permite pensar a relação teoria-prática de forma menos dicotômica, mas sem cair no imediatismo. Nem a articulação de iniciativas no plano local e imediato pode prescindir da elaboração teórica, nem esta precisa se dissociar completamente das dinâmicas locais. Muito pelo contrário. Em última análise, trata-se de uma disputa prática, repleta de tarefas palpáveis, pela interpretação do sentido da crise atual e suas implicações. Como essa interpretação pode se tornar “prática” no sentido de sua apropriação por forças sociais é algo que, no entanto, escapa aos limites da própria teorização.


Marcos Barreira

é doutor em Psicologia Social pela UERJ e co-autor do livro No Rastro do Colapso com Maurílio Botelho, Consequência Editora, 2024. Tradutor e editor da edição em português do site Krisis.

References
1 Anselm Jappe, Vivos e mortos na crítica do valor. Algumas teses apressadas sobre o estado atual da crítica do valor. Zero a esquerda, 2024.
2 Ernst Lohoff e Norbert Trenkle, “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social” – entrevista com Marcos Barreira e Javier Blank (2018), in: https://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-de-emancipao-social/.
3 Robert Kurz, O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
4 Em todo caso, seu livro O colapso da modernização, de 1991, já encontrou um público mais amplo na Alemanha do que as publicações iniciais da então chamada “crítica fundamental do valor” e, no final dos anos 1990, O livro negro do capitalismo, de Robert Kurz, também obteve ampla repercussão naquele país.
5 Anselm Jappe, op. cit.
6 Algumas publicações relevantes: Robert Kurz, A crise do valor de troca (Consequência, 2018), Grupo Krisis, Manifesto contra o trabalho – edição de 20 anos (Krisis/Igra Kniga, 2019), dossiê “Valor” em Margem esquerda n. 35, com textos de Norbert Trenkle, Ernst Lohoff, Tomasz Konicz (Boitempo, 2020), Anselm Jappe, Sociedade autofágica, coleção Crise & Crítica (Ed. Elefante, 2021), Moishe Postone, Antissemitismo e nacional-socialismo (Consequência Ed, 2021), Tomasz Konicz, Ucrânia: o “grande jogo” (Consequência, 2022) e a coletânea No rastro do colapso. Reflexões sobre a obra de Robert Kurz, organizada por Marcos Barreira e Maurílio L. Botelho (Consequência 2024).
7 Roberto Schwarz, “Ainda o livro de Kurz”, Novos Estudos – CEBRAP, n. 37, nov. 1993, p. 137.
8 Para uma análise do debate do CEBRAP em torno do livro de Kurz, ver Maurilio L. Botelho, “Um desencontro teórico: notas sobre a recepção inicial de O colapso da modernização no Brasil”; para um comentário sobre a relação entre Kurz e Schwarz, ver Cláudio R. Duarte, “O sino que toca e a crítica que resta: entre dois Robertos – um encontro no posto avançado da crise global”, ambos em No rastro do colapso.
9 O conceito marxiano de fetichismo ficou durante muito tempo preso a leituras subjetivistas, que denunciavam a “falsa consciência” ou o consumismo exagerado dos indivíduos no capitalismo, ou ainda à leitura puramente filológica dos textos de Marx. Em ambos os casos, esse problema permaneceu apartado da análise da dinâmica social real e das suas tendências destrutivas.
10 Vide o interesse crescente pela “Nova Leitura de Marx”.
11 Ruy Fausto, Marx: Lógica e política, vol. III, Ed. 34, SP, 2002, p. 34.
12 Não se trata de uma “peculiaridade local”. Essa reação seguiu, em linhas gerais, o mesmo padrão de argumentação diante da difusão do “Manifesto”, por exemplo, em países como França e Itália e também na Alemanha, como se pode ver na réplica de Norbert Trenkle aos críticos do “Manifesto” em Krisis 28 (2004).
