O presente ensaio de Herbert Marcuse faz parte da coletânea Negations – Essays in Critical Theory, editada pela Beacon Press em 1968, a qual continha traduções de ensaios do filósofo escritos em alemão na década de 1930 e três ensaios da década de 1960, escritos originalmente em inglês, dentre os quais “Aggressivenes in advanced industrial societies”, inédito até então. Na tradução que apresentamos, Marcuse identifica características que combinadas formariam a síndrome da sociedade afluente, definida como a exigência do adoecimento dos indivíduos pela sociedade tecnocapitalista para funcionar ‘normalmente’. Marcuse descreve uma sociedade tendencialmente totalitária de dominação e controle de todas as instâncias possíveis, estruturais, superestruturais, instintuais, voltada para a sua própria manutenção enquanto sistema calculado de meios tecnocientíficos justificados por validação recursiva. Esta sociedade põe o critério de normalidade para a saúde psíquica dos indivíduos enquanto adequados ao funcionamento planificado, o qual tem normas, valores e comportamentos nocivos à potencialização da vida, da paz e da liberdade; ou seja, é um problema enraizado no psiquismo profundo de cada um e fomentado por processos coordenados de eficiência e desempenho quantificáveis. A partir dessa lógica, humano tido como psiquicamente saudável é aquele que aceita e introjeta como sua própria vontade a repressão excessiva de si mesmo, a restrição das possibilidades libertadoras, e a intensificação da agressividade generalizada. A única possibilidade de saída desse complexo de forças repressivas seria, para o autor, a luta política contra o todo desta sociedade.

(N. DA T.)

Proponho considerar aqui as tensões e os tensionamentos na chamada ‘sociedade afluente’, expressão que foi cunhada (correta ou incorretamente) para descrever a sociedade americana contemporânea. Suas características principais são: (1) uma capacidade técnica e industrial abundante que é, em grande medida, utilizada na produção e distribuição de bens de luxo, aparelhos, desperdício, obsolescência programada, equipamento militar e paramilitar – em suma, naquilo que os economistas e sociólogos costumam chamar de bens ‘improdutivos’ e serviços; (2) um crescente padrão de vida, estendido também às partes da população previamente desprivilegiadas; (3) um alto grau de concentração de poder econômico e político, combinado com um alto grau de organização e intervenção governamental na economia; (4) científicos e pseudocientíficos, intervenção, controle e manipulação de comportamentos privados e grupais, tanto no trabalho quanto no lazer (incluindo o comportamento do psiquismo, da alma, do inconsciente e do subconsciente) para propósitos comerciais e políticos. Todas essas tendências são interrelacionadas: elas criam a síndrome que expressa o funcionamento normal da ‘sociedade afluente’. Minha tarefa aqui não é demonstrar essa interrelação; tomo sua existência como a base sociológica para a tese que quero apresentar, nomeadamente, que as tensões e os tensionamentos sofridos pelos indivíduos na sociedade afluente estão fundamentados no funcionamento normal desta sociedade (e do indivíduo!), em vez de nos seus distúrbios e doenças.

‘Funcionamento normal’: penso que a definição não apresenta dificuldades para o médico. O organismo funciona normalmente se funciona, sem distúrbio, de acordo com a estrutura biológica e fisiológica do corpo humano. As faculdades e capacidades humanas são certamente muito diferentes dentre os membros da espécie, e esta mesma mudou grandemente no curso da sua história, mas essas mudanças ocorreram em uma base biológica e fisiológica que permaneceu largamente constante. Para ter certeza, o médico, ao fazer seu diagnóstico e propor um tratamento, levará em consideração o ambiente, a formação e a ocupação do paciente; esses fatores podem limitar até onde o funcionamento normal pode ser definido e alcançado, ou talvez tornem essa definição impossível, mas, como critério e fim, a normalidade permanece um conceito claro e definido. Enquanto tal, é idêntico a ‘saúde’, e os seus vários desvios são vários graus de ‘doença’.

            A situação do psiquiatra parece ser bem diferente. À primeira vista, a normalidade parece ser definida pelos mesmos parâmetros que o médico usa. O funcionamento normal da mente (psyche, psyche-soma) é aquele que capacita o indivíduo a performar, a funcionar de acordo com sua posição como criança, adolescente, parente, como pessoa solteira ou casada, de acordo com seu trabalho, profissão, status. Mas essa definição contém fatores de uma dimensão inteiramente nova, nomeadamente, aquela da sociedade, e a sociedade é um fator de normalidade em um sentido extremamente mais essencial do que aquele da influência externa, tanto que esse ‘normal’ parece ser uma condição social e institucional, em vez de individual. Provavelmente, é fácil concordar com o que é o funcionamento normal do trato digestivo, dos pulmões e do coração, mas o que é o funcionamento normal da mente na atividade sexual, em outras relações interpessoais, no trabalho e no lazer, em uma reunião de diretores, no campo de golfe, nas favelas, na prisão e no exército? Enquanto o funcionamento normal do trato digestivo e dos pulmões é provavelmente o mesmo no caso de um executivo saudável ou de um trabalhador saudável, isso não é verdade para as suas mentes. De fato, um seria bastante anormal se regularmente pensasse, sentisse e operasse como o outro. E o que é uma atividade sexual ‘normal’, uma família ‘normal’, uma ocupação ‘normal’?

