Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo.
Se não posso vencer os céus, moverei o Inferno.

Virgílio, Enéida. Livro VI, verso 878.


O lema de toda mudança radical autêntica é o mesmo que a citação de Virgílio escolhida por Freud como epígrafe de seu livro A Interpretação dos Sonhos: Acheronta movebo — ”Eu moverei as regiões infernais”. Ouse perturbar o subsolo dos fundamentos não falados das nossas vidas diárias! Há duas dessas “regiões infernais” em nossas sociedades: (1) o inconsciente político propriamente dito, isto é. o vasto domínio das regras obscenas não escritas que suplementam as leis públicas, e (2) a rede digital que regula nossas vidas diárias, da esfera pública até a mais profunda esfera íntima. Vamos dar uma olhada mais de perto em cada uma dessas duas.

O inconsciente católico é estruturado como pedofilia

O grande número de crimes de pedofilia que estavam ocorrendo na Igreja Católica por todo mundo, da Irlanda e Pensilvânia até a Austrália, crimes cometidos por membros da instituição que promove a si mesma como o compasso moral da nossa sociedade, nos compele a levantar algumas questões difíceis. Quase tão terrível quanto o caráter horrendo dos crimes é o modo pelo qual a Igreja tentou minimizar o escândalo.

No meu país, Eslovênia, a figura liderante da Igreja, o Cardeal Rode, exibiu um aberto “realismo” cínico: Em uma de suas entrevistas na rádio, ele disse que “estatisticamente, isto é um problema irrelevante — um ou no máximo dois de cem padres tiveram ‘meio que uma aventura’”. O que imediatamente chamou a atenção do público foi o uso da expressão “meio que uma aventura” como um eufemismo para a pedofilia: apresentou-se um crime brutal de estupro a crianças como uma exibição normal de uma “vivacidade” aventureira (outro termo usado por Rode), conforme ele brincou em outra entrevista: “‘em quarenta anos’ você não esperaria que pequenos pecados como estes não fossem ocorrer, não?” Isto é a obscenidade católica em sua maior pureza: nenhuma solidariedade para com as vítimas (crianças), mas o que nós encontramos sob a postura moralmente correta é apenas a solidariedade mal disfarçada para com os perpetradores do crime, em nome do realismo cínico (“É assim que a vida é, somos todos de carne e osso, padres também podem ser aventureiros e cheio de vida…”), de modo que, no fim, as únicas verdadeiras vítimas parecem ser a Igreja e os próprios perpetradores, expostos à campanha midiática injusta. As cartas estão, portanto, perfeitamente postas sobre a mesa: “a pedofilia é nossa, é nosso próprio segredo sujo, e isso é, portanto, normalizado, a fundação secreta da nossa normalidade,” ou, como G.K Chesterton pôs, há um século atrás, em Ortodoxia (desatento da extensão total das consequências de suas palavras, é claro):

O círculo externo do cristianismo é uma guarda rígida de abnegações éticas e sacerdotes profissionais; mas dentro dessa proteção desumana você encontrará a velha vida humana dançando como dançam as crianças e bebendo vinho como bebem os homens; pois o cristianismo é a única moldura para a liberdade pagã.

A conclusão perversa é inevitável aqui: você quer apreciar o sonho pagão de uma vida prazerosa sem pagar o preço da tristeza melancólica por isso? Escolha o cristianismo! Nós podemos discernir os traços desse paradoxo na bem conhecida figura católica do padre (ou da freira) como o verdadeiro portador da sabedoria sexual. Lembre-se do que é sem dúvidas a mais poderosa cena em A Noviça Rebelde. Depois que Maria escapa da família von Trapp e volta para o monastério, incapaz de lidar com a atração sexual dela pelo Barão von Trapp, ela não pode achar paz ali, visto que continua a ansiar por ele. Em uma cena memorável, a Madre Abadessa lhe chama e a aconselha a retornar para a família von Trapp e tentar resolver a relação dela com o Barão. Ela manda esta mensagem por meio da estranha canção “Escale cada Montanha!”, cujo surpreendente leitmotiv é: “Faça isso! Se arrisque e tente tudo o que seu coração quer! Não permita que considerações mesquinhas fiquem no seu caminho!” O estranho poder desta cena reside em sua inesperada exibição do espetáculo do desejo, o que torna a cena literalmente constrangedora: a própria pessoa de quem se esperaria a pregação da abstinência e renúncia acaba sendo o agente da fidelidade ao desejo de alguém. Hoje, com casos de pedofilia aparecendo por toda a Igreja Católica, pode-se facilmente imaginar uma nova versão da cena do The Sound of Music: um jovem padre aborda o abade, queixando-se de ainda ser torturado com desejos por jovens garotos, e lhe demanda ainda mais punições e penitências; o abade então lhe responde cantando: “Trepe com todo jovem garoto…”

