“Não, uma coisa é clara: o curso da experiência decaiu, e isso ocorreu em uma geração que vivenciou, de 1914 a 1918, uma das experiências mais terríveis da história universal. O fato, no entanto, não é constatado pelo silêncio daqueles que retornavam do campo de batalha? Não mais ricos, mas mais pobres em experiência comunicável.”

“Experiência e pobreza” – Walter benjamin

Há uma coisa que se transmite de geração em geração: a incapacidade de viver uma experiência e compartilhá-la. Este é o infortúnio que o homem contemporâneo carrega. Ser despossuído de sua experiência, privado de sua história, a impossibilidade crônica de compartilhar a experiência com outros. Nada de novo sob o sol. Desde 1933, em Experiência e pobreza, Walter Benjamin fazia essa constatação aterradora sobre a nossa época moderna. Benjamin vê no horror da Primeira Guerra Mundial um fenômeno dramático: o “mutismo” dos sobreviventes. A Primeira Guerra Mundial é um evento decisivo na destruição da experiência. Todas as atrocidades do século XX nunca cessaram; elas continuam a operar sob outras formas. “Hoje sabemos, entretanto, que para destruir a experiência não é necessária uma catástrofe: a vida cotidiana em uma grande cidade, em tempos de paz, é perfeitamente suficiente para garantir esse resultado” (Giorgio Agamben, Infância e História). Uma certa banalidade do mal consome nossas vidas, desde a metrópole até suas extensões. O ambiente criado por uma combinação de dispositivos mantém a incapacidade de traduzir uma experiência vivida. Nossas vidas não nos pertencem; todos os dias o cotidiano capitalista recomeça, e nossos corpos são os sujeitos privilegiados dessa banalidade do mal.

A destruição da experiência corresponde à separação da vida e da palavra. A vida era a garantia da palavra. Hoje, falar envolve um esforço exaustivo com resultados escassos, de valor econômico e social. A palavra torna-se a enunciação de sua domesticidade à ordem estabelecida. O dispositivo técnico é o melhor exemplo da destruição da experiência. “Essa terrível implantação da técnica mergulhou os homens em uma pobreza totalmente nova” (Walter Benjamin, Pobreza e experiência). Sempre que uma pessoa vivencia uma experiência – seja ao olhar para algum lugar, seja ao observar gestos dos dançarinos –, a coerção do dispositivo técnico surge, o smartphone ou a câmera é retirado para captar o evento. Esta captação quebra a aura da singularidade do evento, a experiência vivida através do dispositivo tecnológico e destrói imediatamente a experiência da esfera humana. Assim, o desaparecimento brutal e banalmente imediato da experiência vivida remete a outro desaparecimento, o da máxima e do provérbio. Essas formas pelas quais a experiência se consolidava como conselho ético ou moral são substituídas pelo slogan, apreciado por esses comunicadores e marqueteiros de todos os tipos, com o propósito de vender uma singular porcaria. A privação da experiência se encontra no próprio fundamento do projeto da ciência moderna. Embora comumente se acredite que a ciência moderna tenha emergido da atenção à experiência, a realidade é exatamente o oposto: a desconfiança em relação à experiência constitui um dos fundamentos da ciência moderna. Os modernos sempre duvidaram da experiência. “Eu suporei, então, que não há um verdadeiro Deus, que é soberana fonte da verdade, mas sim um certo gênio maligno, não menos astuto e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria para me enganar. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos dos quais ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo   desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, como não tendo nenhum sentido, mas acreditando falsamente ter todas essas coisas.  Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não estiver em meu poder de alcançar o conhecimento de qualquer verdade, ao menos estará em meu alcance suspender meu julgamento. Por isso, tomarei cuidado para não receber em minha crença nenhuma falsidade e prepararei tão bem minha mente para todas as astúcias desse grande enganador, que, por poderoso e astuto que seja, jamais poderá impor-me algo” (René Descartes, Meditações metafísicas). O exemplo de Descartes é significativo com seu “gênio maligno”, a inclinação à dúvida em relação ao mundo e, por conseguinte, em relação também a si. Da mesma forma, o cientista da experiência, como garantia que permite a transição lógica das impressões sensíveis para a objetividade das determinações quantitativas, é mais uma saída da esfera humana. De fato, devido à necessidade de realizar o projeto de estabelecer a experiência contra a autoridade do conhecimento e de transformar a experiência em um sujeito único, a ciência moderna exclui a experiência do âmbito do conhecimento. Por consequência, o conhecimento produzido pela ciência moderna torna impossível qualquer ética da experiência.

Uma experiência traumática assombra o velho mundo. Ela foi aberta pela COVID. O que traumatizou o mundo não foi tanto a doença, como a violência da governabilidade que mais da metade da população sofreu com as medidas “sanitárias”: o confinamento, a restrição ao domicílio, a vacinação em massa e os dramas causados pelos efeitos secundários. Se o governo viu que o vento mudou, não é para estabelecer verdades necessárias, mas porque está privado de qualquer experiência possível da verdade. O fato de cada vez mais os efeitos secundários da vacina serem reconhecidos, ao mesmo tempo que os minimiza, mostra claramente essa intenção de quebrar qualquer verdade pelo ajuste da mentira. Daí a importância do gesto do grupo de liberdade no ano passado na França. Essa tentativa efêmera ao menos teve o mérito de fazer existir uma experiência traduzível. Tentar a tradução da singularidade de sua experiência mortífera sofrida em consequência da COVID, para poder finalmente partilhar com outros sua experiência vivida numa proximidade psíquica. Em outros termos, viver ao contato de uma experiência da verdade. Quanto aos observadores distantes, receosos de verem as pessoas preferirem revoltarem contra a vacinação em massa e contra o passe sanitário ao invés da defesa das conquistas sociais, eles são incapazes de perceber o que se joga em cada revolta: o movimento de busca da verdade. A emergência de um movimento necessita um abrandamento da ofensiva do capitalismo. Sem isso, nos resta toda asfixia, principalmente pela impossibilidade de perceber e fazer existir uma experiência de subtração combativa.


Ezra Riquelme

Erza Riquelme é colunista permanente na revista Entetement Revue — https://entetement.com —

Wesley Sousa

Graduado em Filosofia pela UFSJ. Mestrando em Filosofia pela UFSC na área de Ontologia, com ênfase em Filosofia da Arte e Estética. Desenvolve pesquisa a partir de György Lukács. Outras áreas de interesse: História da Filosofia, Teoria/crítica literária e Estética.

Tradutor

Isabela Pereira

Isabela Pereira. Graduada em Filosofia pela UFMS. Mestranda em filosofia pela UFSC. Tradutora, pesquisadora do pensamento de George Berkeley e do pensamento empirista moderno.

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