13 Cf. “Krisis chega ao Brasil”, Folha de São Paulo, 1999.
14 O Manifesto contra o trabalho apareceu inicialmente em uma pequena tiragem divulgada pelo Labur-USP e, pouco depois, na coleção Baderna da editora Conrad. Uma edição comemorativa de vinte anos, como nova tradução, apareceu em 2019 [Krisis/Igra Kniga, trad.: Javier Blank e Marcos Barreira].
15 Na mesma época, um terceiro grupo, em Fortaleza, desenvolveu uma aproximação paradoxalmente “política” desse debate sobre a crise do capitalismo, apresentando-se como um “partido da emancipação”.
16 Um texto antigo de Claudio R. Duarte, O ponto aporético e sem retorno, que comenta as teses do “Manifesto”,nos dá um exemplo: ele opera basicamente com elementos fragmentários da teoria da crise lidos até certo ponto a partir do referencial da Teoria Crítica, sem uma compreensão adequada das diferenças subjacentes entre as duas abordagens. Não foi um caso isolado. Durante algum tempo, prevaleceu na recepção brasileira o entendimento da teoria da crise como uma versão de “fim de linha” da Teoria Crítica, ou seja, uma “Teoria Crítica” para tempos de crise, que negligenciava a especificidade de muitas análises de crítica do valor.
17 Poderíamos mencionar, em todo caso, uma tentativa inicial como a de Célia Nunes, que, partindo do exemplo de Moçambique, interpretou o fim das ilusões de desenvolvimento em uma sociedade periférica a partir da ideia de um esgotamento da sociedade do trabalho. Célia Nunes, A armadilha, RJ, Educam/Clacso, 2000.
18 Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria, Antígona, Portugal, 2006,  p. 140-1.
19 Maurílio Botelho, “Sobre ‘As aventuras da mercadoria’”. Mimeo.
20 Ibidem
21 “Formação do Trabalho e Modernização Retardatária no Brasil”. Esse texto, produzido inicialmente para o debate entre os Grupos de Estudos Crítica do Valor-dissociação (SP, Brasil) e o Grupo Exit! também permaneceu inédito.
22 Toledo, C. de A., Boechat, C. A., & Heidemann, H. D. (2012). “Vinte anos de um grupo de estudos do Labur – crise e crítica do sistema fetichista produtor de mercadorias e da modernização retardatária brasileira”. Revista Do Departamento De Geografia, 154-170.
23 Ver, por exemplo, Ricardo Antunes, que aproxima de modo quase aleatório a crítica do valor das teorias da “perda da centralidade do trabalho” de Offe, Habermas e Gorz. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho, Campinas, SP, Editora Cortez, 1999.
24 Ver o Editorial de Sinal de Menos No.1.
25 De fato, os poucos artigos do contexto da crítica do valor alemã publicados em Sinal de Menos permaneceram sempre como corpos estranhos e não mediados com o conteúdo principal da revista.
26 Esse argumento circular foi “formalizado” pela primeira vez por Daniel Cunha em “Penúltimos combates”, Sinal de Menos, vol. 1., tornando-se, a parir daí, um modelo de “anticrítica” nesse contexto. Em seguida, esse modelo foi aplicado de forma quase idêntica à “crítica do sujeito”.
27 Um caso parcialmente discrepante é o estudo de Joelton Nascimento, Crítica do valor e crítica do direito (SP, Perse: 2014), que contrapõe à “crítica de tipo classista” uma crítica determinada pelo problema da forma da mercadoria. Por outro lado, ele segue o mesmo padrão do projeto coletivo de Sinal de Menos, que entende a “crítica do valor” não como um campo teórico específico e sim como um conjunto amplo e diferenciado de análises sobre a “forma” da mercadoria e do valor. Sendo assim, ele considera, que a “nova” crítica do valor alemã é um desdobramento da “nova leitura de Marx” dos anos 1970 e que ambas de algum modo remontam, nessa análise das formas, aos “precursores” dos anos 1920 como Rubin e Pachukanis.
28 Roberto Schwarz, “O livro audacioso de Robert Kurz”, Sequências brasileiras. Ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 1999, p. 186.
