Por Slavoj Žižek
1. A COISA HEGELIANA
Michel Foucault uma vez propôs que a filosofia como tal poderia ser rotulada como “antiplatonismo”. Todos os filósofos, começando por Aristóteles, definiram seus projetos se distanciando de Platão, precisamente porque Platão foi o pensador cujo empreendimento delimitou o campo da filosofia. Da mesma forma, poderíamos dizer que o que define a filosofia nos últimos dois séculos é sua dissociação de Hegel, o monstro encarnado do “panteísmo lógico” (a mediação dialética total da realidade, a completa dissolução da realidade no movimento próprio da Ideia). Em oposição a esse “monstro”, várias tentativas afirmaram que há, supostamente, algum elemento que escapa à mediação do conceito, um gesto que já é discernível nas três grandes inversões pós-hegelianas1 que se opuseram ao absolutismo da Ideia em nome do abismo irracional da Vontade (Schelling), da existência paradoxal do indivíduo (Kierkegaard) e dos processos produtivos da vida (Marx). Mesmo os comentaristas mais favoráveis a Hegel, apesar de se identificarem com ele, se recusam a ultrapassar o limite que constitui o Conhecimento Absoluto. Assim, Jean Hyppolite insiste que a tradição pós-hegeliana permite a abertura irredutível do processo histórico-temporal por meio de uma repetição vazia, destruindo a estrutura do progresso da Razão… Em resumo, cada uma dessas relações com o sistema hegeliano é sempre a de um “Eu sei bem, mas mesmo assim.”2 Sabe-se bem que Hegel afirma o caráter fundamentalmente antagonista das ações, o descentramento do sujeito, etc., mas mesmo assim… essa divisão eventualmente é superada na automediação da Ideia absoluta que acaba por suturar todas as feridas. A posição do Conhecimento Absoluto, a reconciliação final, desempenha aqui o papel da Coisa Hegeliana: um monstro assustador e ridículo, do qual é melhor manter certa distância, algo que é ao mesmo tempo impossível (o Conhecimento Absoluto é, claro, inatingível, um Ideal irrealizável) e proibido (o Conhecimento Absoluto deve ser evitado, pois ameaça mortificar toda a riqueza da vida através do movimento próprio do conceito). Em outras palavras, qualquer tentativa de se definir dentro da esfera de influência de Hegel requer um ponto de identificação bloqueado – a Coisa deve sempre ser sacrificada…
Para nós, essa figura de Hegel como “panteísta lógico”, que devora e mortifica a substância viva do particular, é o Real de seus críticos, “Real” no sentido lacaniano: a construção de um ponto que efetivamente não existe (um monstro sem relação com Hegel em si), mas que, no entanto, deve ser pressuposto para justificar nossa referência negativa ao outro, ou seja, nosso esforço de distanciamento. De onde vem o horror sentido pelos pós-hegelianos diante do monstro do Conhecimento Absoluto? O que essa construção fantasmática esconde por meio de sua presença fascinante? A resposta: um buraco, um vazio.A melhor maneira de distinguir esse buraco é lendo Hegel com Lacan, ou seja, lendo Hegel em termos da problemática lacaniana da falta no Outro, o vazio traumático contra o qual o processo de significação se articula. Nessa perspectiva, o Conhecimento Absoluto parece ser o nome hegeliano para aquilo que Lacan delineou em sua descrição do passe, o momento final do processo analítico, a experiência da falta no Outro. Se, de acordo com a fórmula célebre de Lacan, Sade nos oferece a verdade de Kant3, então Lacan mesmo nos permite abordar a matriz elementar que resume todo o movimento da dialética hegeliana: Kant com Sade, Hegel com Lacan. O que está implicado, então, por essa relação entre Hegel e Lacan?
