No dia 27 de abril de 2021 foram veiculadas várias notícias expondo falas do ministro da economia, Paulo Guedes, em reunião do Conselho de Saúde, na qual foi tratado o delicado tema da gestão da saúde pública no Brasil durante a pandemia. Segundo o ministro, “todo mundo quer viver cem anos, cento e vinte, cento e trinta…”. Ainda afirmou que “não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar” a crescente demanda por atendimentos médicos no país.

Assim, conforme apontou Guedes, a falta de recursos destinados à saúde é efeito da quebra dos cofres públicos, cenário no qual se chegou, em grande medida, pelo aumento da expectativa de vida dos brasileiros nos últimos anos. A pandemia não teria sido um elemento externo e surpreendente que desnudou a incapacidade da administração estatal de gerir o sistema de saúde pública, levando-o a colapsar, mas, em verdade, teria sido este um resultado do avanço medicinal e da garantia do direito à vida, que, como afirmado anteriormente, elevaram a expectativa de vida dos cidadãos brasileiros, aumentando assim os gastos públicos.

Ou seja, pela linha de raciocínio do ministro da economia, a ruína do sistema público de saúde durante a pandemia em nada tem a ver com a péssima administração por parte do Poder Executivo, ou com a PEC 241 – também chamada de PEC do Teto de Gastos, ou “PEC da morte” –, que, nos dizeres de Rafael Valim (2017, p. 49), estabeleceu “um programa de austeridade seletivo, com duração de vinte anos, em que se sacrificam as despesas sociais e se preservam as despesas com o setor financeiro”, mas sim foi produto do anseio do cidadão brasileiro em viver mais.

Por um lado, essa perspectiva de Guedes pode soar como sandices que não devem ser levadas em consideração, porém, sob uma ótica aprofundada, ela escancara as vísceras daquilo que o ministro é um dos principais representantes em nosso país: uma ideologia neoliberal arcaica e sem limites, capaz de passar por cima de qualquer coisa em prol de uma mera razão contábil de mundo (DARDOT; LAVAL, 2016), a qual já perpetrou incontáveis (e tristes) consequências na história.

O neoliberalismo do qual Guedes é expoente se apropria da realidade tortuosa vivida pelas pessoas para assim avançar em sua busca interminável pela acumulação. Partindo de cenários concretos de crise, manipula a compreensão coletiva sobre as suas causas, assim como limita as possibilidades de ação para a sua superação a ações irreais para este fim, tendo em vista que a crise e o sofrimento por ela provocado são úteis ao processo de avanço do capital. Nesse sentido, Mano e Sichieri (2020, p. 104) afirmam que:

“O cenário de terra arrasada e o choque causado na população são instrumentos dos quais o capital se vale para expandir a sua dominação, e como resultado surgem propostas como privatizações ou a redução dos poucos direitos que detém a parcela explorada da população”.

Complemento e adequo esta passagem ao tema ora abordado, dizendo que o neoliberalismo do sofrimento se vale do estado de crise para avançar com propostas de privatização ou a redução de direitos sociais, como o direito básico à saúde, conforme fica claro ao observar o que fora dito pelo ministro da economia.

No decorrer dos longos anos do levante neoliberal, deparamo-nos com várias passagens em que é possível ver a instrumentalização do sofrimento, a utilização do choque causado pelas crises e o intento em constituir um modelo de subjetividade submisso, que aceite as coisas como são e não ouse esperançar ou agir em busca de mudanças substanciais no modo de administração da sociedade.

A Doutrina do Choque, como nomeia Naomi Klein (2008), dita o modus operandi dos procedimentos adotados pelo capitalismo do desastre (outro termo utilizado pela autora). A figura do desastre é escolhida justamente para simbolizar o cenário no qual a atuação simbiótica de quadros estatais e do mercado se vale para realizar sua caminhada progressiva.

