A chamada Wertkritik ( “crítica do valor”) é uma corrente teórica originalmente marxista de militantes e teóricos alemães reunidos em Nuremberg, que por uma reinterpretação da crítica da economia política de Marx e suas categorias básicas, ou seja,  mercadoria, valor, dinheiro e trabalho abstrato,  passam a estabelecer uma crítica categorial ao capitalismo através da revista Crítica Marxista na década de 80, que alterou de nome posteriormente para Krisis por diversas rupturas teóricas com postulados marxistas sagrados.

Escapando da ontologia do trabalho do marxismo tradicional que interpreta a existência de dois tipos de trabalho: o trabalho abstrato, especificamente capitalista; e o trabalho concreto, transhistórico, o “metabolismo do homem com a natureza”. A crítica do valor entende que o abstrato e o concreto constituem o duplo caráter do trabalho. As atividades sociais como pescar, caçar, tecelagem, alfaiataria, etc, são atividades particulares que só podem ser chamadas de “trabalho” quando elas se transformam em “dispêndio de nervos e músculos”, “geleia indiferenciada de trabalho humano”, uma atividade abstrata e que constitui um processo de fim em si mesmo, ou seja, o valor que se autovaloriza pela expressão do dinheiro que gera mais dinheiro (que no fundo é trabalho que gera mais trabalho). Surge a sociedade pautada no trabalho e a emancipação deve ser pensada pela libertação da humanidade dos grilhões do trabalho e não libertar o trabalho em favor de um trabalho emancipatório. Tal visão ontológica positivista do trabalho é criticado em diversos textos, como “A honra perdida do trabalho” do Robert Kurz e “Manifesto contra o trabalho” do grupo Krisis.

Além disso, Robert Kurz, talvez o nome mais conhecido da crítica do valor, aponta em “A crise do valor de troca” e, posteriormente, em “Colapso da modernização”, que com a Terceira Revolução Industrial e a microtecnologia o capital atingiu seu limite interno absoluto, pois a substância do capital, o valor (quantidade de trabalho humano) torna-se supérfluo, ou seja, a ontologização do trabalho é colocada em xeque pela realidade. Esse limite interno absoluto gera um processo histórico de colapso da modernização, em que as formas sociais capitalistas entram em um processo de decomposição que apresenta como consequências:  o desemprego estrutural e o aumento de capital fictício, em que os créditos passam a ser cada vez mais pagos por outros créditos, gerando a dissociação entre trabalho e dinheiro. Cria-se uma reprodução de-substancializada do capital, em que a criação do valor decai dialeticamente a um aumento da produtividade e aumento de concessão de créditos, que produz como sintomas bolhas especulativas e a inflação. Para além dessa economia de simulação, em “A guerra do ordenamento mundial” Kurz analisa os aspectos geopolíticos do fim da soberania nacional e de um novo imperialismo de exclusão e vigilância global, em que o estado de exceção permanente se torna regra. O fim da URSS não era a vitória do capitalismo, mas o sintoma do colapso da modernização e de uma nova ordem mundial global, onde a democracia entra em decomposição e consequentemente, para além do estado de exceção permanente, começa a surgir o novo radicalismo de direita, como Kurz analisa em “A democracia devora seus filhos”. O valor é uma forma de sociabilidade, um “fato social total”, e não uma categoria econômica da qual derivam as categorias jurídicas e políticas do anacrônico esquema base-superestrutura do marxismo tradicional. Não são só consequências econômicas que o colapso produz, mas consequências sobre o modo de reprodução da valorização do valor em seu todo. Logo, é um absurdo acusar a crítica do valor de economicismo. Busca-se nesse texto trazer alguns pontos levantados para além do estereotipo de que a crítica do valor só fala de fim do capitalismo (o que por sinal ela nunca defendeu um fim do capitalismo, mas o colapso da modernização) e de crítica da ontologia do trabalho.   