Quando representantes da Igreja insistem que esses casos, por mais deploráveis que sejam, são um problema interno da Igreja — e consequentemente exibem grande relutância a colaborar com a polícia em sua investigação — eles estão, em certo sentido, corretos. A pedofilia dos padres católicos não é algo que diz respeito apenas a pessoas as quais, por razões acidentais da sua história privada (com nenhuma relação com a Igreja enquanto instituição), acabam por serem pedófilos. Este abuso é um fenômeno que diz respeito à Igreja Católica enquanto tal, pois isto está inscrito em seu próprio funcionamento enquanto uma instituição social. Neste sentido, ela não só concerne ao inconsciente privado dos indivíduos, mas ao “inconsciente” (a parte que não deveria ser falada sobre publicamente) da instituição da Igreja Católica em si. Este abuso não é só algo que acontece porque a instituição tem que adequar-se às realidades patológicas da vida libidinal para poder sobreviver, mas sim algo que a instituição em si necessita para poder reproduzir-se. Alguém poderia muito bem imaginar um padre não pedófilo o qual, após anos de serviço, se envolve em pedofilia porque a própria lógica da instituição seduz ele a isso. Tal inconsciente institucional designa o avesso rejeitado e obsceno que sustenta a instituição pública. Em outras palavras, a Igreja não está simplesmente, por razões conformistas, tentando abafar seus escândalos de pedofilia; antes, ao defender a si mesma, a Igreja está defendendo seu mais profundo segredo obsceno.

Freud considerou a igreja e o exército os dois casos exemplares de um aglomerado organizado. Não nos admira, então, que encontremos o mesmo fenômeno no exército abundantemente: o lado avesso dos obscenos rituais sexualizados, como o fragging, sustenta a solidariedade do grupo militar. Este subsolo obsceno permite que nós abordemos de uma nova maneira o (hoje quase esquecido) fenômeno Abu Ghraib: imagens de soldados estadunidenses torturando prisioneiros iraquianos. Alguém ainda se lembra do desafortunado Muhammad Saeed al-Sahaf, Ministro da Informação de Saddam o qual, em suas conferências diárias, heroicamente negava até mesmo os mais evidentes fatos e “mantinha a linha” iraquiana? Uma vez, no entanto, ele esbarrou numa verdade estranha. Quando confrontado com as alegações de que o exército dos Estados Unidos já controlava partes de Bagdá, ele rebateu: “Eles não estão no controle de nada — eles não controlam nem a si mesmos!” Quando surgiu a escandalosa notícia sobre as coisas estranhas acontecendo na prisão de Abu Ghraib em Bagdá, tivemos um vislumbre desta própria dimensão de que os americanos não controlam a si mesmos.

Quando eu vi a bem conhecida foto de um prisioneiro nu com um capuz preto cobrindo seu rosto, cabos elétricos ligados a seus membros, sob uma cadeira numa ridícula pose teatral, estas imagens imediatamente trouxeram à tona na minha mente o obsceno lado avesso da cultura popular estadunidense — digamos, os rituais de iniciação de tortura e humilhação que alguém precisa passar para ser aceito em uma comunidade fechada. Não vemos nós fotos similares em intervalos regulares na imprensa estadunidense, quando algum escândalo numa unidade do exército ou num campus de colegial se espalha na mídia, quando um ritual de iniciação passa dos limites e soldados ou estudantes são machucados para além de um nível considerado tolerável, ou são forçados a assumir poses humilhantes, a fazer gestos degradantes (como penetrar seu próprio orifício anal com uma garrafa de cerveja na frente de seus pares), a sofrerem sendo perfurados por agulhas, etc.?

The Hooded Man, famosa foto do prisioneiro iraquiano Abdou Hussain Saad Faleh, apelidado de Gilligan pelos soldados torturadores estadunidenses. Foram conectados fios elétricos aos seus membros, e ordenaram a Abdou que ele ficasse de pé sob uma caixa — se ele caísse, eletrocutariam-no. O prisioneiro permaneceu empé por uma hora até cair de exaustão — a ameaça não foi cumprida, e o destino de Faleh foi sobreviver às torturas as quais foi submetido na prisão de Abu Ghraib.