Assim, situações de catástrofes, sejam naturais (como terremotos, enchentes etc.) ou sociais/políticas (golpes de Estado, crises econômicas, desigualdade extrema etc.), são momentos nos quais o capital avança sobre a população desguarnecida. O choque que provocam pessoas é capaz de as deixar perdidas, à deriva em uma conjuntura na qual não existe solução simples e muito menos perspectivas rápidas de melhora.

É nesse espaço que figuras surgem prometendo saídas eficazes para a crise enfrentada, valendo-se do medo e da desinformação que paira sobre grande parcela da população, deixando-a suscetível às suas vontades. Um exemplo histórico desse modo de proceder foi visto no Chile, na década de 1970, quando ao enxergar no governo de Salvador Allende uma ameaça aos investimentos estrangeiros, o governo de Richard Nixon estabeleceu ordens à CIA para que maquinasse pequenas crises que derrubariam a economia do país.

Um dos consideráveis desdobramentos da atuação por parte da inteligência estadunidense no país foi a greve dos caminhoneiros, produzida em grande medida por discursos transmitidos em rádios financiadas com dinheiro norte-americano, e que, ao durar exatos vinte e seis dias, levou a uma grave crise de desabastecimento, aumentando os preços inclusive de produtos básicos, fator que provocou medo na população e possibilitou que fosse implantada a ideia de que aquilo seria efeito de uma péssima gestão por parte do governo Allende. Junto a isso, fora germinado o temor de uma ameaça comunista, assim como a necessidade de um golpe militar para enfim salvar o país. Nesse panorama, no dia 11 de setembro de 1973 o palácio de La Moneda foi bombardeado pelo exército, com apoio dos Estados Unidos e aprovação de grande parte da população, dando início a um dos períodos mais sombrios da história do país, a ditadura militar comandada por Pinochet.

Ainda tomando como modelo analítico a realidade chilena, observa-se que após a instauração do regime militar, o país foi transformado em um laboratório a céu aberto de políticas neoliberais (KLEIN, 2008). Diante do terror orquestrado por Pinochet, valendo-se da força militarizada para realizar prisões, torturas e execuções de opositores, a população ficou inerte, possibilitando que os ideais econômicos neoliberais fossem postos em prática pela primeira vez, como uma forma de teste.

Os modelos econômicos de Milton Friedman e os Chicago Boys (grupo no qual o ministro da economia se inspira até os dias atuais) foram postos em prática, ensejando em desregulamentações de mercado e eliminação de impostos, privatizações de empresas estatais e drásticas políticas de austeridade, principalmente no que tangenciava os investimentos em infraestrutura básica e direitos sociais. Este protótipo de sociedade do mercado seria regido pela sua mão invisível e coordenada pelo princípio do laissez-faire.Quaisquer resistências postas pela população em face a tais medidas e seus efeitos deletérios, recebiam uma única resposta por parte do governo: a violência.

Assim, o estado de choque permanente no qual a sociedade chilena foi posta permitiu que as ideias neoliberais fossem colocadas em prática de modo a delinear um modelo de sociedade pós-fordista (ou pós-keynesiana) que seria construída e amadurecida no chamado primeiro mundo.

Após a experiência prévia elaborada no Chile, o mundo testemunhou a ascensão ao poder de dois rostos caricatas do modelo neoliberal, Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, sendo estes grandes expoentes dessa nova racionalidade. A segunda, inclusive, além de ter sido figura central da política do choque, realizando o avanço da lógica de mercado sobre a sociedade do welfare state, a exemplo de sua administração ante a greve dos mineiros na década de 1980, bem como mantendo proximidade e apoio a governos como o do próprio Pinochet e políticas como as do regime de apartheid na África do Sul, era também uma ideóloga construtora da subjetividade útil ao neoliberalismo.

A sua marcante frase “There is no alternative”(não há alternativa), repetida como um mantra, estabeleceu no ideário popular a concepção de que não existiriam alternativas ao modelo neoliberal de sociedade, sendo ele a resposta para as reiteradas crises que a sociedade ocidental enfrentava. Abordando este ponto, discorre Fisher (2020, p. 17):

“Os anos 1980 foram o período no qual o realismo capitalista se estabeleceu, com muita luta, e criou raízes. Foi a época em que a doutrina de Margaret Thatcher de que ‘não há alternativa’ – um slogan tão sucinto para o realismo capitalista quanto se poderia querer – se transformou em uma profecia autorrealizável brutal” (FISHER, 2020, p. 17).