O psiquiatra pode proceder como o clínico geral e direcionar a terapia para fazer o paciente funcionar na sua família, no seu trabalho ou ambiente, enquanto tenta, tanto quanto esteja em seu poder, influenciar e até mudar os fatores ambientais. Os limites se farão presentes, por exemplo, se as tensões e os tensionamentos mentais do paciente forem causados, não apenas por certas más condições em seu emprego, em sua vizinhança, em seu status social, mas pela própria natureza do emprego, da vizinhança, do status – em sua condição normal. Então, torná-lo normal para essa condição significaria normalizar as tensões e os tensionamentos, ou, dito mais brutalmente: torná-lo capaz de ser doente, de viver sua doença como saúde, sem perceber que está doente precisamente quando vê a si mesmo e é visto como saudável e normal. Esse seria o caso se seu trabalho for, por natureza, ‘embotado’, emburrecedor, viciado (ainda que o trabalho seja bem remunerado e ‘socialmente’ necessário), ou se a pessoa pertencer a um grupo minoritário desprivilegiado na sociedade estabelecida, tradicionalmente pobre e empregado principalmente em trabalhos braçais subservientes e ‘sujos’. Mas seria o caso também (em formas muito diferentes) do outro lado do muro, entre os magnatas dos negócios e da política, onde o desempenho eficiente e lucrativo exige (e reproduz) as qualidades da crueldade esperta, da indiferença moral, e da agressividade persistente. Em tais casos, o funcionamento ‘normal’ seria equivalente à distorção e à mutilação do ser humano – sem importar o quão modestamente se possa definir as qualidades humanas do ser humano. Eric Fromm escreveu A sociedade sã; trata-se de uma sociedade futura, não da estabelecida, implicando que a sociedade estabelecida não é sã, mas insana. Não é o indivíduo que funciona normal, adequada e sadiamente como cidadão de uma sociedade doente – não é ele mesmo doente? E uma sociedade doente não requereria um conceito antagônico de saúde mental, um metaconceito designando (e preservando) as qualidades mentais que são banidas, contidas, ou distorcidas pela ‘sanidade’ prevalente na sociedade doente? (Por exemplo, saúde mental sendo equivalente à habilidade de viver como dissidente, de viver uma vida desajustada.)

Como tentativa de definição de ‘sociedade doente’ podemos dizer que uma sociedade é doente quando suas instituições e relações básicas, sua estrutura, são tais que não permitem o uso dos recursos materiais e intelectuais disponíveis para os ótimos desenvolvimento e satisfação das necessidades individuais. Quanto maior for a discrepância entre as condições humanas potenciais e reais, maior será a necessidade social daquilo que chamo de ‘mais-repressão’ (surplus repression), isto é, a repressão requerida não pelo crescimento e a preservação da civilização, mas pelo interesse investido na manutenção da sociedade estabelecida. Tal mais-repressão introduz (por cima de tudo, ou melhor, entranha nos conflitos sociais) novas tensões e tensionamentos nos indivíduos. Usualmente manejada pelo trabalho normal do processo social, o qual assegura ajustamento e submissão (medo da perda do emprego ou status, ostracismo, e assim por diante), nenhuma força-tarefa política para a mente é necessária. Mas, na sociedade contemporânea afluente, a discrepância entre os modos estabelecidos de existência e as reais possibilidades de liberdade humana é tão grande que, para prevenir uma explosão, a sociedade tem de garantir uma coordenação mental dos indivíduos mais efetiva: nas suas dimensões inconsciente e consciente, a psyche é invadida e submetida a manipulação e controle sistemáticos.

            Quando falo da mais-repressão ‘requerida’ para a manutenção de uma sociedade, ou da necessidade de manipulação e controle sistemáticos, não me refiro às necessidades sociais, nem às políticas conscientemente inauguradas, experimentadas individualmente: elas podem, portanto, ser experimentadas e inauguradas ou não. Na verdade, falo de tendências, forças que podem ser identificadas por uma análise da sociedade existente e que afirmam a si mesmas mesmo quando os criadores de políticas não estão cientes delas. Elas expressam os requerimentos do aparato estabelecido de produção, distribuição e consumo – requerimentos econômicos, técnicos, políticos, mentais que devem ser realizados para assegurar a continuação do funcionamento do aparato do qual a população depende, e a continuação da função das relações sociais derivadas da organização do aparato. Essas tendências objetivas tornam-se manifestas no rumo da economia, na mudança tecnológica, nas políticas interna e externa de uma nação ou de um grupo de nações, e geram necessidades e objetivos comuns, supraindividuais, nas diferentes classes sociais, grupos influentes e partidos. Sob as condições normais de coesão social, as tendências objetivas subsomem ou absorvem interesses e objetivos individuais sem explodir a sociedade; todavia, o interesse particular não é simplesmente determinado pelo universal: aquele tem o seu próprio raio de liberdade e contribui, de acordo com sua posição social, para a formação do interesse geral – mas, aquém de uma revolução, as necessidades e os objetivos particulares permanecerão definidos pelas tendências objetivas predominantes. Marx acreditava que elas se afirmam ‘pelas costas’ dos indivíduos; nas sociedades avançadas de hoje, isso só é verdade sob fortes qualificações. Engenharia social, gerenciamento científico de empresas e relações humanas, e manipulação de necessidades instintuais são praticadas no nível da criação de políticas e atestam o nível de consciência dentro da cegueira geral.