Hoje, as coisas parecem claras: embora ninguém negue que Lacan devia uma certa dívida a Hegel, argumenta-se que todas as referências hegelianas são limitadas a empréstimos teóricos específicos e restritas a um período bem definido da obra de Lacan. Entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950, Lacan tentou articular o processo psicanalítico em termos de uma lógica intersubjetiva do reconhecimento do desejo e/ou o desejo de reconhecimento. Já nessa fase, Lacan teve o cuidado de manter distância do fechamento do sistema hegeliano, de um Conhecimento Absoluto aliado ao ideal inatingível de um discurso perfeitamente homogêneo, completo e fechado em si mesmo. Mais tarde, a introdução da lógica do não-todo (pas-tout) e o conceito do Outro barrado (A) tornariam essa referência inicial a Hegel obsoleta. Pode-se imaginar uma oposição mais incompatível do que aquela entre o Conhecimento Absoluto hegeliano – o “círculo de círculos” fechado – e o Outro barrado lacaniano – conhecimento absolutamente vazio? Lacan não é, por excelência, o anti-Hegel?
Mas, ironicamente, é com base na dívida de Lacan para com Hegel que a maioria das críticas procede: Lacan permanece prisioneiro do falocentrismo devido a um hegelianismo subterrâneo que confina a disseminação textual dentro de um círculo teleológico… A tal crítica, os lacanianos poderiam responder, corretamente, enfatizando a ruptura do lacanismo com o hegelianismo – tentando salvar Lacan enfatizando que ele não é e nunca foi um hegeliano. Mas é hora de abordar esse debate sob uma luz diferente, expressando a relação entre Hegel e Lacan de uma maneira original. Na nossa perspectiva, Lacan é fundamentalmente hegeliano, mas sem saber. Seu hegelianismo certamente não está onde se espera – ou seja, em suas referências explícitas a Hegel – mas precisamente na última fase de seu ensino, em sua lógica do não-todo, na ênfase colocada no Real e na falta no Outro. – – E, reciprocamente, uma leitura de Hegel à luz de Lacan nos fornece uma imagem radicalmente diferente daquela comumente assumida do Hegel “panteísta lógico”. Isso tornaria visível um Hegel da lógica do significante, de um processo auto referencial articulado como a positivação repetitiva de um vazio central.
Uma leitura assim afetaria a definição de ambos os termos. Marcariam um Hegel liberto dos resíduos do panteísmo e/ou historicismo, um Hegel da lógica do significante. Consequentemente, tornaria possível perceber claramente o núcleo mais subversivo da doutrina lacaniana, o da falta constitutiva no Outro. É por isso que nosso argumento é, fundamentalmente, dialógico: é impossível desenvolver uma linha de pensamento positiva sem incluir as teses que se opõem a ela, ou seja, na prática, aqueles lugares-comuns já mencionados sobre Hegel, que veriam no hegelianismo a instância por excelência do “imperialismo da razão”, uma economia fechada em que o movimento próprio do Conceitosubsume todas as diferenças e cada dispersão do processo material. Esses lugares-comuns também podem ser encontrados em Lacan, mas são acompanhados por outra concepção de Hegel que não se encontra nas declarações explícitas de Lacan sobre Hegel – razão pela qual passamos por essas declarações, em sua maioria, em silêncio. Para nós, Lacan “não sabe em que ponto é hegeliano”, porque sua leitura de Hegel está inscrita na tradição de Kojève e Hyppolite4. Seria, portanto, necessário, para articular a conexão entre a dialética e a lógica do significante, suspender por enquanto qualquer referência explícita de Lacan a Hegel. […]
2. TRÊS ESTÁGIOS dO SIMBÓLICO
É somente após esclarecer a relação entre a dialética hegeliana e a lógica do significante que se pode situar o “hegelianismo” em Lacan. Vamos examinar os três estágios sucessivos da progressão do conceito do Simbólico em Lacan.
O primeiro estágio, o da “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”5, enfatiza a dimensão intersubjetiva da fala: a fala como meio de reconhecimento intersubjetivo do desejo. Os temas predominantes neste estágio são a simbolização como historicização e a realização simbólica: sintomas, traumas, são os espaços em branco, vazios e não historicizáveis do universo simbólico do sujeito. A análise, então, “realiza no simbólico” essas marcas traumáticas, incluindo-as no universo simbólico ao conferir retroativamente a elas alguma significação. Basicamente, é retida aqui uma concepção fenomenológica da linguagem, próxima à de Merleau-Ponty: o objetivo da análise é produzir o reconhecimento do desejo por meio da “fala plena”, integrar o desejo no universo da significação. De maneira tipicamente fenomenológica, a ordem da fala é identificada com a da significação, e a análise funciona nesse nível: “Toda experiência analítica é uma experiência de significação”6.