Ainda sobre o uso recorrente de argumentações das mais diversas, aduzem Dardot e Laval (2016, p. 189):

“Os anos 1980 foram marcados, no Ocidente, pelo triunfo de uma política qualificada. Ao mesmo tempo, de ‘conservadora’ e ‘neoliberal’. Os nomes de Ronald Reagan e Margaret Thatcher simbolizaram esse rompimento com o ‘welfarismo’ da social-democracia e a implementação de novas políticas que supostamente poderiam superar a inflação galopante, a queda dos lucros e a desaceleração do crescimento. Os slogans frequentemente simplistas dessa nova direita ocidental são conhecidos: as sociedades são sobretaxadas, super-regulamentadas e submetidas às múltiplas pressões de sindicatos, corporações egoísticas e funcionários públicos. A política conservadora e neoliberal pareceu, sobretudo, constituir uma resposta política à crise econômica e social do regime ‘fordista’ de acumulação do capital.”

Porém, para que esses reiterados questionamentos acerca das estruturas da social-democracia e do modelo keynesiano/fordista surtissem efeitos em meio ao povo, o mero uso da retórica ideologizada não era suficiente, sendo necessária a implementação de um conjunto de práticas políticas que moldassem a realidade de uma forma que tornasse aceitável o discurso neoliberal. Como afirma Sreeck (2018, p. 79), “a revolução neoliberal necessitava de cobertura política”. Diante disso, impôs-se uma nova forma de administração social, estrategicamente construída por uma realpolitik na qual as bases teórico-ideológicas do neoliberalismo, antes de serem assimiladas pelo grosso da população, deveriam tomar forma material. A ação prática, por vezes destoante, de sua legitimação ideológica, é o alicerce para que as subjetividades individuais sejam modeladas. É dessa forma que é concebido aquilo que Fisher chama de realismo capitalista, ou seja, a verdade concreta, e não fetichizada, da sociedade neoliberal.

O estabelecimento de um corpo institucional que estruture a sociedade e defina as suas regras, assim como a naturalização de padrões comportamentais, seja pelos aparelhos ideológicos de Estado, como nos ensina Althusser, seja pela atuação da indústria cultural, como expõe brilhantemente Adorno e Horkheimer (KONDER, 2020), em ambos os casos definidos por um guia neoliberal, é o modus operandi a ser seguido para erigir esta forma de sociabilidade que garante a reprodução do neoliberalismo, assim como a sua proteção ante possíveis insurgências.

Portanto, o mecanismo neoliberal funciona não apenas pela linha de frente das políticas a serem perpetradas materialmente para a sua operacionalização enquanto sistema de acumulação e administração social, mas também atua por outra via, mais profunda e que de certa forma facilita as suas atividades, sendo este o processo de constituição das subjetividades. É por este segundo caminho que se produz o sujeito neoliberal, o qual adotará como verdadeira uma versão mascarada da realidade, ilusória, que será vista como a única possibilidade de vida, uma vez que se encontram excluídos ou ocultados os elementos capazes de produzir uma reflexão crítica sobre a conjuntura na qual o indivíduo está inserido (CASARA, 2020), tornando-se assim uma engrenagem funcional à perpetuação do sistema.

A atuação estratégica conjunta entre a constituição das subjetividades e a plasticidade do capitalismo realista que assume novas modulações de acordo com os rumos que a história toma, capacidade esta que o faz adequar seus objetivos às nuances das alterações de dinâmicas sociais, é o ponto nevrálgico para a compreensão acerca do uso político do desastre como ferramenta de avanço do plexo neoliberal.

