O grau zero da filosofia
“Paulo Arantes, o mais feroz crítico do governos FHC desde a academia, diz que o presidente ‘emburreceu por excesso de coerência a seu marxismo vulgar’” – Revista República
“O filósofo no chão: a auto-ironia exclui o baluartismo, uma ideia sem futuro, diz Arantes”, foto de Paulo Fridman
Ele admite, com bom humor, que foi derrotado e, seguindo o conselho do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, antes de vilipendiar o vitorioso, olha para trás e tenta descobrir a origem do erro: no caso, como a esquerda permitiu uma vitória tão contundente do adversário. O filósofo Paulo Arantes, um dos expoentes brasileiro do pensamento da esquerda, que tenta se reorganizar e, desde a academia, um dos principais críticos do governo FHC, imagina ter identificado o momento do equívoco: o erro veio da insistência no marxismo do movimento operário, industrializante, que, na verdade, não era uma oposição ao capitalismo, mas uma alavanca que acabou concorrendo, em alguns países, para a modernização do capital.
É o mesmo erro, diz o filósofo, que faz o presidente Fernando Henrique Cardoso ainda acreditar que ‘compete a nós da esquerda substituir essa burguesia vagabunda’. Para Arantes, a maior crítica que se pode fazer ao presidente é “dizer que ele emburreceu por excesso de coerência e fidelidade a seu materialismo e a seu marxismo vulgar”. FHC, “um modernoso deslumbrado, euforizante, cercado de predadores”, não estaria percebendo que a aliança com a burguesia – para modificá-la e ao país – não é mais possível e que a inserção do Brasil na economia globalizada não se dará senão na condição de país periférico.
Esse é um dos diagnósticos que emergem da coleção Zero à Esquerda, um pacote de 22 livros com capa devidamente vermelha que, com a professora de literatura Iná Camargo Costa, Arantes organizou para a editora Vozes. Cinco volumes já foram lançados em dezembro e outros cinco já estão definidos para este mês. O restante deve sair até o fim do ano. A coleção traz escritos de autores como Robert Kurz, Giovanni Arrighi, François Chesnai, Robert Castel, Ignacio Ramonet e Dolf Oehler, somados a textos de autores nacionais como Maria da Conceição Tavares, José Luís Fiori, Francisco de Oliveira e dos próprios organizadores, além de um volume com textos inéditos de Herbert Marcuse. Um seminário nos dias 13, 14 e 15 deste mês no Rio de Janeiro, com a presença dos autores, deve marcar o lançamento dos cinco novos volumes da coleção.
A partir de leituras “mais ou menos marxistas” sobre o real significado da crise financeira mundial, a coleção procura traçar novas perspectivas para uma reformulação de esquerda que atinge, além da política, cultura, urbanismo, arte e sociedade, como define o coordenador da coleção. O título que inspira a série, aliás, surge de um livro de autoria do próprio Arantes – Diccionario de Bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda, um livrinho de fato em formato de bolso, de 83 páginas, em que o autor vai listando verbetes e neologismos políticos e recheando-os com trechos de entrevistas de homens públicos e intelectuais. As “redefinições” de Arantes resultam sempre irônicas e sarcásticas com o governo FHC e o que ele chama de “partido intelectual”. Em entrevista a República, Arantes, 55 anos, 30 deles de “magistério” na USP, fala sobre o papel da esquerda na política brasileira e sobre as virtudes de uma espécie de ética do pessimismo. Fiel a Brecht, considera que “de nada serve partir das coisas boas de sempre, mas sim das coisas novas e ruins”. Abaixo, a entrevista.
República: O sr. Já se referiu à possibilidade de a coleção influir na eleição presidencial. Há um projeto político?