29 Roberto Schwarz, “Fim de século”, Folha de São Paulo, -4/12/1994.
30 Por outro lado, a inconsistência dessa posição é exemplificada no fato de que, em Sinal de Menos, as referências quase onipresentes à “luta de classes” e a um proletariado “selvagem” derivadas do operaísmo ou da tradição do comunismo de esquerda muito rapidamente se transformavam, sem transição, na defesa da administração política “realista” da crise, que a esquerda tradicional e sociologista denunciava como “conciliação de classe”. A posição política-classista permanecia, assim, sem qualquer consequência em termos analíticos.
31 Para uma análise do crescimento das economias asiáticas a partir do ponto de vista da crítica do valor ver Norbert Trenkle, “O trabalho dependente da injeção de capital fictício” (mimeo), Tomaz Konicz, “O colapso da modernização 30 anos depois” e Marcos Barreira e Maurilio L. Botelho, “Capitalismo asiático e crise global”, ambos em No rastro do colapso.
32 Esse também foi um período em que o grupo do Rio de Janeiro passou por uma forte tendência de dissolução. Havia em seu interior duas posições antagônicas: uma orientada para o desenvolvimento sistemático da abordagem crítica do valor e da teoria da crise; e uma orientada para a dispersão dos conteúdos em um amálgama de diferentes abordagens, da Teoria Crítica às interpretações marxistas tradicionais sobre a crise, culminando na relação imediatista com movimentos sociais. Dessa bifurcação, surgiu, de um lado, um projeto sistemático de recepção da crítica do valor e, de outro, uma tendência fortemente associada ao “modus” universitário individualizado e à improvisação teórica. Por exemplo, a versão substituta “teórico-crítica” da teoria da crise centrada na relação civilização-barbárie. Alguns exemplares dessa formulação apareceram na primeira parte do volume Crítica da imagem e educação, organizado por Roberta Lobo (Rio de Janeiro, EPSJV, 2010) e fornecem um exemplo desse direcionamento. Estava em questão, no fundo, o “direito de cidadania” da crítica do valor no Brasil, após duas décadas de recepção superficial marcada pela sua apropriação por leituras substitutas e pela tendência de dissolução no ecletismo universitário. A resolução dessa tensão foi um momento decisivo para se formar um projeto capaz de reconstituir criteriosamente o itinerário reflexivo e a estrutura teórico-conceitual da crítica do valor.
33 Ver, Até o último Homem: visões cariocas da administração armada da vida social, Boitempo, SP, 2013.
34 Marcos Barreira, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, em Até o último homem.
35 Esse ponto, que foi enfatizado por Kurz em Dinheiro sem valor, de 2012, já está presente nos primeiros escritos da crítica do valor, embora não sem contradições. Em A crise do valor de troca, de 1986, Kurz aponta, por exemplo, a contradição entre o ponto de vista dos capitais individuais e a apreensão da dimensão social total da reprodução capitalista: “o capital não pode realmente aparecer como capital total, mas apenas – qualquer que sejam as suas formas – como capital individual em concorrência” (Robert Kurz, “A crise do valor de troca”, [trad. André Villar Gomez e Marcos Barreira] Consequência, RJ, 2018 p. 64).
36 Dinheiro sem valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política [Tradução de Lumir Nahodil], Lisboa, Antígona, 2014, p. 267.
37 O problema das “particularidades nacionais”, por outro lado, não é de maneira nenhuma estranho ao debate da crítica do valor, a exemplo dos ensaios de Kurz sobre a crise da unificação alemã (ver, Robert Kurz, O Retorno de Potemkin. Capitalismo de fachada e conflito distributivo na Alemanha, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.) no início dos anos 1990 ou o livro de Ernst Lohoff sobre o colapso da antiga Iugoslávia, que ilustravam as novas linhas de conflito e as formas de decadência da mediação política no processo de crise. Tais incursões no campo da particularidade, que traziam elementos sócio-históricos de concretização da análise da crise e da crítica da ideologia, por outro lado, não continham, em si mesmas, uma chave para a fundamentação teórica do processo de crise.