Mészáros (2011, p. 65), ao comentar a utilização das guerras como meio de expansão dos sistemas econômicos, aponta que:

“(…) a crise que enfrentamos não se reduz simplesmente a uma crise política, mas trata-se da crise estrutural geral das instituições capitalistas de controle social na sua totalidade. Aqui cabe assinalar que as instituições no capitalismo são inerentemente violentas e agressivas: são edificadas sobre a premissa fundamental que prescreve a ‘guerra, se fracassam os métodos ‘normais’ de expansão’. (Ademais, a destruição periódica – por quaisquer meios, incluindo os mais violentos – do capital excedente é uma necessidade inerente ao funcionamento ‘normal’ desse sistema: a condição vital para sua recuperação das crises e depressões).”

Ainda complementa ao tratar do funcionamento das instituições na abordagem das questões relacionadas à crise:

“Assim, o ‘sentido’ das instituições hierarquicamente estruturadas do capitalismo é dada na sua referência máxima ao ‘combate’ violento dessas questões na arena internacional, uma vez que as unidades socioeconômicas – de acordo com a lógica interna de seu desenvolvimento – crescem cada vez mais e seus problemas e contradições tornam-se sempre mais intensos e graves. Crescimento e expansão são necessidades imanentes ao sistema de produção capitalista, e quando os limites locais são atingidos não resta outra saída a não ser reajustar violentamente a relação dominante de forças.”

Porém, esse ímpeto expansivo do capitalismo trágico nem sempre ocorre de forma exposta, podendo manifestar-se veladamente, utilizando o desastre para propor adaptações que sejam colocadas como uma espécie de “salvação” humanitária.

Um exemplo recente dessa forma de adequação “soft” às demandas e pressões sociais, aconteceu com o lançamento da campanha “Capitalism. Time for a reset” (Capitalismo. Hora de um recomeço), do jornal Financial Times, em 2019. Em um primeiro momento, foi pintada como uma possibilidade de reinício do modo de produção capitalista diante de relevantes necessidades globais do século XXI, como as de ordem social (distribuição de riquezas, difusão tecnológica e redução da desigualdade) e ambiental (questões climáticas e de preservação do meio-ambiente) (TETT, 2019).

Porém, esta campanha surge justamente em um momento no qual há enorme dificuldade de superação das inúmeras crises decorrentes da grande crise que se arrasta desde 2008. Como um dos resultados deste cenário, verifica-se a eclosão pelo mundo de governos de extrema direita, os quais encontram guarida no apoio popular, assim como o ganho de força de discursos mais à esquerda, alguns de caráter revolucionário. Em ambas as situações, cada qual a sua maneira, há o temor pela perda de estabilidade administrativa da sociedade ou pela limitação expansiva do capital, objetivos centrais da racionalidade neoliberal.

Agora, voltando os olhos para o contexto latino-americano, percebe-se uma realidade específica, na qual o capitalismo neoliberal se vale de desastres e sofrimentos particulares para fincar suas raízes e se esparramar pela sociedade. Nessa região, as estruturas capitalistas assumem uma forma própria, reflexa das condições historicamente relegadas à região, derivadas de uma posição periférica no sistema mundial, uma condição dependente.

As nações que compõem esse bloco possuem um papel bem definido nas dinâmicas econômicas globais, estabelecido ao longo de séculos pela reiterada exploração de seus territórios, em um primeiro momento diante das relações coloniais e, posteriormente, pela usurpação de suas riquezas por meio da construção e manutenção de um modelo capitalista subdesenvolvido, atrasado e repleto de limitações políticas ao seu crescimento, a exemplo da constituição de dívidas externas que se agigantam ao ponto de se tornarem impagáveis. Assim, à América Latina foi deixada a função de sustentar os países da centralidade, condição que é agravada em momentos de crise, nos quais a rapinagem de seus recursos é intensificada, aumentando problemas econômicos e sociais que já são intrínsecos a essas sociedades.