Paulo Arantes: Seria uma boutade falar em influir na eleição. Mas é claro que tem um sentido de intervenção política. Não se trata de uma coleção para um público específico de ciências humanas. Por outro lado, ela não é doutrinária, não tem cor partidária ou qualquer vínculo. Tem linha, mas não necessariamente marxista. Tem gente que vem da escola histórico-estrutural da Cepal, gente que foi neokeynesiana de esquerda, gente como o Giovanni Arrighi, que não é marxista, mas um braudeliano de esquerda.
Zero à Esquerda pode significar começar do zero e nulidade absoluta. De qual das duas coisas se está falando?
Várias coisas, desde as paródicas até “recomeçar do zero”. E brinca com a ideia de derrota. Conselho de Brecht: “Foi derrotado? Primeira providência: em vez de xingar o adversário, ver onde errou”. A auto-ironia exclui também a ideia de baluartismo, um raciocínio sem futuro.
Vocês acham que foram derrotados? Onde erraram?
Eu não diria derrotados, numa situação em que você se sente moralmente confortável. O capitalismo hoje se apresenta como uma ameaça à vida civilizada, e isso é uma derrota para a humanidade. Então você pode dizer que a esquerda globalmente não conhecia uma derrota de tal magnitude desde os anos 30. Esta e a interpretação de um dos autores da coleção, o Robert Kurz: o marxismo tem duas dimensões e uma cumpriu o seu destino histórico e chegou ao limite. Esse é o marxismo da luta de classes, do movimento operário. Há uma nova configuração no capitalismo que solicita uma nova dimensão do próprio pensamento de Marx, que é a crítica da socialização pelo valor e do fetichismo da mercadoria. Você chega a uma linha terminal quando tem a mercantilização generalizada da sociedade. Você tem, frente a frente, dois autores absolutamente modernos em confronto e que chegou a esse paradoxo que não faz mais a história avançar.
E a coleção procura responder a esse impasse…
São as “coisas novas e ruins”. A globalização para o Robert Kurz é isto: o acabamento dessa modernidade burguesa. Quem não tem nada para vender no mercado é supérfluo, uma massa sobrante. A teoria clássica diria que este é o momento do combate final.
Da revolução?
Da revolução… Daí, segundo Kurz, a que temos assistido de 68 para cá? Nenhum confronto entre essas duas classes fundamentais, burguesia e proletariado, e uma já está inteiramente corroída pelo desemprego em massa. E, nesse momento, você tem o desmoronamento da União Soviética. Kurz inverte o raciocínio: o fim do proletariado é o início da revolução. Temos de mudar o conceito de revolução: é agora, mas não pode ser pensada nos termos clássicos, do velho confronto entre essas duas classes, tomada do poder central e estatização dos meios de produção.
No prefácio que fez para A ilusão do desenvolvimento, de Giovani Arrighi, Fernando Haddad afirma que esse autor contradiz as expectativas de FHC em três pontos: o mundo não se encontra num ciclo de desenvolvimento, ainda que estivesse, países semiperiféricos como o Brasil obteriam algum sucesso apenas em setores internos; e isso não se traduziria em bem-estar social.
Bem, o Arrighi não está escrevendo essas coisas para o senhor FHC, mas o que ele diz é que não vai haver onda longa de prosperidade e, mesmo que houvesse, só um décimo da população decolaria. O resto fica lá, como já está acontecendo. E mesmo que houvesse novos ‘anos dourados’, nós não conseguiríamos sair da nossa posição porque, na hierarquia do capitalismo histórico, em que espaços políticos e econômicos não precisam coincidir necessariamente, só sai da sua posição quem inova.
E FHC estaria cumprindo um modelo com pouca inovação.
Está cumprindo o modelo de 60 países, um figurino para ficar no lugar. Segundo o Arrighi, mesmo imaginando que ele inovasse, o suposto arranque desenvolvimentista tem de ser mundial. Se não tem uma economia puxando – como os Estados Unidos 30 anos atrás – ninguém sai do lugar.