38 Quanto a isso, é preciso confrontar a leitura segundo a qual o Brasil teria se integrado no processo de industrialização em grande escala dos países emergentes, como China e Índia, com base na expansão global do capital fictício (ver, p.e., Lohoff/Trenkle, La Grande Dévalorisation, Post-éditions, 2014). Nosso argumento, em vez disso, é que a economia brasileira havia se deslocado para uma função de fornecedora de matérias-primas para o surto de industrialização da China, que suplantou os EUA como nosso maior parceiro comercial a partir do boom das commodities (Ver, p.e., Marcos Barreira e Maurilio L. Botelho, A implosão do “pacto social” brasileiro, Blog Junho, Maio/2016). Essa forma de inserção – como apontado em muitas análises – intensificou o processo de reprimarização da economia brasileira em curso desde os anos 1990.
39 Maurilio L. Botelho, “Trabalhadores no mercado de capitais: ‘capitalismo para poucos’ e sindicalismo financeiro dos fundos de pensão”; André Villar Gomez, “Brasil potência? As ilusões do desenvolvimento em Raúl Zibechi e Giovanni Arrighi”; Marcos Barreira, “Por teus frutos os conhecereis: sobre o novo evangelho do ‘capitalismo popular’” (os textos fazem parte de uma coletânea ainda em preparo).
40 Também do ponto de vista das disputas ideológicas há uma diferença fundamental entre o contexto latino-americano e o centro do capitalismo. Nos países centrais, o discurso neoliberal deu lugar a um “novo keynesianismo” de crise, no qual os bancos centrais substituíam os “portadores de esperança” na economia privada e inundavam os mercados com crédito barato. Essa mesma prática, antecipada pelo governo brasileiro antes da crise de 2008 com medidas de ativismo estatal, desencadearam fortes protestos de massa com base em ideias radicais de mercado. Esses protestos uniram os políticos liberais e os agentes do mercado financeiros em uma guerra ideológica contra qualquer “desvio” na política econômica e monetária Ver, Marcos Barreira, Terra arrasada, Blog da Boitempo, 28/11/2016.
41 Marcos Barreira, André Villar Gomez, A catástrofe como modelo. Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais durante o período 2003-2013, Sinal de Menos n. 11, vol 1, 2015.
42 Marcos Barreira e Maurilio L. Botelho, A implosão do “pacto social” brasileiro, cit.
43 Maurilio L. Botelho, Guerra aos “vagabundos”: Sobre os fundamentos sociais da militarização em curso. Blog da Boitempo, 12/02/2018; Marcos Barreira, Brasil em tempos de declínio social, Margem Esquerda n. 35, Boitempo, 2020.
44 Já em meados dos anos 2000 a maioria dos integrantes dessa primeira geração havia abdicado de uma perspectiva crítica do valor e, de modo geral, seguiu o padrão de reação da esquerda tradicional, ora criticado a ausência de “prática política”, ora “refutando” a teoria da crise a partir de fragmentos isolados.Por exemplo, a tentativa de “superar” os déficits da crítica do valor antes mesmo de obter uma visão coerente de conjunto dessa teoria e do seu desenvolvimento, “politizando” o debate sobre o capital fictício com uma argumentação de esquerda tradicional em torno da “reprodução permanente” da “acumulação primitiva” e da função estatal determinante na reprodução capitalista. Ver, Caio B. Mello, “Uma contribuição para o estudo de crédito em O Capital de Karl Marx”. 2007. Tese (Doutorado em História Econômica) – Universidade de São Paulo.
45 Toledo, C. de A., Boechat, C. A., & Heidemann, H. D. (2012). “Vinte anos de um grupo de estudos do Labur”. Revista Do Departamento de Geografia, 154-170.
46 Robert Kurz, Op. cit., p. 254.
47 Ver Fábio T. Pitta, “Modernização retardatária e agroindústria sucroalcooleira paulista: o Proálcool como reprodução fictícia do capital em crise”, dissertação de Mestrado, FFLCH, USP, 2011.
48 Fábio T. Pitta, “O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho”, Sinal de Menos n. 14, vol. 1, 2020.
49 Cássio Arruda Boechat, “Capital fictício e conflitos na reprodução crítica do grupo francês Tereos no agronegócio sucroenergético paulista”, p. 170, em Cássio A. Boechat (Org.), Geografia da crise no agronegócio sucroenergético, Consequência, RJ, 2020.