Por esse processo as crises, que majoritariamente são produzidas nos países do dito primeiro mundo, são transferidas à periferia, consolidando cenários cada vez mais críticos nos quadros sociais. Porém, esta ação de realocação dos efeitos das crises não termina no ímpeto de garantia da manutenção dos lucros dos capitais externos, mas também é perpetrada no sentido de possibilitar a expansão daquele capital constituído pelas elites nacionais. Em ambos os objetivos, o sofrimento da população ante o atual estado de coisas e o medo pela piora do cenário são explorados, instrumentalizados como meio de permitir tal avanço. Discursos políticos, veiculados pela mídia que é aparelhada, quando não se confunde com o próprio prolator do discurso, são utilizados para inocular constantes doses de dor e sofrimento psíquico nas pessoas, retirando a sua esperança para então apresentar caminhos que, se percorridos, levarão a dias melhores. Porém, a escolha por essas vias, em realidade, apenas levam à expansão dos lucros do capital em detrimento do bem-estar da própria população iludida, a qual se encontrará em uma situação ainda pior que a anterior, momento em que novas doses de dor e sofrimento lhes serão dadas, resultando em novas falsas promessas, que serão igualmente tomadas como pontos de esperança em virtude de discursos maquiadores dos fatos concretos, construindo assim uma espiral de autodestruição, em que a tentativa de superação de angústias é seguida pelo seu agravamento e surgimento de novas (MANO, SICHIERI, 2020).

A violência, mesmo que psicológica, é parte constituinte do modo de produção capitalista, o que possibilita compreender com maior clareza a operacionalização de tragédias em prol do avanço econômico dentro do sistema. Assim nos apresenta Pavón-Cuéllar (2018, p. 21):

“Segundo a tese de Langer, a violência e o mal-estar, ainda que indissociáveis da cultura se agravariam, logicamente, em um sistema capitalista sustentado na mesma pulsão de morte que subjaz a violência e o mal-estar. O próprio capitalismo, aquilo que o distinguiria de outras formações culturais menos violentas e menos produtoras de mal-estar, o seu fundamento é o mesmo da violência e do mal-estar; o mesmo gosto humano pela agressão e a mesma pulsão de morte. Enquanto a cultura em geral sustenta nas complexas relações entre as pulsões de vida e de morte, sua expressão especificamente capitalista somente se fundamenta na pulsão de morte.”

Um modelo de construção social imanentemente vinculado à violência, e que dela se utiliza para criar uma realidade fetichizada, que impede a propositura e execução de medidas efetivas de enfrentamento dos problemas sociais, este é o capitalismo neoliberal. Diante deste cenário de apatia popular e desconhecimento das verdadeiras causas dos problemas vivenciados, é que medidas como políticas de austeridade, redução ou eliminação de direitos como aqueles ligados às relações de trabalho, previdência, dentre outras garantias fundamentais, são disposições facilmente aceitas e naturalizadas, produzindo resultados opostos aos prometidos (FERREIRA, 2019).

Períodos de crise são perfeitos para que o capital expanda seus tentáculos. O cenário de terra arrasada elimina considerável parte dos obstáculos que outrora impediam seu avanço. Também à título de ilustração, importante relembrar a tentativa de privatização da CEDAE (Companhia Estadual de Água e Esgoto) pelo então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, logo no início da pandemia de covid-19 no país (RBA, 2020). O medo da população diante de uma doença que até então ainda era desconhecida foi usado para a difusão de discursos favoráveis à privatização, como o da necessidade de alocação dos recursos obtidos com a venda da companhia no setor da saúde ou o incremento da eficiência da empresa, sem apresentação de maiores dados que os comprovassem, apesar desta necessidade se mostrar irrelevante diante do uso do desespero e do falseamento da realidade, sempre no intuito de colocar a res pública nas mãos do capital privado. O desastre é a base da expansão capitalista.