O DUPLO MARX

                Uma questão que Kurz traz é a ideia de um “duplo Marx”. Sem nenhuma relação com o “corte epistemológico” de Louis Althusser, existem “dois Marx”: o “Marx exotérico” e o “Marx esotérico”. O “Marx exotérico” é o difundido mundialmente, o marxismo do movimento operário e do “Manifesto Comunista”, da luta de classes e do materialismo histórico, em que a revolução se dará mediante o sujeito revolucionário, o proletariado, que após a tomada do poder estatal estabelecerá a ditadura do proletariado mediante os Sovietes, conselhos operários, comunas, até o fim da divisão social do trabalho entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou seja, a subsunção real do trabalho ao capital. O “Marx exotérico” é herdeiro e dissidente do Esclarecimento, positivista, que busca inverter as relações de dominação entre burguesia e proletariado, ontológico do trabalho, refém da ideologia do progresso histórico e reivindica a mais-valia não paga e o fim da propriedade privada dos meios de produção.

                Por outro lado, o “Marx esotérico”, mais ligado à academia, obscuro perante os movimentos de massas socialistas, é o Marx da crítica do fetichismo da mercadoria e das categorias básicas da crítica da economia política: mercadoria, dinheiro, valor, trabalho abstrato etc. O “Marx esotérico” é crítico da modernidade como sistema produtor de mercadorias e crítico do trabalho e seu caráter negativo. De um conceito de capital como coisa do “Marx exotérico”, em que o capitalista possui a propriedade privada do capital e explora o trabalhador que foi expropriado, ao capitalismo como relação social atomizada de proprietários de mercadorias do “Marx esotérico”, em que o capital funciona como um “sujeito automático” e uma “contradição em processo”. A crítica do valor parte com o “Marx esotérico” para além de Marx, continuando a revolução inacabada realizada por Marx na crítica da economia política.  

CRÍTICA DO VALOR CISÃO

                Tese desenvolvida por Roswitha Scholz, trata-se de uma crítica à visão liberal de igualdade de gêneros e à visão marxista onde a opressão social de gênero é uma contradição secundária perante a luta de classes. A sociabilidade do valor é uma sociedade patriarcal produtora de mercadorias, porém, a relação de gênero não deriva da forma valor. Primeiramente, o valor não constitui uma totalidade fechada, mesmo que a lógica do valor tende a se totalizar, universalizar, ela não abrange a totalidade da reprodução social. Logo, existem partes da reprodução social que são cindidos do valor, como as atividades domésticas, delegadas às mulheres e não são “trabalho doméstico”, pois não são atividades de mero dispêndio de energia humana, mas atividades de cuidado onde o sensível não foi subsumido à abstração do valor. Entretanto, ela não está “fora” da sociabilidade do valor, ela é constituída e constitui a relação dialética valor-cisão. Mesmo com a mulher adentrando no mercado de trabalho, as atividades cindidas do lar são desempenhadas pelas mulheres e o trabalho de “cuidado” como enfermagem, atendente, secretária, empregada doméstica, são desempenhadas majoritariamente por mulheres. E quando a mulher consegue um cargo de gerência em uma empresa, sofre preconceitos e recebe um salário na maioria das vezes menor. De modo contrário ao feminismo marxista, que reivindica para tais atividades femininas cindidas o reconhecimento do estatuto jurídico de “trabalho” e um pagamento de salário por tais atividades desempenhadas, sendo essas atividades consideradas produtivas em uma abordagem ontológica do trabalho, para Roswitha Scholz  o valor é o homem e o sexo do capitalismo é masculino, e somente uma ruptura ontológica com o trabalho pode chegar uma sociedade não patriarcal, já que no colapso da modernização, o asselvajamento do patriarcado é um dos sintomas.

Esse tema gerou controvérsia dentro da Krisis e alguns autores, liderados por Roswitha Scholz e Robert Kurz, fundaram uma nova revista a Exit! e passaram a denominar-se de crítica do valor-cisão, enquanto que a Krisis permanece até hoje com autores remanescentes como Norbert Trenkle, Ernst Lohoff e Karl Heinz Wedel.

