De toda a política, só compreendo uma coisa: a revolta
— Gustave Flaubert

 I.

     Em um sentido, Baudelaire, depois de 200 anos de seu nascimento, permanece tão atual como foi nos anos de 1850 e 1860. As marcas deixadas por seu magnus Les fleurs du mal (1857) continuam sendo, na história da modernidade, uma valiosa proposição poética não apenas em respeito à ficção, no âmbito das letras e literatura, mas de modo igual (ou melhor, de modo mais abrangente) em relação à sociedade imperada pelo modo de produção capitalista e pela valoração reificada da vida. Baudelaire, um dandy e flâneur, recebido pela burguesia com o preconceito advindo de sua ideia contrária ao raciocínio moralista das classes dominantes quanto às formas tanto societárias quanto artísticas no século XIX, deixou marcado todo um sintoma do que entendemos por modernidade através dos meios poéticos, componentes da retórica das Flores do mal em todos os ciclos em que o livro se pôs, precisamente na parte da Révolte, em que deixa clara que sua palavra é, naquele momento, iconoclasta e incendiária, procurando questionar a questão da crise moderna, existente no cotidiano nos seus movimentos alegóricos, convergentes a um sentido teológico-histórico de imagens diacrônicas do mundo. O ciclo denominado Revolta foi escrito entre fevereiro de 1848 e dezembro de 1851, contando três litanias, três orações que se instrumentalizam por detrás dos cantos, ladainhas, consistentes a formações invocativas de determinados personagens teológicos bíblicos: Le reniement de Saint Pierre, Abel et Caïn e Les litanies de Satan. Nessa tripla produção, Baudelaire preconiza temáticas blasfematórias que conjugam teologia e historicidade. O primeiro poema revela uma passagem bíblica da negação a Jesus Cristo do primeiro de seus seguidores, o apóstolo Pedro; o segundo, o assassinato de Abel cometido por Caim; e, por último, uma ode à figura do mito de Satã. Nas ocasiões, o poeta desfigurativiza, alegoricamente, noções do cristianismo, sob ditame de um clamor a determinações históricas promovidas por essas mesmas notações da teologia positiva da Bíblia e suas interpretações. Tomadas produtos específicos e contingentes da literatura ocidental do século XIX, as configurações retóricas e poéticas da supracitada tópica determinam, dizia um filósofo berlinense, uma visão para “demolir a fachada harmoniosa do mundo”, posicionadas as críticas ácidas histórico-teológicas em sua alegorização.

II.

    É notável a representação engendrada por Baudelaire e seus três poemas da Revolta. Representação descontinuada entre significante e significado (há algo de corrosivo entre os dois, de modo que nenhuma Linguística estrutural poderia dar uma estrutura fixa). O signo alegórico traz operações que se manifestam o suprassumo, até aquela época, da tipificação poética contra o imaginário do Ocidente moderno. O primeiro, parece, se aprofunda no questionamento da relação entre Deus e sua construção histórico-teológica pela burguesia industrial, que é identificada pela figura do serafim, anjo mais próximo do Criador na hierarquia celestial. Baudelaire entende o Ser como um tirano de pança cheia, insaciável em semelhança ao capitalismo. Compreendido, funcional, como uma espécie de refração imagética da burguesia, sua criadora. O Deus burguês, aí, se qualifica semelhante à classe burguesa, os burgueses serafins, antípodas da classe amorfa que emergia nas fileiras da sociedade capitalista, o proletariado. Pode-se perceber, a partir do elenco da alegoria, juntamente aos fenômenos históricos do ano de 1848 (o primeiro embate armado entre duas classes antagônicas, a burguesa e a proletária), apelos e gritos em prol de uma ideia de Revolução (ou, pelo menos, de sua legitimação enquanto matéria da própria modernidade). Não são à toa que as vociferações, imprecações e blasfêmias contra a ordem serafina servem como apelação à destruição e à revolta da classe “nascida do cruzamento de bandidos e prostitutas”, a classe de homens inferiores para o burguês. No plano, Baudelaire abre a seção legitimando a insurreição, a bancarrota social e a supressão da sociedade pela baioneta, contendo, conforme suas experiências com as deflagrações revolucionárias das ebulições de fevereiro e de junho, os ideais em voga naquele ano.

III.