O que isso significa é que a autoidentificação com este lado secreto é um constituinte essencial da própria identidade de um soldado — e de um padre católico. Se um padre seriamente — não só retoricamente — denuncia publicamente estes escândalos, de tal feito este exclui-se da comunidade eclesiástica; ele deixa de ser “um de nós”. (Exatamente da mesma maneira, se um cidadão de uma cidade no Sul dos EUA nos anos 1920 denunciasse a Ku Klux Klan para a polícia, ele excluiria a si mesmo de sua comunidade, isto é, trairia sua solidariedade fundamental). Consequentemente, a resposta para a relutância da Igreja não pode ser apenas a de que nós estamos lidando com casos criminais e que, se a Igreja não participa totalmente em sua investigação, é um cúmplice pós-fato. A Igreja, como instituição, deveria ela mesma ser investigada pela maneira com a qual sistematicamente cria condições para tais crimes. Admissões sentimentais de culpa ou arrependimento teatral não são o suficiente: só a total e ativa colaboração da polícia é o que conta nesta situação.

Este subterrâneo obsceno, o terreno inconsciente dos hábitos sujos, é o que é realmente difícil de mudar. No entanto, há outro nível subterrâneo, um tipo de inconsciente externado ou materializado: a grade material de todas nossas vidas, esta nova figura a qual Lacan batizou de “o grande Outro”.

O destino dos bens comuns digitais: uma visão trotskista

No estouro das reações comemorativas ao centenário da Revolução de Outubro em 2017, sua lição central para os dias atuais passou despercebida (ou foi mencionada como prova de que a Revolução, no final das contas, fora um golpe exercido por um grupo restrito, e não um verdadeiro levante popular). Esta lição se refere à única colaboração entre Lenin e Trotsky.

O cerne da “utopia” de Lenin nasceu das cinzas da catástrofe de 1914, no acerto de contas dele com a ortodoxia da Segunda Internacional: o imperativo radical de esmagar o Estado burguês, que significa o próprio Estado enquanto tal, e de inventar uma nova forma social comunal sem um exército constante , polícia ou burocracia, uma forma através da qual todos pudessem participar da administração das questões sociais. Isto não era para Lenin um “projeto teórico para algum futuro distante”. Em Outubro de 1917, Lenin afirmou que “nós podemos, de uma vez só, pôr em movimento um aparato estatal constituído de dez, se não vinte milhões de pessoas”. Este impulso do momento é a verdadeira utopia. Aquilo ao que é necessário apegar-se é à loucura (no sentido estritamente Kierkegaardiano) desta utopia leninista — e o stalinismo é, se não outra coisa, um retorno para o “senso comum” realista.

Não dá para sobrestimar o potencial explosivo de O Estado e a Revolução. Neste livro, “o vocabulário e a gramática da tradição política ocidental foram abruptamente dispensados.” O que se seguiu a isto pode ser chamado, tomando emprestado o título do texto de Althusser sobre Maquiavel, de la solitude de Lenine: o tempo quando ele basicamente ficou sozinho, lutando contra a corrente em seu próprio partido. Quando, em suas “Teses de Abril” de 1917, Lenin discerniu o Augenblick [o Momento], a chance única e especial para a revolução, suas propostas foram primeiro recebidas com estupor ou desprezo pela grande maioria de seus colegas de partido. Dentro do partido bolchevique, nenhum líder proeminente sustentou seu chamado para revolução, e a Pravda tomou um passo extraordinário, rompendo laços com o partido e dissociando seu conselho editorial como um todo das “Teses de Abril” de Lenin. Longe de ser um oportunista bajulando e explorando a disposição predominante do populacho, as visões de Lenin foram altamente idiossincráticas. Bogdnavo caracterizou as “Teses de Abril” como “o delírio de um homem louco”, e a própria Nadezhda Krupskaya concluiu: “Temo que, aparentemente, Lenin tenha enlouquecido”.