50 Para uma análise mais detalhada desse tratamento peculiar da teoria da crise, ver: Marcos Barreira, O jargão da mediação. Notas sobre “O crescimento e a crise da economia brasileira”, de Fábio Pitta. Inédito [Esse texto, escrito inicialmente para Sinal de Menos, será publicado em uma coletânea ainda em preparo sobre a teoria da crise].
51 Dinheiro sem valor, p. 163.
52 Idem, p. 29.
53 Ibidem. Uma exceção digna de nota é a pesquisa de Ana Carolina Gonçalves Leite, no volume Geografia da crise no agronegócio sucroenergético, que aborda um caso particular de expansão do agronegócio sem a confusão de planos de análise presente nos demais autores.
54 Em sua crítica a Pitta, em Sinal de Menos, n. 15, Claudio Duarte apontou com razão que a ideia de “reprodução fictícia”, inexistente na teoria da crise da crítica do valor, remete diretamente às teorias pós-modernas da reprodução dessubstancializada da sociedade. De acordo com Pitta, uma vez alcançado o “limite absoluto” do capital, tudo se torna imediatamente fictício. Como observei no comentário já referido ao texto de Pitta, essa crítica de Cláudio Duarte também esbarra em alguns problemas: ela pensa a dinâmica capitalista atual, sem maiores justificativas, como um conjunto de processos simultâneos e interligados de simulação e valorização real. A partir dessa “justaposição”, porém, perde-se o fato de que a mediação do crédito realmente se sobrepõe cada vez mais à criação de valor em escala global. Se em Pitta há o paradoxo puro e simples de uma reprodução fictícia-real da sociedade, que, no entanto, já atingiu um limite absoluto, a crítica trivializada dessa formulação como uma relação de alternância entre momentos ora mais “reais” ora mais “especulativos” leva diretamente à ideia de que a reprodução capitalista segue um rumo inteiramente normal. Trata-se, portanto, de uma negação implícita (ou nem tanto) da crise fundamental, da mesma forma que a ideia de uma “reprodução fictícia” nega, por outra via, o processo de crise. Além disso, o crítico parece não ter a menor ideia do modo como Pitta inverte os aspectos centrais da teoria da crise e, assim, pretende fazer dele um legítimo representante da “ortodoxia” dessa teoria, que fica, portanto, reduzida à sua inversão no âmbito das pesquisas do Labur. Embora contenha elementos parcialmente corretos no que diz respeito aos aspectos mais destacadamente grosseiros do ensaio de Pitta, essa posição é também um exemplo adicional do déficit teórico do debate sobre a teoria da crise no contexto de Sinal de Menos.
55 Também isso foi corretamente observado por Cláudio Duarte em sua crítica.
56 Em seu texto sobre o diagnóstico do colapso e a teoria do valor-cisão, Agnes de Oliveira Costa esboçou uma formulação que rompe com esse padrão e aponta a relação intrínseca entre o plano da cisão e a dinâmica de crise. Ver, O diagnóstico do colapso e a crítica do valor-cisão” em No rastro do colapso
57 Cf. Interview mit Robert Kurz, Geführt am 26.07.1994 em Exit-online (grifo meu).
58 O Crítica Radical, p.e., se constituiu como movimento social local imediatamente “anti-político”, sem avançar em uma iniciativa de elaboração teórica. Em vez da separação rígida entre teoria e prática que aparece no texto recente de Jappe, ele se orienta pela intenção inversa, ou seja, pelo uso imediatista das teses sobre a crise do capitalismo para fins de agitação.
59 Vivos e mortos na crítica do valor, cit.
60 Robert Kurz, Dinheiro sem valor, p. 159 (grifo meu).
61 Isso, no entanto, é completamente diferente de interpretar a cisão como um efeito secundário de processos econômicos, uma vez que o “cindido” faz parte do modo como é estruturada a dinâmica social como um todo.

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