      Nesse mesmo enredo, de deslocamento de uma situação teológica para as relações históricas, é operada uma outra poética em forma de allegoria, pondo mais óbvia a relação entre a Révolte e os acontecimentos de 1848. Nela, a denotação ficcional de Baudelaire demanda o evento do assassinato que origina os filhos de Caim e de Abel, seus descendentes no percurso da história humana. Se vê, então, a identificação entre os escolhidos e os exilados, respectivamente, os herdeiros de Abel, o assassinado, e de Caim, o assassino. A fachada representacional nos quatro primeiros dísticos acaba procedendo lances de origem das classes sociais antagônicas da sociedade do século XIX até hoje? Óbvio, relacionando os outros dois poemas do ciclo: a raça de Abel é identificada com a burguesia, enquanto os descendentes de Caim são os proletários (ou os despossuídos, no geral). A derivação que surge entre os dois polos, as duas imagens que não podem se tocar, traduz o advento das classes burguesa e proletária no bojo do capitalismo pela desigualdade, originária, teologicamente, em Abel e Caim. A raça dos despossuídos é a raça de Caim, condenada a carregar, em sua testa, a marca da inferioridade enquanto a raça de Abel existir. Há a repartição irreconciliável. Pela sátira, Baudelaire insinua a separação entre origem e traço – a situação que referencia a diferença entre poesia e temporalidade –, mas ao mesmo tempo faz a união entre ambos, um elo de discursividade que só pode sugerir o abalo sísmico de significantes da sua experiência poética.

IV.

      A última parte do estágio leva o nome de Litanias de Satã, cuja ideia do mito do anjo expulso do Céu é diferida pelos pressupostos dos poemas anteriores: o ícone de Satã arquétipo em tripla função: depósito do Saber, instrutor hábil requintado de memória prometeica e o pai da revolta e dos revoltosos. Baudelaire tanto tenciona por meio da blasfêmia quanto reverte o modo de como o mito é visto por uma teologia que nega (e de relações com o Fora). Nas trincheiras e barricadas, inimigo contra a ordem dos serafins e também representante do proletariado, Satã é visto por Baudelaire como um emblema e é posto, por suas qualidades e categorias no século oitocentista, como o liame entre a bomba e a poesia. A poesia como forma de bomba e a bomba como forma de poesia. Nesse sustento, as litanias baudelairianas, compreendidas pela significação cultural da poesia moderna e do recurso estilístico e retórico, partiram contra o capital e o sujeito burguês, contra a sociedade da mercadoria. Os gestos e ações do boêmio francês ecoariam, enfim, pelas tratativas na vanguarda do século passado, do surrealismo de Breton ao dadaísmo de Tzara, demonstrando que sua radicalidade nas palavras, no Les fleurs du mal, fincaram seus pés. Ao mesmo tempo em que Baudelaire instituía uma nova época nas letras, também objetivava um outro mundo junto à poesia. Mundo esse tentado a se construir em experiências vindouras (1871, 1917, 1936, 1956, 1968 etc.). Os versos satânicos de Baudelaire, de 1848 até o golpe de Estado francês em 1851 (e aqui, vale lembrar, que pouco importa o que achou do acontecimento depois), fazem lembrar os aspectos de ação, segundo as anedotas sugestivas de companheiros e historiadores do poeta, durante sua vida. Não foi somente um apologeta da mudança nas artes, em sua juventude, mas da aniquilação das coisas em um significado estritamente revolucionário. Urge pensar em como sua obra poética, hoje, deve ser lida em profundidade com o seu alcance político. Il faut aller fusiller le general Aupick!


 


PÓS-ESCRITO

  • Palavras de Walter Benjamin foram usadas nesta nota. Sobre isso, ver: Walter Benjamin: Baudelaire e a modernidade, da editora Autêntica. A alegoria, na alta modernidade, foi útil para reverberar tipos e noções de um outro mundo, quebrando a lógica deste. Bem como Charles Baudelaire, encontramos o mesmo recurso em Arthur Rimbaud e Cruz e Sousa, por exemplo.
  • Em modo de metáfora, Satã também é visto no anarquista russo Mikhail Bakunin, em Deus e o Estado, em referência negativa à concepção cristã. Talvez uma marca de um cristianismo decaído no século XIX, como diria o teórico alemão Hugo Friedrich.
  • Seria preciso problematizar até que modo poesia e revolução, estética e política negativa, são fenômenos dicotômicos. Seria importante também frisar que sua obra ainda se compõe dentro dos limites de formas fixas, rítmicas e espaciais do poema, mesmo com o caráter prosaico da lírica. O eixo de expressão que ressoa revolucionário, no Oitocentos, é verdadeiro quando se tem a própria tessitura sócio-histórica em que se encontrava a sua poética, em conluio, é claro, com as implosões semânticas do poema.
  • Segundo consta, em meio à insurreição de 1848 que deu início à Segunda República Francesa, nas ruas de Paris, com gritos de ordem, bradava Baudelaire ordenando a execução do general francês Jacques Aupick, casado com a mãe do poeta em 1828.

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