Em fevereiro de 1917, Lenin estava encalhado em Zurique, sem nenhum contato confiável com a Rússia, tomando conhecimento da maioria dos eventos pela imprensa suíça; em outubro, ele liderou a primeira revolução socialista vitoriosa. Então, o que aconteceu entre estes dois pontos? Em fevereiro, Lenin imediatamente percebeu a chance revolucionária, o resultado de circunstâncias contingentes únicas: se o momento não fosse aproveitado, a chance para a revolução seria confiscada, talvez por décadas. Mesmo poucos dias antes da Revolução de Outubro, Lenin escreveu: “O triunfo tanto da revolução russa como da mundial depende de uma luta de dois ou três dias.” Em sua teimosa insistência de que alguém deveria tomar o risco e passar ao ato, Lenin estava sozinho, ridicularizado pela maioria dos membros do Comitê Central do seu próprio partido: entretanto, por mais indispensável que fosse a maneira de intervenção pessoal de Lenin, não devemos transformar a história da Revolução de Outubro naquela de um gênio solitário confrontado com as massas desorientadas e gradualmente impondo sua visão. Lenin sucedeu porque seu apelo, enquanto desviava da nomenclatura do partido, encontrava um eco naquilo que alguém poderia estar tentado a chamar de micropolítica revolucionária: a explosão incrível de democracia de base, de comitês locais pipocando envolta de todas as cidades grandes da Rússia e, enquanto ignorando a autoridade do governo “legítimo”, fazendo a revolução com suas próprias mãos. Esta é a história não-dita da Revolução de Outubro, o avesso do mito de um pequeno grupo de dedicados revolucionários impiedosos que efetuaram um coup d’ etat

Ainda assim, a noção de que um pequeno grupo de dedicados e impiedosos revolucionários empreendeu um coup’ d’état não é simplesmente um mito; há um grão crucial de verdade nisso. Quando a insatisfação popular cresceu e a ideia de Lenin que ali havia uma chance para a revolução foi aceita, a maioria dos líderes do partido bolchevique estavam tentando organizar um grande levante popular de massa; Trotsky, entretanto, advogou uma visão que, para os marxistas tradicionais, não poderia parecer senão com o “blanquismo”: uma restrita elite bem-treinada deveria tomar o poder. Depois de uma pequena oscilação, Lenin defendeu Trotsky, especificando por que Trotsky não estava advogando a favor de um blanquismo:

Em sua carta de outubro de 1917, Lenin defendeu as táticas de Trotsky: “Trotsky não está brincando com as ideias de Blanqui”, ele disse. “Um movimento se torna uma conspiração militar somente se não for organizado por um partido político de uma classe definida de pessoas, e se os organizadores desconsiderarem a situação política geral e a situação internacional em particular. Há uma grande diferença entre uma conspiração militar, que é deplorável sob qualquer ponto de vista, e a arte da insurreição armada”.

Neste sentido preciso, “Lenin fora um “estrategista’, idealista, inspirador, o deus ex machina da revolução, mas o homem que inventou a técnica do coup d’etat bolchevique foi Trotsky”. Contra os últimos defensores “trotskistas” de um Trotsky (quase) “democrático”, o qual advoga por uma massiva mobilização de democracia de base, deveriamos enfatizar que Trotsky estava muito atento à inércia das massas — o que mais se pode esperar delas é a insatisfação caótica”. Um grupo restrito de revolucionários bem treinados deve usar esse caos para atacar o poder e, assim, abrir o espaço no qual as massas possam realmente organizarem a si mesmas… Aqui, no entanto, questões cruciais surgem: o que esta elite restrita faz? Em que sentido ela “toma o poder”? A verdadeira novidade de Trotsky se torna visível aqui: a força ofensiva não “toma o poder” no sentido tradicional de um coup d’etat no palácio, ocupando escritórios do governo e construções do exército; não há um foco em confrontar a polícia ou o exército nos quartéis. Citemos algumas passagens da singular obra A técnica do Coup d’ Etat (1931) de Curzio Malaparte, para sentirmos um gostinho disso:

A polícia de Kerenski e as autoridades militares estavam particularmente preocupadas com a defesa das organizações políticas oficiais do estado: os escritórios governamentais, o Palácio Maria (no qual o conselho republicano estava situado), o Palácio Tauride, o assento da Duma, o Palácio de Inverno, e os quartéis generais. Quando Trotsky descobriu este erro, ele decidiu atacar só os ramos técnicos do governo nacional e municipal. Insurreição, para ele, era somente uma questão de técnica. “Para sobrepor o Estado moderno,” ele disse, “é necessário um partido tempestuoso, especialistas técnicos e gangues de homens armados lideradas por engenheiros.”