CRÍTICA DA FORMA SUJEITO

A questão do sujeito tem uma grande relevância no debate da crítica do valor e crítica do valor-cisão. Tal tema foi elaborado por Robert Kurz em “Razão Sangrenta” e “Ontologia Negativa”. Kurz elabora uma diferenciação entre sujeito e indivíduo. O Indivíduo é constituído historicamente na relação de tensão com as determinações sócio-históricas e simbólicas de seu tempo, ou seja, a “segunda natureza” condiciona a existência dos indivíduos. Por outro lado, o sujeito é uma forma social capitalista em que os indivíduos são coagidos à abstração da valorização do valor e transformam-se em seres abstratos, equivalentes, meras “máscaras de caráter” do movimento do “sujeito automático” e da “contradição em processo” resultante do valor que se autovaloriza. Logo, é impossível a existência de um “sujeito revolucionário” constituído positiva ou negativamente neste processo, o proletariado apenas luta por seus interesses objetivos dentro da matriz social fetichista do valor, sendo o antagonismo de classes é imanente a essa forma social. Já os excluídos, lutam pelo reconhecimento dentro dessa forma, como o proletariado fez historicamente no processo de ascensão e imposição da forma moderna de socialização. Só uma crítica categorial (ver “Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria” de Kurz) e um movimento social de “ruptura ontológica” com as categorias capitalistas podem emancipar a humanidade da máquina de moer gente.

Além disso, os conceitos burgueses de liberdade e igualdade estão atrelados à forma sujeito. A liberdade só existe dentro do processo do dinheiro como fim em si mesmo e tem uma dupla lógica: 1) o sujeito kantiano transcendental e indiferente perante o concreto, o sensível, age perante imperativos categóricos ( “máxima universal em que não cabe exceção”) que resultam da razão sangrenta iluminista, fundamentada em categorias “a priori” que são as abstrações reais da socialização capitalista e omite o âmago da constituição da forma sujeito, o estado de exceção; 2) a liberdade é um fim em si mesmo, recaindo na lógica autodestrutiva do capital e a pulsão de morte inerente à ela. Quanto à igualdade, ela é universal e seletiva, pois aquilo que está cindido da relação de valor é expelido da forma sujeito e são não sujeitos, assujeitados à “vida nua” do estado de exceção, pois o sujeito é homem, branco e eurocêntrico.

O tema foi desenvolvido por outros autores da Krisis como Karl Heinz Wedel em “A descida do eu aos infernos”, Norbert Trenkle em “Negatividade interrompida” e Ernst Lohoff em “O reencantamento do mundo”.  Tema que gerou discordâncias, foi mais um fator responsável pela cisão Krisis e Exit!. Para além das revistas, Anselm Jappe, autor próximo da crítica do valor e do valor-cisão, estabelece uma interpretação própria da relação entre fetichismo da mercadoria e narcisismo em seu livro “A sociedade autofágica”. Jappe retoma as abordagens de Freud sobre o tema do sujeito, em que o inconsciente é produto da alienação à ordem simbólica e é dividido entre o “eu ideal” e o “ideal do eu”. Para além do freudo-marxismo, retoma Christopher Larsch que tem como tese basilar o fato de que os movimentos sociais na década de 60 contra as instituições repressoras e a figura autoritária paterna produziram um superego mais severo e punitivo atrelado à liberdade mercantil.  A liberdade como fim em si mesmo expressa-se no narcisismo, o arranjo psíquico perfeito ao dinheiro como fim em si mesmo da modernidade, e no colapso da modernização a de-substancialização dos laços sociais produz a crise da forma sujeito e uma sociedade autofágica, que se autodestrói, pois o mundo externo condicionou-se a mero objeto de projeção das fantasias libidinais do sujeito.

