O grau zero da filosofia

“Paulo Arantes, o mais feroz crítico do governos FHC desde a academia, diz que o presidente ‘emburreceu por excesso de coerência a seu marxismo vulgar’” – Revista República

A gênese de um pensamento: Arantes aliou o estudo técnico da filosofia à compreensão do Brasil

A trajetória de Paulo Arantes explica-se em parte pelas conexões e interseções entre duas vertentes intelectuais distintas – a da filosofia universitária e a do ensaísmo do grupo Clima, cuja história ele próprio reordenou, num esforço de autocompreensão, em Um departamento francês de ultramar (Paz e Terra, 1994). Aí, atribui a Jean Maugüé essa dicotomia que separou o estudo técnico da filosofia da tarefa de compreensão do Brasil empreendida pela geração de Antonio Candido e Paulo Emílio.

Naquele momento, o esforço de Arantes concentrava-se em juntar essas duas metades dissociadas na origem. Procurava conciliar as contribuições da cultura filosófica uspiana, o ensaísmo de Bento Prado Jr. e a transcrição filosófica do marxismo por José Arthur Giannotti e Ruy Fausto, com a determinação da especificidade brasileira, levada adiante pela geração do seminário de O capital (de Roberto Schwarz, Fernando Novais e Fernando Henrique Cardoso). Visto retrospectivamente, mais precisamente de acordo com a descrição de O fio da meada (Paz e Terra, 1996), tratava-se de transpor os limites rarefeitos da filosofia acadêmica – um processo iniciado com a redação dos ensaios depois coligidos em Ressentimento da dialética, que, a par da reconstituição da experiência intelectual responsável pelo moderno renascimento da dialética, trazia, junto com um mapeamento da vida intelectual francesa, alemã e italiana, uma sistematização das diversas modalidades de vias “retardatárias” da modernização capitalista. Essa transição completara-se com a publicação de Sentimento da dialética (Paz e Terra, 1992), um painel da experiência intelectual brasileira centrado nas figuras de Antonio Candido e Roberto Schwarz.

Em 1996, porém, O fio da meada – junto com um acerto de contas com a tradição filosófica, implacável com a sua vertente profissional e que não desculpava nem sequer o seu primeiro livro, Hegel: a ordem do tempo (Polis, 1981) – unifica essas duas vertentes, no emblema Partido Intelectual, sob a acusação comum de tenderem muito a ser “a favor”, mesmo quando pareciam ou queriam ser “do contra”. Mais do que a explicação de um ajuste intelectual, inicia-se aí uma mudança de posição: em vez de herdeiro e sucessor ungido dessas duas vertentes do pensamento uspiano, Arantes coloca-se como crítico da tradição intelectual brasileira.

Semelhante modificação impôs-se pela conjunção casual de dois fatores: o avanço sem peias de desintegração do projeto desenvolvimentista e a chegada de um dos expoentes do tal Partido Intelectual à Presidência da República. O fim da ilusão do desenvolvimento e a consciência da inviabilização global das industrializações retardatárias – iniciada entre nós com a apresentação de Roberto Schwarz ao livro O colapso da modernização (Paz e Terra, 1993), de Robert Kurz – completam-se com um artigo memorável que o próprio Schwarz publicou às vésperas da posse de FHC.

Diante dessa, sim, verdadeiramente nova agenda, a tarefa de Arantes alterou-se. Algumas providências para a atualização do debate intelectual e para uma reorganização da nossa virada cultural já foram tomadas com a redefinição do arsenal teórico disponível, seja repensando o marxismo ocidental (bem como a versão industrializante na qual se insere FHC), seja requalificando o conceito de formação. Trata-se dos primeiros passos para submeter à crítica o próprio capitalismo mundializado.

Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp e está doutorando-se na USP com uma tese sobre a história do marxismo.

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