            Quanto à manipulação e ao controle sistemáticos da psyche na sociedade industrial avançada, trata-se de manipulação e controle para quê, e por quem? Além e acima de toda manipulação particular para o interesse de alguns negócios, políticas, lobbies – o propósito objetivo geral é reconciliar o indivíduo com o modo de existência que sua sociedade lhe impõe. Por causa do alto grau de mais-repressão envolvido em tal reconciliação, é necessário realizar uma catexe libidinal da mercadoria que o indivíduo tem de comprar (ou vender), dos serviços que tem de usar (ou desempenhar), da diversão que tem de desfrutar, dos símbolos de status que tem de portar – é necessário porque a existência da sociedade depende de sua produção e seu consumo ininterruptos. Em outras palavras, as necessidades sociais precisam se tornar necessidades individuais, necessidade instintuais. No nível em que a produtividade dessa sociedade requere produção e consumo massivos, essas necessidades precisam ser padronizadas, coordenadas, generalizadas. Certamente, esses controles não são uma conspiração, não estão centralizados em nenhuma agência, nem grupo de agências (apesar de que o direcionamento para a centralização está se intensificando); estão, na verdade, difusos pela sociedade, exercidos pelos vizinhos, pela comunidade, pelos grupos de influência, pela mídia de massa, pelas corporações, e (talvez menos) pelo governo. Mas são exercidos com o auxílio, de fato, são possibilitados pela ciência, pelas ciências sociais e comportamentais, e especialmente pela sociologia e pela psicologia. Enquanto sociologia e psicologia industriais, ou, mais eufemisticamente, enquanto ‘ciência das relações humanas’, esses esforços científicos tornaram-se uma ferramenta indispensável nas mãos dos poderes consolidados.

            Essas breves considerações sugerem a profundidade da intromissão da sociedade na psyche, até onde saúde mental, normalidade, não dizem respeito ao indivíduo, mas à sua sociedade. Tal harmonia entre o indivíduo e a sociedade seria altamente desejável se a sociedade oferecesse ao indivíduo as condições para o seu desenvolvimento como ser humano de acordo com as possibilidades de liberdade, paz e felicidade disponíveis (isto é, de acordo com a libertação possível de seus instintos de vida), mas é altamente destrutiva para o indivíduo se essas condições não prevalecem. Quando não prevalecem, o indivíduo normal e saudável é um ser humano equipado com todas as qualidades que o capacitam a se dar bem com os outros na sua sociedade, e essas mesmas qualidades são as marcas da repressão, as marcas de um ser humano mutilado, que colabora com sua própria repressão, contendo a liberdade individual e social, liberando agressão. E essa situação não pode ser resolvida pelo enquadramento da psicologia e da terapia individual, tampouco de nenhuma psicologia – uma solução apenas pode ser vislumbrada no nível político: na luta contra a sociedade. Claramente, a terapia poderia demonstrar essa situação e preparar a base mental para tal luta – mas, então, a psiquiatria seria uma empreitada subversiva.

            A questão agora é se os tensionamentos na sociedade americana contemporânea, na sociedade afluente, sugerem a prevalência de condições essencialmente negativas para o desenvolvimento individual no sentido discutido. Ou, para formular a questão em termos mais indicativos da abordagem que proponho: esses tensionamentos viciam a própria possibilidade do desenvolvimento individual saudável – saudável definido em termos de desenvolvimento ótimo das faculdades intelectuais e emocionais de alguém? A questão evoca uma resposta afirmativa, isto é, esta sociedade vicia o desenvolvimento individual, se os tensionamentos prevalentes estão relacionados com a própria estrutura desta sociedade e se ativam as necessidades e satisfações instintuais de seus membros que colocam os indivíduos contra si mesmos para que reproduzam e intensifiquem sua própria repressão.

            À primeira vista, os tensionamentos na nossa sociedade parecem ser aqueles característicos de qualquer sociedade que se desenvolve sob o impacto de imensas mudanças tecnológicas: eles iniciam novos modos de trabalho e lazer e, portanto, afetam todas as relações sociais e trazem uma completa transvaloração dos valores. Na medida em que o trabalho físico tende a tornar-se progressivamente menos necessário e até dispendioso, na medida em que o trabalho de empregados assalariados também se torna progressivamente ‘automático’ e aquele dos políticos e administradores progressivamente questionável, quanto mais o conteúdo tradicional da luta pela existência parece uma necessidade desnecessária, mais parece sem sentido e sem substância. Mas a alternativa futura, a saber, a abolição possível do trabalho (alienado) parece igualmente sem sentido, rejeitada, assustadora. E, de fato, se alguém vislumbra essa alternativa como o progresso e o desenvolvimento do sistema estabelecido, então o deslocamento do sentido da vida para o tempo livre sugere um pesadelo: autorrealização massiva, diversão, esporte em espaços cada vez menores.