O segundo estágio, exemplificado na interpretação de “A Carta Roubada”, é, de certa forma, complementar ao primeiro, assim como a linguagem é complementar à fala. Ele enfatiza a ordem significante como (a de) uma estrutura fechada, diferencial e síncrona: a estrutura significante funciona como um “automatismo” insensato, ao qual o sujeito está sujeitado. A ordem diacrônica da fala, da significação, é assim governada por um automatismo significante insensato, por um jogo diferencial e formalizável que produz o efeito de significação. Essa estrutura que “comanda o jogo” é ocultada pela relação Imaginária – estamos aqui no nível do “esquema L”7:
“Compreendemos, é claro, a importância dessas impregnações Imaginárias (Prägung) nessas parcializações da alternativa simbólica que dão à cadeia simbólica sua aparência. Mas sustentamos que é a lei específica dessa cadeia que governa aqueles efeitos psicanalíticos que são decisivos para o sujeito: como a recusa (Verwerfung), a repressão (Verdrängung), a própria negação (Verneinung) – especificando com ênfase apropriada que esses efeitos seguem tão fielmente o deslocamento (Enstellung) dos fatores imaginários do significante, apesar de sua inércia, figuram apenas como sombras e reflexos nesse processo.”8
Se o primeiro estágio foi “fenomenológico”, este é mais “estruturalista”. O problema deste segundo estágio é que o sujeito – na medida em que é o sujeito do significante, irredutível ao ego Imaginário – é radicalmente impensável: de um lado, há o ego Imaginário, o local da cegueira e da não-reconhecimento, ou seja, do eixo a-a’; por outro lado, um sujeito totalmente sujeitado à estrutura, alienado sem resto e, nesse sentido, dessubjetivado:
“A entrada em operação da função simbólica em seu uso mais radical e absoluto acaba por abolir a ação do indivíduo de tal forma que, pelo mesmo token, elimina sua relação trágica com o mundo… No coração do fluxo de eventos, do funcionamento da razão, o sujeito, desde o primeiro movimento, se encontra a ser nada mais que um peão, forçado dentro desse sistema, e excluído de qualquer participação verdadeiramente dramática e, consequentemente, trágica, na realização da verdade.”9
O sujeito que se liberta completamente do eixo a-a’ e se realiza totalmente no Outro, alcançando sua realização simbólica, como sujeito sem ego, sem cegueira Imaginária, será radicalmente dessubjetivado de uma só vez, reduzido a um momento na operação da máquina Simbólica, a “estrutura sem sujeito”.
O terceiro estágio certamente não é, deve-se entender, algum tipo de “síntese” dos dois primeiros, uma combinação da perspectiva fenomenológica da fala e da perspectiva estruturalista da linguagem; esses dois estágios são eles próprios complementares, duas versões do mesmo edifício teórico. O terceiro estágio deve romper com esse edifício comum, com essa relação complementar de uma fala cheia de significação e de uma estrutura auto-suficiente, ao postular um Outro barrado, incompleto, “não-todo”, um Outro articulado contra um vazio, um Outro que carrega dentro de si um núcleo ex-timo, não-simbolizável. É somente trabalhando a partir do Outro barrado () que se pode entender o sujeito do significante (): se o Outro não está fraturado, se é um conjunto completo, a única relação possível do sujeito com a estrutura é a de alienação total, de uma sujeição sem resto; mas a falta no Outro significa que há um resto, um resíduo não integrável no Outro, objeto a, e o sujeito é capaz de evitar a alienação total apenas na medida em que se posiciona como correlato desse resto: <> a. Nesse sentido, é possível conceber um sujeito que é distinto do ego, o lugar do não-reconhecimento Imaginário: um sujeito que não se perde no “processo sem sujeito” da combinação estrutural.
Pode-se abordar essa conjuntura também a partir da questão do desejo: o Outro barrado significa um Outro que não é simplesmente uma máquina anônima, o automatismo de uma combinação estrutural, mas sim um Outro desejante, um Outro que carece do objeto-causa do desejo, um Outro que quer algo do sujeito (Che vuoi?). Pode-se dizer que o sujeito do significante ex-siste na medida em que essa dimensão da pergunta insiste no Outro – não como a pergunta do sujeito confrontado com o enigma do Outro, mas como uma pergunta que emerge do Outro em si.
