Graças ao empenho de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Maria Lúcia Cacciola e Marta Kawano, a editora Cosac Naify acaba de premiar o leitor brasileiro com uma obra-prima, A Filosofia e sua história, de Gérard Lebrun. Trata-se de uma reunião de textos publicados no Brasil (onde Lebrun ensinou por longos tempos: de 1960 a 66, de 1973 a 80, sempre retornando quando possível, em outras datas, ao que lhe parecia uma espécie de segunda pátria) por um dos maiores filósofos franceses da segunda metade do século 20. Uma obra-prima da filosofia franco-brasileira? Pelo menos a de um pensador europeu que confessava que, quando seu avião se aproximava do aeroporto de Congonhas, vinha-lhe à mente que… “O bom e velho Aristóteles tinha razão com sua ideia de lugar natural”.
São 27 ensaios ou artigos que percorrem de maneira original toda a história da filosofia, sublinhando de maneira aguda o interesse propriamente filosófico de tal percurso. No espaço desta resenha não será possível indicar todas as dimensões do grande interesse do livro em pauta. Felizmente, posso apoiar-me no belo prefácio de Carlos Alberto Ribeiro de Moura para ajudar ainda mais o leitor a penetrar na densa tessitura da escrita, que jamais nos afasta da clareza e da elegância.
Mas que podemos acrescentar ao prefácio de Carlos Alberto, no estreito espaço disponível? Apenas uma nota sobre os efeitos filosóficos da dupla recusa, por Lebrun, dos modelos da “história filosofante da filosofia” e da “análise estrutural dos textos filosóficos”. (Não resisto à tentação de contar aqui uma boa blague que ouvi de Lebrun: “Não há asneira, por mais monumental que seja, que não possa ser justificada e demonstrada apoditicamente por uma boa análise estrutural de texto”.) Insistir um pouco mais naquilo que já está presente nas entrelinhas do prefácio, mas que pode passar despercebido para uma leitura mais apressada. A tese é a seguinte: a única maneira para a filosofia readquirir vida – a contrapelo das modas dominantes – é evitar tanto Caríbdis (história “filosofante”) quanto Cila (análise “estrutural”), privilegiando a, e detendo-se na, pequena história. Nesse estreito espaço, poderá livrar-se dos dogmas da Teologia do Ser ou da Verdade e da monadologia dos sistemas que secretam, cada um, sua verdade incomparável, acessível apenas a quem os lê Ad mentem auctoris.
Mas por que poderia a “pequena história” permitir tal milagre? Lembremos que a dupla operação negativa implica em ruptura com a filosofia francesa do imediato pós-guerra, que aproximava fenomenologia e marxismo (lembremos o nome de Merleau-Ponty, ponto de partida do jovem Lebrun, com o qual batalharia ao longo de sua obra, opondo – talvez com alguma injustiça – suas ilusões de acesso ao Ser à ontologia negativa de Wittgenstein, como faz em um de seus últimos textos, intitulado O Devir da Filosofia). Mas, sobretudo, permite um afastamento crítico face às doutrinas que se opõem no presente, fazendo uma tópica e uma estratigrafia das questões levantadas nas entrelinhas dos textos e da constante metamorfose dos problemas filosóficos. Nada mais distante de tal empresa do que as perguntas: O que é a Filosofia? Qual seu necessário ponto de partida? Qual seu alvo último? O sentido da filosofia oculta-se diante de tais questões; mostra-se, pelo contrário, no seu devir, no seu tornar-se outra, no inventar ou criar novos problemas, nas mudanças do olhar que abalam sua pretensa essência, permitindo-os libertar-nos das ideologias ou dos dogmas que nos cegam. Ceticismo? Certamente não, mas seguramente sképsis (exame, pesquisa, suspensão provisória, pelo menos do valor de verdade de uma tese). Não era seu amigo e aliado M. Foucault, que fazia dessa suspensão etapa privilegiada de seu método arqueológico?
Como procurei mostrar alhures, é essencial, na obra de Lebrun, a referência a Kant (mas também a Hume) e à metamorfose que o filósofo alemão impõe à concepção clássica do erro. Operação na qual não está ausente um uso de Deleuze em sua maneira de privilegiar, contra a tradição clássica, a concepção da burrice e talvez, ocorre-me no momento, de uma espécie de esprit de sérieux – no limite, o senso comum que se esconde mesmo sob os discursos que o desqualificam. Já Pascal dizia: “A verdadeira filosofia ri da filosofia”. Como assim sugere Pascal, a antifilosofia não é de modo algum externa à filosofia: sobretudo porque só podemos rir realmente ou zombar da atitude doutrinal através da própria filosofia. Pois a filosofia não é necessariamente a procura de um Sentido Último das Coisas que, apenas ele, poderia garantir nossa “segurança moral”. Temos uma demanda inteiramente outra com a heurística lebruniana que atravessa obras de autores tão diversos quanto Pascal, Hume, Kant, Hegel e Nietzsche, todos presentes no “álbum de família” de nosso autor. Temos, de fato, uma interrogação inteiramente diferente que nunca visa o descanso final na descoberta de um Fundamento, mas, para usar a linguagem de Foucault, na tomada de consciência do dépaysement implicado pelo esforço de conhecimento. É, com efeito, no empreendimento arqueológico de Foucault ou na iniciativa anarcôntica de Hume que Gerard Lebrun encontra os modelos mais próximos de sua própria atividade histórico-filosófica.
Texto publicado originalmente em: O Estado de São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006
Bento Prado Júnior
Foi um dos mais importantes filósofos brasileiros. Ensaísta, professor, escritor. Entre suas obras mais importantes estão Alguns ensaios: Filosofia, literatura e psicanálise, Erro, ilusão, loucura e A retórica de Rousseau