            Mas a ameaça do ‘medo da automação’ é ele mesmo ideológico. Por um lado, serve à perpetuação e à reprodução de trabalhos e ocupações tecnicamente obsoletos e desnecessários (o desemprego como uma condição normal, mesmo que confortável, parece pior do que uma rotina de trabalho estúpida); por outro lado, justifica e promove a educação e o treinamento dos gerentes e organizadores do tempo de lazer, ou seja, serve ao prolongamento e ao aumento do controle e da manipulação.

            O perigo real para o sistema estabelecido não é a abolição do trabalho, mas a possibilidade de trabalho não-alienado como a base reprodutiva da sociedade. Não que as pessoas não sejam mais compelidas ao trabalho, mas que possam ser compelidas a trabalhar por uma vida muito diferente, em relações muito diferentes, que cheguem a incorporar fins e valores muito diferentes, que tenham de viver sob uma moralidade muito diferente – isto é a ‘negação definitiva’ do sistema estabelecido, a alternativa libertadora. Por exemplo, o trabalho socialmente necessário pode ser organizado para esforços como a reconstrução das cidades e metrópoles, a realocação dos locais de trabalho (para que as pessoas aprendam novamente a andar), a construção de indústrias produtoras de bens livres da obsolescência programada, sem desperdício lucrativo e pouca qualidade, e a sujeição do ambiente às necessidades estéticas vitais do organismo. Certamente, traduzir essa possibilidade em realidade significaria eliminar o poder dos interesses dominantes que, por sua própria função na sociedade, opõem-se a um desenvolvimento que reduziria a empresa privada a um papel menor, que acabaria com a economia de mercado e com a política de treinamento, expansão e intervenção militares – em outras palavras: um desenvolvimento que reverteria toda a tendência prevalente. Há pouca evidência para tal desenvolvimento. Enquanto isso, e com os novos totais terrivelmente efetivos meios providos pelo progresso técnico, a população está física e mentalmente mobilizada contra essa eventualidade: ela precisa continuar a luta pela existência em formas dolorosas, custosas e obsoletas.

            Essa é a contradição real que traduz a si mesma da estrutura social para a estrutura mental dos indivíduos. Assim, ativa e agrava tendências destrutivas que, de um modo quase sublimado, são introduzidas no comportamento dos indivíduos como socialmente úteis, nos níveis privados e políticos – no comportamento da nação como um todo. A energia destrutiva torna-se energia agressiva socialmente útil, e o comportamento agressivo impele o crescimento – crescimento do poder econômico, político e técnico. Assim como na empreitada científica contemporânea, na empreitada econômica e naquela da nação como um todo, realizações construtivas e destrutivas, trabalho para a vida e para a morte, procriar e matar estão inextrincavelmente unidos. Restringir a exploração da energia nuclear significaria restringir seus potenciais pacíficos e militares; a melhora e a proteção da vida aparecem como derivadas do trabalho científico pela aniquilação da vida; restringir a procriação também significaria restringir o potencial humano e o número de consumidores e clientes em potencial. Agora a (mais ou menos sublimada) transformação do destrutivo em energia agressiva socialmente útil (e, portanto, construtiva) é, de acordo com Freud (em cuja teoria dos instintos baseio minha interpretação) um processo normal e indispensável. É parte da mesma dinâmica pela qual a libido, a energia erótica, é sublimada e tornada socialmente útil; os dois impulsos opostos são sobrepostos e, unidos nessa dupla transformação, tornam-se os veículos mentais e orgânicos da civilização. Mas não importa o quão fechada e efetiva é essa união, suas respectivas qualidades permanecem as mesmas e contrárias: a agressão ativa a destruição que ‘mira’ a morte, enquanto a libido busca a preservação, a proteção e o melhoramento da vida. Por conseguinte, a destruição serve à civilização e ao indivíduo apenas quando trabalha a serviço de Eros; se a agressão se torna mais forte do que a sua contraparte erótica, a tendência é revertida. Além disso, na concepção freudiana, a energia destrutiva não pode se tornar mais forte sem reduzir a energia erótica: o equilíbrio entre as duas pulsões primárias é quantitativo; a dinâmica instintual é mecânica, distribuindo um quantum disponível de energia entre os dois antagonistas.