A gênese de um pensamento: Arantes aliou o estudo técnico da filosofia à compreensão do Brasil
A trajetória de Paulo Arantes explica-se em parte pelas conexões e interseções entre duas vertentes intelectuais distintas – a da filosofia universitária e a do ensaísmo do grupo Clima, cuja história ele próprio reordenou, num esforço de autocompreensão, em Um departamento francês de ultramar (Paz e Terra, 1994). Aí, atribui a Jean Maugüé essa dicotomia que separou o estudo técnico da filosofia da tarefa de compreensão do Brasil empreendida pela geração de Antonio Candido e Paulo Emílio.
Naquele momento, o esforço de Arantes concentrava-se em juntar essas duas metades dissociadas na origem. Procurava conciliar as contribuições da cultura filosófica uspiana, o ensaísmo de Bento Prado Jr. e a transcrição filosófica do marxismo por José Arthur Giannotti e Ruy Fausto, com a determinação da especificidade brasileira, levada adiante pela geração do seminário de O capital (de Roberto Schwarz, Fernando Novais e Fernando Henrique Cardoso). Visto retrospectivamente, mais precisamente de acordo com a descrição de O fio da meada (Paz e Terra, 1996), tratava-se de transpor os limites rarefeitos da filosofia acadêmica – um processo iniciado com a redação dos ensaios depois coligidos em Ressentimento da dialética, que, a par da reconstituição da experiência intelectual responsável pelo moderno renascimento da dialética, trazia, junto com um mapeamento da vida intelectual francesa, alemã e italiana, uma sistematização das diversas modalidades de vias “retardatárias” da modernização capitalista. Essa transição completara-se com a publicação de Sentimento da dialética (Paz e Terra, 1992), um painel da experiência intelectual brasileira centrado nas figuras de Antonio Candido e Roberto Schwarz.
Em 1996, porém, O fio da meada – junto com um acerto de contas com a tradição filosófica, implacável com a sua vertente profissional e que não desculpava nem sequer o seu primeiro livro, Hegel: a ordem do tempo (Polis, 1981) – unifica essas duas vertentes, no emblema Partido Intelectual, sob a acusação comum de tenderem muito a ser “a favor”, mesmo quando pareciam ou queriam ser “do contra”. Mais do que a explicação de um ajuste intelectual, inicia-se aí uma mudança de posição: em vez de herdeiro e sucessor ungido dessas duas vertentes do pensamento uspiano, Arantes coloca-se como crítico da tradição intelectual brasileira.
Semelhante modificação impôs-se pela conjunção casual de dois fatores: o avanço sem peias de desintegração do projeto desenvolvimentista e a chegada de um dos expoentes do tal Partido Intelectual à Presidência da República. O fim da ilusão do desenvolvimento e a consciência da inviabilização global das industrializações retardatárias – iniciada entre nós com a apresentação de Roberto Schwarz ao livro O colapso da modernização (Paz e Terra, 1993), de Robert Kurz – completam-se com um artigo memorável que o próprio Schwarz publicou às vésperas da posse de FHC.
Diante dessa, sim, verdadeiramente nova agenda, a tarefa de Arantes alterou-se. Algumas providências para a atualização do debate intelectual e para uma reorganização da nossa virada cultural já foram tomadas com a redefinição do arsenal teórico disponível, seja repensando o marxismo ocidental (bem como a versão industrializante na qual se insere FHC), seja requalificando o conceito de formação. Trata-se dos primeiros passos para submeter à crítica o próprio capitalismo mundializado.
Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp e está doutorando-se na USP com uma tese sobre a história do marxismo.
O sr. Fez um mea culpa ao dizer que a esquerda brasileira havia caído num engodo quanto à impossibilidade de dar seguimento ao pensamento marxista depois da queda do Muro. Somente um tempo depois você se percebeu que isso poderia ser feito na forma da Teoria do Valor Marxista. É isso?