Ao se observar o atual caos da pandemia, tendo no Brasil um de seus principais focos, verifica-se que a produção de mal-estar psicológico em larga escala aniquila qualquer resquício de esperanças nas pessoas, abrindo caminho para a ascensão do capitalismo do desastre. As crises econômicas que já se faziam presentes antes mesmo da chegada do coronavírus, indicavam tentativas reiteradas do capital, por vários meios, de avançar sobre a população. Porém, até então o terreno político no qual essas tentativas se davam era um campo de batalha no qual havia muita resistência em diversos setores. Ocorre que o choque provocado com a chegada da doença, aliado ao agravamento das crises socioeconômicas, retirou boa parte dos entraves à estratégia de manipulação do sofrimento, permitindo que discursos e medidas fossem implementados, sob um falso pretexto de salvação nacional. “Essa combinação perversa legitimou as políticas de austeridade, políticas que penalizaram os sistemas de proteção social e maltrataram a vida dos empobrecidos” (BELLUZZO; GALÍPOLO, p. 100).

Na crise sanitária que enfrentamos neste momento, o medo do colapso do sistema de saúde pública que resulte na inexistência de leitos ou de quaisquer outros tipos de assistência médica, contribui para a criação de uma realidade fetichizada na qual a precarização deste sistema não é culpa das péssimas administrações e do aparelhamento de seus órgãos gerenciais, mas sim responsabilidade da própria população, como alegado pelo ministro da economia.

A fala dessa autoridade é uma mostra pura e caricata do capitalismo do desastre, que se vale do sofrimento das massas em prol do aumento dos lucros, do processo de acumulação do capital e da dilapidação do patrimônio público sem pensar no bem-estar coletivo (o que chega a ser até contraditório vindo de uma pessoa pública). Concluo este breve excerto citando Naomi Klein (2020, p. 07), que ao mostrar a lógica neoliberal na gestão do sofrimento durante a pandemia, a qualifica como um “oportunismo corporativo que olha para toda essa dor, toda essa necessidade, e não se pergunta ‘como vamos resolver isso? Como vamos salvar essas vidas?’, e sim ‘como posso enriquecer ainda mais em benefício de meus próprios interesses?’”.

Resistamos.



Referências bibliográficas

BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

CASARA, Rubens R R. Bolsonaro: o mito e o sintoma. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal / Pierre Dardot; Christian Laval; tradução Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

DAVIS, Ângela. Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia. Ângela Davis / Naomi Klein; tradução Leonardo Martins. – São Paulo: Boitempo, 2020.

Em meio a pandemia, Witzel quer urgência em privatizar água e educação. Rede Brasil Atual (RBA). Publicado em 20 abr. 2020. Disponível em: < https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/04/witzel-privatizar-agua-educacao/#>. Acesso em 07 mai. 2020.

FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen. Políticas sociais frente à austeridade. In: O mito da austeridade. Antônio Corrêa de Lacerda (coordenador) – São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.

FISHER, Mark, 1968-2017. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? / Mark Fisher; tradução Rodrigo Gonçalves, Jorge Adeodato, Maikel da Silveira; [coordenação Manuela Beloni, Cauê Ameni]. – 1. ed. – São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

KONDER, Leandro, 1936-2014. A questão da ideologia. / Leandro Konder. – 1. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2020.

MANO, Felipe Gomes; SICHIERI, João Vitor. Subjetividade neoliberal em tempos de crise: uma aposta para o futuro a partir da juventude marxista. In: O Futuro: O comunismo é a juventude do mundo / União da Juventude Comunista. – n. 1 (ago./nov. 2020) – [s.l]: União da Juventude Comunista, 2020. p. 99-109.

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Tradução Francisco Raul Cornejo… [et. al.]. – 2. ed. rev. e ampliada. – São Paulo, Boitempo, 2011.

PAVÓN-CUÉLLAR, David. O capital que jorra sangue e lodo por todos os poros. In: Psicanálise e marxismo: as violências em tempos de capitalismo. David Pavón-Cuéllar e Nadir Lara Junior (Organizadores). – 1. ed. Curitiba: Appris, 2018.

STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático / Wolfgang Streeck; tradução Marian Toldy, Teresa Toldy. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2018.

TETT, Gillian. Does capitalism need saving from itself?. Financial Times. Publicado em 06 set. 2019. Disponível em: <https://www.ft.com/content/b35342fe-cda4-11e9-99a4-b5ded7a7fe3f>. Acesso em: 07 mai. 2021.

VALIM, Rafael. Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017.

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