            Recompus brevemente a concepção de Freud porque devo usá-la para discutir a profundidade e o caráter dos tensionamentos prevalentes na sociedade americana. Sugiro que os tensionamentos derivam da contradição básica entre as capacidades dessa sociedade, que, por um lado, poderia essencialmente produzir novas formas de liberdade chegando a subverter as instituições estabelecidas, e o uso repressivo dessas capacidades, por outro lado. A contradição explode – e, ao mesmo tempo, é ‘resolvida’, ‘contida’ – na agressão ubíqua prevalente nesta sociedade. Sua manifestação mais conspícua (mas, de modo algum, isolada) é a mobilização militar e seu efeito no comportamento mental dos indivíduos, mas, no contexto da contradição básica, a agressividade é alimentada por várias fontes. A principais parecem ser as seguintes:

  • A desumanização do processo de produção e consumo. O progresso técnico é idêntico ao aumento da eliminação da iniciativa, da inclinação, do gosto e da necessidade pessoais pela provisão de bens e serviços. Essa tendência é libertadora se os recursos e técnicas disponíveis são usados para libertar o indivíduo do labor e da recreação requeridos pela reprodução das instituições estabelecidas, mas são parasitários, perdulários e desumanizantes em termos das capacidades técnica e intelectual existentes. A mesma tendência frequentemente gratifica a hostilidade.
  • As condições de multidão, ruído e manifestação da sociedade de massa. Como René Dubos disse, a necessidade de “quietude, privacidade, independência, iniciativa, e algum espaço aberto” não são “frivolidades ou luxos, mas constituem necessidades biológicas reais”. Sua falta injuria a própria estrutura instintual. Freud enfatizou o caráter ‘associal’ de Eros – a sociedade de massa realiza uma ‘supersocialização’ à qual o indivíduo reage “com todos os tipos de frustrações, repressões, agressões, e medos que logo se desenvolvem em neuroses genuínas”.

Mencionei a militarização da sociedade afluente como a mais conspícua mobilização social da agressividade. Essa mobilização vai muito além da captura real da força de trabalho e da estruturação da indústria armamentista: seus aspectos verdadeiramente totalitários são exibidos na mídia diária de massa que alimenta a ‘opinião pública’. A brutalização da linguagem e da imagem, a apresentação dos assassinatos, incêndios, envenenamentos e torturas infligidos às vítimas do massacre neocolonial tornam-se sensibilidade-comum, factual, às vezes até estilo humorístico que integram esses horrores como piadas de delinquentes juvenis, partidas de futebol, acidentes, relatórios de mercado e previsão do tempo. Não se trata mais da heroicização ‘clássica’ do assassinato pelo interesse nacional, mas antes sua redução ao nível dos eventos naturais e das contingências da vida cotidiana. A consequência é uma ‘normalização psicológica da guerra’ administrada a um povo protegido da realidade da guerra, um povo que, em virtude dessa normalização, facilmente se familiariza com a ‘taxa de assassinato’, assim como já está familiarizada com outras ‘taxas’ (como as de negócios, tráfego ou desemprego). O povo é condicionado a viver “com os acasos, as brutalidades e as casualidades ascendentes da guerra no Vietnã, assim como aprende-se gradualmente a viver com os acasos e casualidades do fumo, da poluição ou do tráfego”. [1]I. Ziferstein, no Daily Bruin da UCLA, Los Angeles, 24 de maio de 1966. Ver também: M. Grotjahn, “Some Dynamics of Unconscious and Symbolic Communication in Present-Day Television”, The … Continue reading As fotos que aparecem nos jornais diários e nas revistas de circulação em massa, frequentemente em cores vivas e vibrantes, mostram filas de prisioneiros enfileirados para ‘interrogação’, pequenas crianças arrastadas pela poeira atrás de carros blindados, mulheres mutiladas. Não são nenhuma novidade (‘tais coisas acontecem na guerra’), mas é o contexto que faz a diferença: sua aparição no programa regular, junto com comerciais, esportes, política local e reportagens sobre o cotidiano. E a brutalidade do poder é ainda mais normalizada pela sua extensão no automóvel amado: as montadoras vendem Thunderbird, Fury, Tempest, e a indústria de combustíveis coloca ‘um tigre em seu tanque’.

Entretanto, a linguagem administrada é rigidamente discriminadora: um vocabulário específico de ódio, ressentimento e difamação é reservado à oposição às políticas agressivas e ao inimigo. O padrão repete-se constantemente. Portanto, quando estudantes se manifestam contra a guerra, é uma ‘arruaça’ cheia de ‘defensores da liberdade sexual’, por jovens imundos e por ‘bandidos e meninos de rua’ que ‘mancham’ as ruas, enquanto as contrademonstrações consistem de cidadãos reunidos. No Vietnã, a ‘violência criminal comunista típica’ é perpetuada contra ‘operações estratégicas americanas’. Os Vermelhos têm a impertinência de fazer ‘ataques sorrateiros’ (presumivelmente, eles deveriam anunciar com antecedência e montá-los à vista); eles estão ‘fugindo das armadilhas’ (presumivelmente, deveriam ficar). Os Vietcongues atacam barracas americanas ‘no calar da noite’ e matam jovens americanos (presumivelmente, os americanos apenas atacam em plena luz do dia, não atrapalham o sono do inimigo e não matam jovens vietnamitas). O massacre de centenas de milhares de comunistas (na Indonésia) é dito ‘impressionante’ – uma ‘taxa de mortalidade’ comparável a sofrida pelo outro lado, dificilmente seria honrado com tal adjetivo. Para os

chineses, a presença de tropas americanas no leste da Ásia é uma ameaça à sua ‘ideologia’, enquanto presumivelmente a presença de tropas chinesas nas Américas Central e do Sul seriam uma ameaça real, não apenas ideológica, aos Estados Unidos.