Sim e não. O mea culpa não é do marxismo em geral, mas do marxismo brasileiro em versão USP. Esse tipo de pensamento está encarnado pelo presidente da República hoje. Mea culpa em relação a isto: onde é que nós erramos para ele ter cometido isso? Porque ele tem toda razão em afirmar que jamais disse “esqueçam o que escrevi, porque estou justamente cumprindo à risca, não o que foi combinado, mas uma das virtualidades desse esquema conceitual”. Diz o Roberto Schwarz: o presidente e todos aqueles que ideológica, política e teoricamente o apoiam são uma variante desse marxismo que o Robert Kurz chamou de marxismo do movimento operário. É o marxismo industrializante.
Que era, a propósito, o marxismo de vocês, uspianos…
Que deu errado! A evidência desse nosso erro está na coerência da carreira do presidente, que é um marxista vulgar. Nós estávamos indo nessa direção e pulamos fora. Por isso ele tem toda razão em dizer: “A combinação foi essa! Vocês pularam fora e ficam me xingando? Ou são burros ou loucos”.
E agora vocês respondem que a barca estava furada?
Só que nós descobrimos tardiamente. Mas a crítica mais grave que eu faria ao presidente não é dizer que ele está ferrando o povo brasileiro. Ele cometeu um erro intelectual, não porque é limitado ou míope. Pelo contrário, ele é um fulano brilhante, inteligente. Mas errou, fez um mal diagnóstico.
O mesmo de vocês
Como todos nós!
O problema então foi ele calhar de ser presidente?
Só que ele tocou o barco sozinho como o combinado! Tem gente que ainda acha que nessa aliança tática ele vai engolir a direita, numa espécie de tarefa histórica cumprindo esse programa de esquerda brasileira…
FHC então não contribuiria para civilizar a direita brasileira?
Depois do Plano Marshall achávamos que o welfare state teria civilizado o capitalismo. Não só não civilizou como o capitalismo se revigorou nesses 30 anos e está aí barbarizando. Então essa tradição crítica brasileira, que não é de se jogar fora porque a interpretação que eles deram do Brasil ainda não tem melhor, coerentemente, deu nisto: não está entendendo o que se passa no mundo. Acha que há uma reestruturação, que as forças produtivas estão emergindo. “Compete a nós da esquerda substituir essa burguesia vagabunda”. Ele pensa isso.
Quem pensa isso?
FHC. É claro que ele sabe que essa burguesia é vagabunda. Temos de substituí-la e encaixar o Brasil; temos de aprofundar a nossa dependência porque nós somos periferia e fora da dependência não há salvação. Então ele fez toda a lição direitinho. Conclusão: a crítica do “nós erramos” diz respeito a essa linha do marxismo do movimento operário na sua versão mais light, em que o agente transformador são intelectuais, na forma de Estado, e costurando uma grande aliança de classes, tentando civilizar também a burguesia brasileira para ela deixar de ser mercantilista e protecionista. Só que não está acontecendo nada disso, mas o contrário. E nesse momento da virada, quando o capitalismo muda para pior, essa tradição está desarmada para a crítica.
O diagnóstico do Arrighi e essa sua análise são duplamente pessimistas para o Brasil. Isso não corrobora a tese de que a oposição não tem projeto alternativo e fica prevendo a catástrofe?