Trotsky, portanto, tinha como alvo a rede material (técnica) do poder (ferrovias, eletricidade, suprimento de água, correio, etc.), a rede sem a qual o poder do Estado paira no vazio e se torna inoperante. Que as massas mobilizadas lutem contra a polícia e invadam o Palácio de Inverno (um ato sem nenhuma relevância real); o passo essencial será dado por uma minoria pequena e bem treinada… Ao invés de nos entregarmos a uma rejeição moralista-democrática de tal procedimento, deve-se antes analisar isso friamente, e pensar sobre como aplicar isso nos dias hoje, já que, nos nossos tempos, este insight de Trotsky ganhou uma nova atualidade com a progressiva digitalização das nossas vidas naquilo que pode ser caracterizada como a nova era do poder pós-humano.

A maioria das nossas atividades (e passividades) é agora registrada em alguma nuvem digital, a qual permanentemente nos avalia, traçando não só nossos atos como também nossos estados emocionais. Quando temos a experiência de sermos livres ao máximo (surfando na rede onde tudo é acessível), é justamente nela em que estamos totalmente “externados” e sutilmente manipulados. A rede digital nos dá um novo sentido para um velho slogan: “o pessoal é político”. E não é só o controle das nossas vidas íntimas que está em jogo: hoje, tudo é regulado por alguma rede digital, do transporte à saúde, da eletricidade à água. É por isso que a rede é nosso mais importante bem comunal hoje, e a luta por seu controle é a luta hoje. O inimigo é a combinação de bens comuns privatizados e estatizados, corporações (Google, Facebook) e agências de segurança do Estado (NSA). Mas nós sabemos de tudo isso, então onde Trotsky entra aqui?

A rede digital que sustenta o funcionamento das nossas sociedades, assim como seus mecanismos de controle, é o personagem principal da rede técnica que sustenta o poder. Isso não levaria a uma nova atualidade da ideia de Trotsky de que a chave do Estado não está nas suas organizações secretariais ou políticas, mas em seus serviços técnicos? Consequentemente, da mesma maneira em que, para Trotsky, a tomada do controle dos correios, da eletricidade, das ferrovias, etc., foi o momento chave para a revolucionária tomada do poder, não seria verdade que hoje, a “ocupação” da rede digital é absolutamente crucial para quebrar o poder do Estado e do capital? E, da mesma forma que Trotsky exigiu a mobilização de um restrito “partido tempestuoso, especialistas técnicos e gangues de homens armados lideradas por engenheiros” para resolver essa “questão de técnica”, a lição das últimas décadas é que nem protestos de base (como vistos na Espanha e Grécia) nem os movimentos políticos bem organizados (partidos com visões políticas elaboradas) são suficientes. Nós precisamos também de uma restrita força ofensiva de “engenheiros” dedicados (hackers, delatores…) organizados como um grupo conspiratório disciplinado. Sua tarefa será a de “tomar” a rede digital, arrancá-la das mãos das corporações e agências de Estado que agora as controlam de fato.

O Wikileaks foi apenas o começo, e o nosso lema deveria ser maoísta: Que floresçam cem Wikileaks. O pânico e a fúria com as quais os que estão no poder, estes que controlam nossos bens comuns digitais, reagiram contra Assange, é a prova de que tal atividade acerta no ponto fraco deles. Haverão muitos golpes baixos nesta luta: nosso lado será acusado de jogar no lado inimigo (como na campanha contra Assange que o acusava de estar a serviço de Putin). Mas nós devemos nos acostumar a isso e saber contra-atacar devolvendo o dobro, impiedosamente jogando um lado contra o outro de modo a derrubar ambos. Não foram Lenin e Trotsky também acusados de serem financiados pelos alemães e/ou pelos banqueiros judeus? Quanto ao medo de que tal atividade poderia perturbar o funcionamento de nossas sociedades e, portanto, ameaçar milhões de vidas, nós devemos ter em mente que são os que estão no poder quem estão prontos para seletivamente desligar a grade digital para isolar e conter protestos. Quando as massivas insatisfações estouram, o primeiro passo deles é sempre desconectar a internet e os celulares.

Nós precisamos, portanto, de um equivalente político da tríade hegeliana do Universal, do Particular, e do Singular. Universal: uma reviravolta em massa no estilo do Podemos. Particular: uma organização política que traduza a insatisfação em um novo programa político operativo. Singular: grupos especializados “elitistas, que agindo de modo puro e técnico minam o funcionamento do controle e regulação estatal”. Sem este terceiro elemento, os dois primeiros permanecem impotentes.

Slavoj Žižek.

Traduzido por Felipe Aiello [CTP]


Original:
https://thephilosophicalsalon.com/acheronta-movebo/

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