A linguagem carregada funciona de acordo com a fórmula orwelliana da identidade dos opostos: na boca do inimigo, paz significa guerra, e defesa é ataque, enquanto, no lado certo, escalonamento é restrição e o excesso de bombardeios prepara a paz. Organizada desse modo discriminatório, a linguagem designa um inimigo a priori como o mal total em todas as suas ações e intenções.

Tal mobilização da agressividade não pode ser explicada pela magnitude da ameaça comunista: a imagem do inimigo ostensivo é deturpada para além de qualquer realidade. O que está em jogo é, antes, a continuação da estabilidade e do crescimento de um sistema ameaçado por sua própria irracionalidade – pela estreita base onde se sustenta sua prosperidade, pela desumanização demandada por sua afluência perdulária e parasitária. A guerra sem sentido é, ela mesma, parte dessa irracionalidade e, portanto, da essência do sistema. Aquilo que poderia ter sido um envolvimento menor no começo, quase um acidente, uma contingência da política internacional, tornou-se um teste para a produtividade, a competição e o prestígio do todo. Os bilhões de dólares gastos no esforço da guerra são estímulos (ou curas) tão políticos quanto econômicos: um grande meio de absorção do excesso econômico e de manter o povo em linha. A derrota no Vietnã pode muito bem ser o sinal para outras guerras de libertação mais perto de casa – e talvez até para a rebelião em casa.

De certo, a utilização social da agressividade pertence à estrutura histórica da civilização e tem sido um veículo poderoso do progresso. Contudo, há também um estágio no qual quantidade pode se tornar qualidade e subverter o equilíbrio normal entre os dois instintos primários em favor da destruição. Mencionei o ‘fantasma’ da automação. De fato, o espectro real da sociedade afluente é a redução possível do labor a um nível no qual a necessidade do organismo humano não mais funciona como um instrumento do labor. O mero declínio quantitativo na necessidade da força de trabalho humano vai na contramão da manutenção do modo capitalista de produção (assim como de todos os modos de produção espoliativos). O sistema reage aumentando a produção de bens e serviços que, de modo algum, ampliam o consumo individual, ou ampliam os luxos – luxos em face da pobreza persistente, mas luxos necessários para ocupar a força de trabalho suficiente para reproduzir as instituições políticas e econômicas estabelecidas. Na medida em que esse tipo de trabalho aparece como supérfluo, sem sentido e desnecessário, enquanto necessário para ganhar a vida, a frustração é entranhada na própria produção desta sociedade e a agressividade é ativada. Na medida em que a sociedade, em sua própria estrutura, torna-se agressiva, a estrutura mental dos seus cidadãos ajusta a si mesma: o indivíduo torna-se de uma só vez mais agressivo e mais subserviente e submisso, pois se submete a uma sociedade que, em virtude de sua afluência e seu poder, satisfaz suas mais profundas (e também extremamente reprimidas) necessidades instintuais. E essas necessidades instintuais aparentemente encontram seu reflexo libidinal nos representantes do povo. O comandante do comitê dos serviços militares do senado estadunidense, senador Russell, da Geórgia, foi surpreendido por esse fato. A seguinte fala foi atribuída a ele: “Há algo no preparo para a destruição que faz com que os homens se tornem menos cuidadosos no gasto de dinheiro do que seriam em propósitos construtivos. Não sei por que isso acontece; mas observei, por um período de quase trinta anos no senado, que há algo na aquisição de armas para matar, destruir, dizimar cidades e inviabilizar grandes sistemas de transportes, que faz com que os homens não reconheçam o custo do dólar como fazem quando pensam sobre melhoras habitacionais e cuidado com a saúde dos seres humanos.” [2]Citado no The Nation, 25 de agosto de 1962, pp. 65-66, em um artigo do senador William Proxmire.

Já questionei em algum lugar como alguém pode mensurar e comparar historicamente a agressão prevalente em uma sociedade específica; em vez de repetir o argumento, quero agora focar em aspectos diferentes, nas formas específicas nas quais a agressão hoje é liberada e satisfeita. A mais evidente, e aquela que distingue a nova forma das formas tradicionais, é aquilo que chamo de agressão e satisfação tecnológicas. O fenômeno é rapidamente