O que o Kurz está chamando de colapso da modernização não é a catástrofe como o colapso do sistema, no sentido do marxismo clássico. Segundo ele, a catástrofe já aconteceu, quando a periferia afundou, nos anos 80, e depois afundou a União Soviética. Agora ela está indo para o centro, o núcleo orgânico. E as consequências que se podem tirar do Arrighi são normativas. Ele diz o seguinte: o desenvolvimento é uma ilusão. E tenta demonstrar historicamente. O núcleo orgânico está lá, gerindo sua riqueza, que é oligárquica, implica exploração e exclusão. Nós temos de nos habituar à ideia de que essa estratificação da economia mundial – núcleo orgânico, semiperiferia, periferia – é estrutural. Se ela for abolida, o capitalismo não funciona. Mas esse fosso entre a periferia e o topo orgânico é intransponível! Então pessimismo por quê? Porque faz parte da constituição ideológica da semiperiferia a ideia de que pode mudar. Só que Arrighi diz o seguinte: é isso que legitima o sistema mundial hierarquizado, porque tem gente que acha que vai entrar lá. No século passado entraram os Estados Unidos, a França mais ou menos, a Itália um pouquinho neste século, o Japão, que é o único milagre, mas foi convidado, e a Alemanha depois de duas guerras mundiais. A União Soviética não conseguiu. As duas vias caíram simultaneamente: a soviética e a nossa desenvolvimentista. Pelo que diz o Arrighi, o pensamento semiperiférico do nosso marxismo ocidental, brasileiro, uspiano, industrializante se nutriu dessa ilusão.
E isso não é catastrofismo?
Se as pessoas com 48 horas descobrirem que não vão passar para o outro lado, que FHC está mentindo, Lula está mentindo, Clinton está mentindo, a União Soviética está mentindo e que os chineses estão mentindo, o pau vai quebrar, não vai? Já está quebrando e pode quebrar para pior. Então é bom que não haja catastrofistas e pessimistas. O Lula não é pessimista, ele diz que o FHC pegou um caminho iníquo, do ponto de vista ético, social, e economicamente desastrado, e diz que nós (eles) vamos pegar um caminho melhor. O Arrighi diz? Não tem caminho melhor.
Pelos livros da coleção, qual diagnóstico da crise atual?
São vários os cenários, apresentados pelos diferentes autores. Mas, em linhas gerais, podemos dizer que existe uma crise real. A hegemonia americana não é a mesma de 30 anos atrás. Se fosse, a economia mundial estaria crescendo e ela não cresce há 25 anos. Você não tem o dinamismo que há um certo momento estava no sudeste asiático. Por outro lado, os Estados Unidos não podem pôr inteiramente de joelhos o Japão e a China porque o espaço econômico nacional americano está inteiramente internacionalizado. Estamos num momento em que o Arrighi chama de caos sistêmico. Você não sabe se o capitalismo está próximo de acabar como um sistema hierarquizado mundial que se transforma num império americano, por exemplo. É uma outra situação histórica, pode ser qualitativamente melhor ou pior, pode ser o fim da civilização, não se sabe. Essa é a encrenca.
O que significa o reconhecimento da “ilusão do desenvolvimento” para o Brasil numa sociedade pós-catástrofe?
É claro que haverá um pequeno núcleo, como sempre houve desde 1600, que estará conectado no circuito da riqueza oligárquica internacional. Mas a ideia de que haverá uma sociedade homogênea desaparece. O espaço vital dos poucos detentores da riqueza oligárquica do Brasil vai ser cada vez menor. Então a tendência vai ser expulsar e conservar na marra. Vai ter de organizar a miséria. E é uma ilusão imaginar que agora o Estado escolhe e terá apenas um papel estratégico de regulação. É a ilusão da ilusão imaginar que o capital privado vai assegurar aquilo que já é ilusório feito pelo Estado.
O que a esquerda tem pela frente, o que ela pode fazer além de dar esse diagnóstico?
Com o diagnóstico, a esquerda já cumpriu metade do seu papel. Alguma coisa que nós poderíamos chamar de “nova esquerda” começa a dizer: olha, a situação vai se agravar, vai ficar visível quem está dentro da Bélgica e quem está dentro da Índia e que há uma ilusão entre elas, que nós não podemos mais prometer a redenção. Então você começa a imaginar como essa sociedade vai se reproduzir: posição cultural brasileira, sua organização social, como é que os sem terra se organizam… Mas vai ter de tudo, não estou fazendo demagogia. Temos de constatar um nível técnico de desenvolvimento das forças produtivas que é inegável, que dá para configurar uma espécie de padrão de riqueza democrática, como diz o Arrighi – você não vai voltar para o arado de madeira. Por outro lado, você tem já populações que estão começando a se reproduzir como se não contassem com o mercado, e de maneira organizada. Então você tem de um lado o MST e de outro, o traficante de cocaína. E não pode abandonar lutas imanentes por moradia, saúde, infraestrutura, água potável, e tem de ter alguma instância que financie isso.