À primeira vista, pode parecer que a referência lacaniana a Hegel é fundamentalmente limitada ao primeiro estágio, com seus temas de simbolização como historicização, integração no universo simbólico, etc. Ao longo desse período, a leitura lacaniana do texto hegeliano é “mediada” por Kojève e Hyppolite, e os temas predominantes são os de luta e reconciliação final no meio do reconhecimento intersubjetivo, que é a fala. De fato, a realização da realização simbólica, a abolição do sintoma, a integração de todo núcleo traumático no universo simbólico, esse momento final e ideal quando o sujeito é finalmente libertado da opacidade Imaginária, quando os vazios de sua história são preenchidos pela “fala plena” quando a tensão entre “sujeito” e “substância” é finalmente resolvida por essa fala na qual o sujeito é capaz de assumir seu desejo, etc. – não é possível reconhecer esse estado de plenitude como uma versão psicanalítica do “Conhecimento Absoluto” hegeliano: um Outro não barrado, sem sintoma, sem falta, sem núcleo traumático?
Pareceria então que, com a introdução de um Outro barrado, qualquer referência explícita a Hegel é pelo menos relegada para o fundo: o Outro barrado significa precisamente a impossibilidade constitutiva de um Conhecimento Absoluto, da realização simbólica, porque há um vazio, uma falta do significante que acompanha o movimento da simbolização, ou melhor, em outro nível, porque há um nonsense, que emerge necessariamente assim que há o advento do sentido. O campo conceitual do terceiro estágio de Lacan seria assim um campo do Outro que resiste de todos os lados à realização, um Outro esvaziado por um núcleo hipotético de um Real-impossível cuja inércia bloqueia a dialética, a “suprassunção” na e através do símbolo – em resumo, um Outro anti-hegeliano por excelência.
3. DAS UNGESCHEHENMACHEN
Antes de sucumbir muito rapidamente a essa imagem sedutora de um Lacan anti-hegeliano, vale a pena desenvolver a lógica das três etapas da doutrina lacaniana. Isso pode ser feito por meio de vários determinantes. Por exemplo, é possível demonstrar que cada uma dessas três etapas corresponde a uma concepção específica do fim do processo analítico: 1) realização simbólica, a conquista da historicização dos sintomas; 2) a experiência da castração simbólica (“repressão originária”) como uma dimensão que abre para o sujeito o acesso ao seu desejo no nível do Outro; 3) a travessia da fantasia, a perda do objeto que tapa o buraco no Outro. No entanto, a escolha preferível de um determinante é a do “pulsão de morte”: pela simples razão de que o vínculo entre “pulsão de morte” e a ordem simbólica tudo o mais permanecendo constante na teoria lacaniana – é articulado de maneira diferente em cada uma das etapas:
1) Na etapa “hegeliano-fenomenológica”, atua como uma variação sobre o tema hegeliano da “palavra como o assassinato da coisa”: a palavra, o símbolo, não é um simples reflexo, substituição ou representação da coisa; é a própria coisa, ou seja, a coisa é aufgehoben, suprimida-interiorizada, em seu conceito que existe na forma de uma palavra:
“Lembre-se do que Hegel diz sobre o conceito – O conceito é o tempo da coisa. Certamente, o conceito não é a coisa como ela é, pela simples razão de que o conceito estásempre onde a coisa não está, está lá para substituir a coisa… Da coisa, o que pode estar lá? Nem sua forma, nem sua realidade, já que, no estado atual das coisas, todos os assentos estão ocupados. Hegel coloca com extrema rigorosidade – o conceito é o que faz a coisa estar lá, enquanto, ao mesmo tempo, ela não está lá.
Essa identidade na diferença, que caracteriza a relação do conceito com a coisa, é o que também faz da coisa uma coisa e o fato simbolizado…”10
A “pulsão de morte” representa assim a aniquilação da coisa em sua realidade imediata e corporal ao ser simbolizada: a coisa está mais presente em seu símbolo do que em sua realidade imediata. A unidade da coisa, o traço que faz dela uma coisa, é descentrado em relação à realidade da própria coisa: a coisa deve “morrer” em sua realidade para chegar, atravessando seu símbolo, à sua unidade conceitual.