descrito: o ato de agressão é fisicamente consumado por um mecanismo com alto grau de automatismo, com poder muito maior do que o indivíduo humano que o põe em movimento, mantém-no em movimento e determina seu fim ou alvo. O caso mais extremo é o foguete ou o míssil; o mais ordinário é o automóvel. Isto significa que a energia, o poder ativado e consumado, é a energia mecânica, elétrica ou nuclear das ‘coisas’, em vez de a energia de um ser humano. A agressão é, por assim dizer, transferida de um sujeito para um objeto, ou pelo menos é ‘mediada’ por um objeto, e o alvo é destruído por uma coisa, em vez de uma pessoa. Essa mudança na relação entre energia material e humana, e entre a parte física e a mental da agressão (o homem torna-se o sujeito e agente da agressão em virtude de suas faculdades mentais e não físicas), precisa afetar também a dinâmica mental. Submeto a hipótese sugerida pela lógica interna do processo: com a ‘delegação’ da destruição a uma coisa, ou grupo e sistema de coisas, mais ou menos automatizada, a satisfação instintual da pessoa humana é ‘interrompida’, reduzida, frustrada, ‘supersublimada’. E tal frustração desencadeia a repetição e o escalonamento: violência aumentada, velocidade, escopo ampliado. Ao mesmo tempo, a responsabilidade pessoal, a consciência e o sentimento de culpa são enfraquecidos, ou diluídos, deslocados do contexto real onde a agressão foi cometida (i.e., bombardeios), e realocado em um contexto mais ou menos inócuo (falta de modos, inadequação sexual, etc.). Também nessa reação, o efeito é um considerável enfraquecimento do sentimento de culpa, e a defesa (ódio, ressentimento) também é redirecionada do sujeito responsável real (o oficial comandante, o governo) para uma pessoa substituta: não fui eu, como pessoa agente (moral e fisicamente), quem fez, mas a coisa, a máquina. A máquina: a palavra sugere que um aparato constituído de seres humanos pode ser substituído por um aparato mecânico: a burocracia, a administração, o partido ou organização, é o agente responsável; eu, a pessoa individual, fui apenas a instrumentalidade. E um instrumento não pode, em nenhum sentido moral, ser responsabilizado ou estar em um estado de culpa. Desse modo, é removida uma outra barreira, erigida pela civilização em um longo processo de disciplina, contra a agressão. E a expansão do capitalismo avançado envolve-se em uma fatídica dialética psíquica que entranha e propele sua dinâmica político-econômica: quanto mais poderosa e ‘tecnológica’ agressão se torna, menos é apta para satisfazer e pacificar o impulso primário, e mais tende à repetição e ao escalonamento.

Por certo, o uso de instrumentos de agressão é tão antigo quanto a própria civilização, mas há uma diferença decisiva entre a agressão tecnológica e as formas mais primitivas. Estas não eram apenas quantitativamente diferentes (mais fracas): elas requeriam ativação e engajamento do corpo em um grau muito mais alto do que os instrumentos de agressão automatizados ou semiautomatizados. A faca, o ‘instrumento cortante’, até mesmo o revólver, fazem muito mais ‘parte’ do indivíduo que os usa e associam-no de forma mais clara com seu alvo. Além disso, e mais importante, seu uso, a não ser que seja efetivamente sublimado e a serviço dos instintos de vida (como no caso do cirurgião, do trabalhador braçal, etc.), é criminoso – crime individual – e, enquanto tal, sujeito a punição severa. Em contraste, a agressão tecnológica não é um crime. O condutor correndo em um automóvel ou um barco motorizado não é chamado de assassino, mesmo que o seja; e certamente os engenheiros de lançamento de mísseis não é (chamado de assassino).

A agressão tecnológica libera uma dinâmica mental que agrava as tendências destrutivas, antieróticas, do complexo puritano. Os novos modos de agressão destroem sem incriminar a mente, sem sujar as mãos e o corpo de ninguém. O matador permanece limpo, física e mentalmente. A pureza de seu trabalho mortal tem todas as sanções se é dirigido contra o inimigo nacional pelo interesse nacional.

O artigo (anônimo) de capa no Les Temps Modernes (janeiro de 1966) liga a guerra no Vietnã com a tradição puritana nos Estados Unidos. A imagem do inimigo é aquela da sujeira em suas mais repulsivas formas; a selva suja é o seu habitat natural, evisceração e decapitação são seus modos naturais de ação. Consequentemente, o incêndio do seu refúgio, o desmatamento e o envenenamento de seus alimentos, não são apenas operações estratégicas, mas também morais: remover a imundície contagiosa, limpar o caminho para a ordem da higiene política e a correção. E a purgação massiva da boa consciência de todas as inibições racionais leva à atrofia da última rebelião da sanidade contra a loucura: nenhuma sátira, nenhuma ridicularização atinge os moralistas que organizam e defendem o crime. Portanto, podem, sem se tornarem alvo de piadas, publicamente vangloriar a ‘maior performance da história de nossa nação’, a indiscutível realização histórica do país mais rico, mais poderoso e mais avançado do mundo, espalhando a força destrutiva de sua superioridade técnica sobre os países mais pobres, fracos e desamparados do mundo.