O MST serviria então de paradigma para novas configurações sociais fora do mercado?
Eu não diria paradigma. Digo apenas: observem como essa massa da população brasileira que não tem futuro está se organizando. Esses caras não estão pedindo mais do que o viável. A coisa nova vem da percepção socioeconômica de que a ideia de desenvolvimento é uma ilusão e de que a miséria vai se estabilizar. E de que a riqueza oligárquica do centro orgânico é inatingível. Você vai ter tendências fascistóides aqui, o espaço vital dos poucos detentores da riqueza oligárquica do Brasil vai ser cada vez menor. Então a tendência vai ser expulsar e conservar na marra.
Neoliberalismo é outro mito?
Outro. Você vai começar a desregular os mercados financeiros e estabilizar as economias nacionais com o dólar. Toda a riqueza mundial será denominada em dólar. E chamam isso de globalização. A transnacionalização do sistema produtivo está aí há um século. Os americanos inventaram isso no século passado. E há sete anos os Estados Unidos são a única economia que cresce, e o resto está indo para o fundo. Tem de haver uma explicação: isso se chama diplomacia do dólar forte, que é o nome que a Maria da Conceição Tavares dá.
A esquerda torce para que tudo acabe dando errado?
Só se fosse louca. Torcer para dar errado é uma insensatez muito grande, inclusive conceitual. O que está havendo aí, com moeda estável e inflação lá embaixo, já está errado. Já deu errado. FHC será escorraçado se houver uma desvalorização da moeda e crise cambial brava. Mas crise cambial cai no nosso lombo. Ninguém torce para isso. Torcer para uma crise cambial grave é torcer para que o povão pague mais o pato.
O sr. não vê nada de bom no governo FHC, nem a estabilização da moeda?
O governo FHC não tem mérito algum. Ele implica descalabro econômico e apodrecimento político e social. É um governo macropopulista no sentido neoliberal: não fizeram outra coisa nesses três anos a não ser populismo por meio do consumo, financiado por aplicações externas. FHC é um operador quebrado num cassino. Para manter a moeda estável ele enfiou iogurte, dentadura e frango no povão. E nada de empregos, de direitos, de proteção social. A maior crítica que eu poderia fazer a ele é dizer que ele emburreceu por excesso de coerência e fidelidade a seu materialismo e a seu marxismo vulgar, a seu determinismo tecnológico, à sua crença em que relações sociais e de produção são infinitamente maleáveis e acompanham as forças produtivas. Ele errou por progressismo burguês: o mais míope, tapado e estúpido possível.
FHC joga mal no cenário da economia mundial?
Não é questão de jogar mal ou jogar bem. Só podem jogar bem os Estados Unidos, com os europeu e japoneses tentando. É entre eles o jogo. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso se limita a fazer a lição de casa como outro qualquer. FHC não tem nada a dizer, nada do projeto histórico, a não ser que sejamos economicamente hegemônicos.
E a “nova esquerda” tem projeto?
Vai começar a aparecer somente no momento em que se tiver a percepção social e conceitual do estrago que a marcha das coisas mundializadas está fazendo no Brasil.
Como FHC poderia ter projeto se ele só vai se delinear a partir do estrago provocado pela mundialização?
Mas ele está dizendo que isso é a sétima maravilha…
Então ele está mentindo?
Não, ele acredita piamente nisso.
Entrevista publicada no número 18 da Revista República em abril de 1998. Disponível em: <https://revrepublica.com.br/edicao/18>