2) Na etapa seguinte, “estruturalista”, a “pulsão de morte” é identificada com a ordem simbólica na medida em que segue suas próprias leis além da experiência Imaginária do sujeito, ou seja, “além do princípio do prazer” – um mecanismo que, por meio de seu automatismo, quebra, perturba o equilíbrio e a homeostase Imaginária do sujeito. A ordem simbólica:
“não é a ordem libidinal na qual o ego está inscrito, juntamente com todos os impulsos. Ela se estende além do princípio do prazer, além dos limites da vida, e é por isso que Freud a identifica com o instinto de morte… A ordem simbólica é rejeitada pela ordem libidinal, que inclui todo o domínio do imaginário, incluindo a estrutura do ego. E o instinto de morte é apenas a máscara da ordem simbólica…”11
3) Na terceira etapa, na qual Lacan destaca o Real como o núcleo impossível/não-simbolizável, a “pulsão de morte” torna-se o nome para aquilo que, seguindo Sade, assume a forma da “segunda morte”: morte simbólica, a aniquilação da rede significante, do texto no qual o sujeito está inscrito, por meio do qual a realidade é historicizada – o nome daquilo que, na experiência psicótica, aparece como o “fim do mundo”, o crepúsculo, o colapso do universo simbólico12. Em outras palavras, a “pulsão de morte” designa a possibilidade a-histórica implicada, exposta pelo processo de simbolização/historicização: a possibilidade de seu apagamento radical.
O conceito freudiano que melhor designa esse ato de aniquilação é das Ungeschehenmachen, “no qual uma ação é cancelada por uma segunda, de modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido”13, ou mais simplesmente, cancelamento retroativo. E não é mera coincidência que se encontre o mesmo termo em Hegel, que define das Ungeschehenmachen como o poder supremo do Espírito14. Esse poder de “desfazer” o passado é concebível apenas no nível simbólico: na vida imediata, em seu circuito, o passado é apenas o passado e como tal é incontestável; mas uma vez que se situa no nível da história enquanto texto, na rede de traços simbólicos, é possível retroceder o que já ocorreu ou apagaro passado. Dessa forma, é possível conceber o Ungeschehenmachen, a mais alta manifestação da negatividade, como a versão hegeliana da “pulsão de morte”: não é um elemento acidental ou marginal na estrutura hegeliana, mas designa o momento crucial do processo dialético, o chamado momento da “negação da negação”, a inversão da “antítese” na “síntese”: a “reconciliação” própria à síntese não é uma superação ou suspensão (seja ela “dialeticamente” ou não) da cisão em algum plano mais elevado, mas uma reversão retroativa que significa que nunca houve nenhuma cisão para começar – “síntese” que retroativamente anula essa cisão. É assim que o enigmático, mas crucial, trecho da Enciclopédia de Hegel deve ser compreendido:
“O cumprimento do propósito infinito consiste, portanto, em suprassumir a ilusão de que ainda não foi cumprido.”15
Não se cumpre o fim ao atingi-lo, mas ao provar que já o atingimos, mesmo quando o caminho para sua realização está oculto à vista. Avançando, ainda não estávamos lá, mas de repente, já estivemos lá o tempo todo – “muito cedo” muda repentinamente para “muito tarde” sem detectar o momento exato de sua transformação. Toda a questão tem a estrutura do encontro perdido: ao longo do caminho, a verdade, que ainda não alcançamos, nos impulsiona como um fantasma, prometendo que nos espera no final do caminho; mas de repente percebemos que sempre estivemos na verdade. O excedente paradoxal que escapa, que se revela como “impossível” nesse encontro perdido do “momento oportuno”, é claro que é o objeto a: a pura aparência que nos impulsiona em direção à verdade, até o momento em que ela aparece subitamente atrás de nós e percebemos que já chegamos antes dela, um ser quimérico que não tem seu “tempo próprio”, persistindo apenas no intervalo entre “muito cedo” e “muito tarde”.
NOTAS
- A linguagem de Zizek aqui é também, ironicamente, a de Louis Althusser, que rejeita qualquer “inversão” materialista da dialética hegeliana. Veja seu “On the Materialist Dialectic: On the Unevenness of Origins”, em For Marx, trad. Ben Brewster, Londres e Nova York, Verso, 1969, pp. 161-218 [nota de tradução]. ↩︎
- Essa fórmula da “negação fetichista” foi desenvolvida por Octave Mannoni em seu “I Know Well, but All the Same…”, em Perversion and the Social Relation, ed. Molly Anne Rothenberg, Dennis A. Foster e Slavoj Zizek, Durham, Duke University Press, 2003, pp. 68-92. ↩︎
- A formulação precisa de Lacan é a seguinte: “Philosophy in the Bedroom vem oito anos depois da Critique of Practical Reason. Uma vez que observamos sua correspondência, então podemos demonstrar que uma completa a outra, e até sugerir que (a Filosofia de Sade) apresenta a verdade da Crítica.” Jacques Lacan, “Kant avec Sade”, em Écrits, Paris, Editions du Seuil, 1966, p. 244 [nota de tradução]. ↩︎
- Alexandre Kojève, Introduction to the Reading of Hegel: Lectures on the “Phenomenology of Spirit”, ed. Raymond Queneau and Allan Bloom, trad. James H. Nichols, Jr., Ítaca e Londres, Cornell University Press, 1969; Jean Hyppolite, Genesis and Structure of Hegel’s “Phenomenology of Spirit”, trad. Samuel Cherniak and John Heckman, Evanston, Northwestern University Press, 1974 [nota de tradução]. ↩︎
- Jacques Lacan, “The Function and Field of Speech and Language in Psychoanalysis”, em Écrits: A Selection, trad. Bruce Fink, Nova York, W. W. Norton, 2002, pp. 31-106 [nota de tradução]. ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar of Jacques Lacan II: The Ego in Freud’s Theory and in the Technique of Psychoanalysis, 1954-55, ed. Jacques-Alain Miller, trad. Sylvana Tomaselli, Nova York, W. W. Norton, 1988, p. 325. ↩︎
- Lacan desenvolve o “esquema L” nos seguintes textos: “On a Question Prior to any Possible Treatment of Psychosis”, em Écrits: A Selection, p. 183; Seminar II: the Ego in Freud’s Theory, pp. 321-6; Seminar III: The Psychoses, 1955-56, ed. Jacques-Alain Miller, trad. Russell Grigg, Nova York, W. W. Norton, 1993, pp. 13-15, 161-2 [nota de tradução]. ↩︎
- Jacques Lacan, “Seminar on ‘The Purloined Letter’”, trad. Jeffrey Mehlman, em The Purloined Poe: Lacan, Derrida and Psychoanalytic Reading, ed. John P. Muller e William J. Richardson, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1988, pp.28-9. ↩︎
- Jacques Lacan, Lacan, Seminar II, 168. ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar of Jacques Lacan I: Freud’s Papers on Technique, 1953-54, ed. Jacques-Alain Miller, trad. John Forrester, Cambridge, Cambridge University Press, 1988, pp.242-3. ↩︎
- Jacques Lacan, Seminar II, p. 326. ↩︎
- Jacques Lacan, Seminar VII: The Ethics of Psychoanalysis, 1959-60, ed. Jacques-Alain Miller, trad. Dennis Porter. Londres e Nova York, Routledge, 1992, pp. 209-12 [nota de tradução]. ↩︎
- Sigmund Freud, “Inhibitions, Symptoms and Anxiety”, em The Penguin Freud Library, 10: On Psychopathology, ed. and trad. James Strachey, Harmondsworth, Penguin, 1979, p. 274. ↩︎
- G. W. F. Hegel, Phenomenology of Spirit, trad. A. V. Miller, Oxford, Oxford University Press, 1977, p. 402. ↩︎
- G. W. F. Hegel, The Encyclopedia of Logic: Part I of the Encyclopedia of Philosophical Sciences with the Zusädtze, trad. T. F. Geraets, W. A. Suchting and H. S. Harris, Indianapolis, Hackett, 1991, p. 286. ↩︎
Este ensaio foi originalmente publicado em francês em Le plus sublime des hystériques Hegel passe, Broché, Paris, 1999. Aparece em Interogating the Real, Londres: Continuum, 2005, editado por Rex Butler e Scott Stephens.
Texto original: https://www.lacan.com/zizlacan1.htm
Leonardo Silvério
Tradutor, artista, ensaísta e mestrando em Filosofia na USP na área de Estética e Filosofia da Arte. Mais um zero à esquerda.