O declínio da responsabilidade e da culpa, sua absorção pelo aparato técnico e político onipresente, também tende a invalidar outros valores que deveriam restringir e sublimar a agressão. Enquanto a militarização da sociedade permanece a manifestação mais conspícua e destrutiva, seus efeitos menos ostensivos na dimensão cultural não devem ser minimizados. Um desses efeitos é a desintegração do valor da verdade. A mídia desfruta de uma imensa desconsideração do compromisso com a verdade, e de um modo muito especial. A questão não é a mídia mentir (‘mentir’ pressupõe compromisso com a verdade), é, sim, misturar verdade e meia-verdade com omissão, reportagem de fatos com comentário e avaliação, informação com publicidade e propaganda – tudo isso compactado em um espantoso indiferenciado pela editorialização. As verdades editorialmente desconfortáveis (e quantas das verdades decisivas não são desconfortáveis?), retratada nas entrelinhas, ou escondidas, ou harmoniosamente misturadas com non-sense, diversão e estórias ditas de interesse humano. E o consumidor é prontamente inclinado a tomar tudo isso por certo, ele aceita mesmo quando sabe que não é bem assim. Agora, o compromisso com a verdade sempre foi precário, deturpado com fortes qualificações, suspendido ou suprimido – é apenas no contexto da ativação geral e democrática da agressividade que a desvalorização da verdade assume significado especial. Pois a verdade é um valor em sentido estrito, na medida em que serve à proteção e à melhora da vida, como um guia na luta do homem com a natureza e consigo mesmo, com sua própria fraqueza e sua própria destrutividade. Nesta função, a verdade é, de fato, uma questão dos instintos de vida sublimados, Eros, da inteligência tornando-se responsável e autônoma, esforçando-se para libertar a vida da dependência de forças indomadas e repressivas. E, no que diz respeito a esta função libertadora e protetora, sua desvalorização remove outra barreira efetiva contra a destruição.

A invasão da agressão no domínio dos instintos de vida também desvaloriza a dimensão estética. Em Eros e civilização, tentei mostrar o componente erótico nesta dimensão. Não-funcional, isto é, não comprometido com o funcionamento a uma sociedade repressiva, os valores estéticos foram fortes protetores de Eros na civilização. A natureza é parte dessa dimensão. Eros procura, em formas polimorfas, seu próprio mundo sensível de realização, seu próprio ambiente ‘natural’. Mas apenas em um mundo protegido – protegido dos negócios cotidianos, do barulho, das aglomerações, do desperdício, apenas assim pode satisfazer a necessidade biológica da felicidade. As práticas empresariais agressivas que, cada vez mais, transformam espaços de natureza protetiva em um meio de realização comercial e de diversão, portanto, não apenas ofendem a beleza – elas reprimem necessidades biológicas.

Uma vez que concordamos em discutir a hipótese de que, na sociedade industrial avançada, a mais-agressão é liberada no comportamento ‘normal’ e insuspeito, podemos encontrá-la em áreas distantes das mais familiares manifestações de agressão, por instância, o estilo da publicidade e a informação praticadas pela mídia de massa. A característica é a repetição permanente: o mesmo comercial, com os mesmos textos ou imagens, veiculado ou televisionado de novo e de novo; os mesmos clichês e frases derramados pelos fornecedores e criadores de informações de novo e de novo; os mesmos programas e plataformas professados pelos políticos de novo e de novo. Freud chegou a seu conceito de instinto de morte no contexto de sua análise da ‘compulsão repetição’: ele associou a isto o esforço por um estado de completa inércia, ausência de tensão, retorno ao útero, aniquilação. Hitler conhecia bem a função extrema da repetição: a maior mentira, repetida suficientemente, será assimilada e aceita como verdade. Mesmo em seu uso menos extremo, a repetição constante, imposta sobre audiências mais ou menos cativas, pode ser destrutiva: destruir a autonomia mental, a liberdade de pensamento, a responsabilidade, e conduzir à inércia, à submissão, à repulsa a mudanças. A sociedade estabelecida, mestra da repetição, torna-se o grande útero para seus cidadãos. Certamente, esse caminho para a inércia e essa redução da tensão são uma alta e não muito satisfatória sublimação: não leva a um nirvana instintual de satisfação. Todavia, pode bem reduzir o estresse da inteligência, a dor e a tensão que acompanham a atividade mental autônoma – portanto, pode ser uma agressão efetiva contra a mente em suas funções críticas e socialmente perturbadoras.

Essas são hipóteses altamente especulativas sobre o social e mentalmente fatídico caráter da agressão em nossa sociedade. A agressão é (na maioria dos casos) destrutividade socialmente útil – e ainda fatídica por causa de seu caráter autopropulsor e escopo. A este respeito, também, é mal sublimada e não muito satisfatória. Se a teoria de Freud está correta, e o impulso destrutivo esforça-se pela aniquilação da própria vida do indivíduo, não importando quão longo o ‘desvio’ por outras vidas e alvos, então podemos de fato falar de uma tendência suicida em uma escala verdadeiramente social, e o jogo nacional e internacional com a destruição total pode muito bem ter encontrado uma base firme na estrutura instintual dos indivíduos.



Tradução: Renata Marinho
Revisão: Jade Amorim

a obra que ilustra o texto é de autoria de Francis Bacon: “Three studies of Lucian Freud”, 1969.


Herbert Marcuse

foi um sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano, pertencente à Escola de Frankfurt.

References
1 I. Ziferstein, no Daily Bruin da UCLA, Los Angeles, 24 de maio de 1966. Ver também: M. Grotjahn, “Some Dynamics of Unconscious and Symbolic Communication in Present-Day Television”, The Psychoanalytic Study of Society, III, pp. 356ss, e Psychiatric Aspects of the Prevention of Nuclear War, Group for the Advancement of Psychiatry (Nova Iorque, 1964), pasim.
2 Citado no The Nation, 25 de agosto de 1962, pp. 65-66, em um artigo do senador William Proxmire.

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