DUAS INTERPRETAÇÕES SOBRE O COLAPSO

Pode-se falar hoje de uma bifurcação teórica nas formas como a Krisis e a Exit! compreendem a reprodução do capital em tempos do colapso da modernização. Robert Kurz em 2012, na sua obra “Dinheiro sem valor” retoma o conceito de “substância”, já retomado em “Substância do capital” para analisar que com o capital fictício, há uma produção cada vez mais intensa de dinheiro sem valor, ou seja, o capital cria uma economia de simulação e uma reprodução de-substancializada do capital. Nisso, para além de fugas para frente, a administração do colapso com o pagamento de créditos por outros créditos, é cúmplice do sacrifício humano, “já não como sacrifício da energia de trabalho abstratificada até que o material humano, chupado até o tutano, caia morto, mas, depois que este constrangimento se tornar objetivamente obsoleto, apenas sob a forma de uma eutanásia burocrática, para as massas dos já não utilizáveis em termos capitalistas, que tem que assumir traços anômicos. Após o dinheiro ter sofrido uma mutação, convertendo-se de sacrifício simbólico na objetualidade universal do valor no sistema do trabalho abstrato, o dinheiro sem valor, sobre esta base desvalorizada e de-substancializada, faz agora regressar condições quase arcaicas que, no entanto, já não inserem num ritual que se desenrola em determinadas balizas, mas desembocam no quadro de carnificina desnorteada e num recuo da civilização”. (KURZ, Robert. Dinheiro sem valor. p. 375, Ed. Antígona). A reprodução de-substancializada desencadeia uma relação fetichista sacrifical da humanidade.

Do outro lado, Ernst Lohoff em “A grande desvalorização” critica o conceito de “substância” como preso à visão ricardiana e defende a possibilidade de uma acumulação de capital sem acumulação de valor, com o conceito de “mercadorias de segunda ordem”. As questões que ficam: o limite interno absoluto do capital é um limite somente à modernização ou à reprodução do capital?

 Outra diferença é que Kurz se afasta dos pressupostos da crítica do valor e da crítica da economia política, com a crítica do individualismo metodológico. O individualismo metodológico trata, por exemplo, as categorias capitalistas como surgidas historicamente de “embriões” pré-capitalistas e que elas se apresentam maduras no capitalismo por apresentar um “estágio de desenvolvimento histórico mais elevado”. A mercadoria, dinheiro, trabalho abstrato, etc, já existiam nas sociedades pré-capitalistas de modo “embrionário” e o desenvolvimento histórico de tais categorias se concretiza no capitalismo. Essa abordagem histórica recai no individualismo metodológico, onde as categorias não são analisadas em relação com as demais categorias em sua totalidade. As partes derivam do todo, e não o todo que deriva da parte. Não é a mercadoria que surge historicamente primeiro, depois a forma dinheiro, até chegar ao capital. A modernidade surge de um processo de imposição social e não de um desenvolvimento linear histórico, como se tais categorias fossem transhistóricas, mudando apenas o “estágio de desenvolvimento”. Além disso, não se trata de entender que da mercadoria surge o dinheiro e o capital, até as derivações jurídicas e políticas, como se o valor fosse uma categoria econômica. O valor é uma categoria de socialização totalitária, e o capital é pressuposto da mercadoria. A relação capital individual e capital social total deve ser o ponto de partida, pois a grandeza de valor é determinada pelo tempo de trabalho socialmente necessário, logo a crise do valor só pode ser determinada pelo capital social total. Por exemplo, com o desenvolvimento das forças produtivas, o capital individual aumenta sua produtividade de mercadorias e depende cada vez menos de força de trabalho, barateando os custos e o preço das mercadorias diminui, o que aumenta o lucro do capital individual. Com a equalização desse novo patamar produtivo aos demais capitais individuais, o tempo de trabalho socialmente necessário diminui e a grandeza de valor de certa mercadoria idem. Assim, aparece ao capital individual que ele cria mais valor, entretanto, no nível do capital social total há redução da criação de valor. A forma mercadoria não é o ideal-típico no qual o ciclo de valorização sempre retorna, como um eterno retorno nietzschiano, mas de uma contradição em processo que se autovaloriza e autodestrói suas bases de valorização (o trabalho abstrato), atingindo seu limite interno absoluto.

Enfim, esse texto pretende apenas trazer de modo superficial como mera exposição das temáticas que a crítica do valor e valor-cisão têm apresentado nas últimas décadas, que será aprofundado no evento do Sindilex “Desdobrando a crítica do valor: com Marx para além de Marx” com transmissão no Youtube entre os dias 4 de agosto a 8 de setembro, com os professores Maurilio Botelho, Carlos de Almeida Toledo, Taylisi Leite, Fábio Pitta, Robson Oliveira e Marildo Menegat.  


Posts Similares

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *