Na última década do domínio colonial francês no Congo, os jovens de Kinshasa estavam fundando clubes dedicados à moda. Um dos mais lembrados desse período chamava-se Les existos, abreviação de les existentialistes, uma homenagem dos estudantes que retornavam de suas estadias em Paris à escola filosófica de Sartre. Esses clubes eram uma mistura de associações de ajuda mútua, discotecas e conjuntos de moda, e uniam empregados e desempregados, pessoas com e sem instrução. Seus membros formaram um culto à elegância, buscando a distinção e o prazer de usar ternos de grife e acessórios sofisticados. Os clubes de moda da década de 1950 deram o tom para uma subcultura que se tornaria conhecida como “La Sape”. Do verbo francês “saper”, vestir-se ou vestir-se elegantemente, a palavra tornou-se a sigla uma certa Sociedade de Criadores de Ambientes e Pessoas Elegantes (Société des ambienceurs et personnes élégantes), que continuou uma tradição de roupas elegantes em Kinshasa e em Brazzaville contemporâneas, bem como na diáspora congolesa na Europa.


Muitos outros grupos de homens de classe baixa encontraram na auto-estilização e no culto à elegância uma forma de situar suas identidades. Além de La Sape—talvez o exemplo mais conhecido do dandismo moderno—até meados do século XX, no Brasil, bandidos associados ao Cangaço saqueavam as propriedades de ricos proprietários de terras e passavam os dias seguintes usando seus lenços de seda e tafetá franceses, bebendo uísque inglês e bordando suas roupas e chapéus com motivos coloridos. Para acrescentar outro exemplo, imigrantes mexicanos em Los Angeles, na década de 1920, que não reivindicavam uma cultura mexicana original, mas tampouco queriam se integrar ao mainstream da cultura branca dos EUA — um grupo conhecido como pachucos — organizaram sua habitação desse espaço intermediário de maneira visível, adotando o colorido e característico zoot suit como seu símbolo.


Acredito que todos esses exemplos de apropriação popular de valores como elegância e sofisticação, e a defesa do prazer estético por pessoas que normalmente não o têm, tocam em questões de importância política e filosófica. Essas manifestações do desejo de pertencer a uma determinada classe social para a qual a autoexpressão livre e elegante é possível tocam em questões de representação e participação política, visibilidade social, busca de distinção e reivindicação do prazer estético e da autoexpressão. É sobre esse desejo de se vestir bem, de ser elegante, refinado, de perder tempo e dinheiro com as coisas boas da vida que quero falar. Estou chamando isso de dandismo.
O dândi é um tropo histórico e literário consolidado no século XIX. Em sua definição tradicional, ele se refere ao homem burguês rico que almejava as maneiras da aristocracia. O dândi é um homem vaidoso e extravagante que deseja participar das atividades da corte, estar entre a nobreza, que possuía mais do que dinheiro: possuía sofisticação, boas maneiras e elegância. O desejo do dândi, entretanto, é fundamentalmente problemático. Afinal de contas, pertencer à aristocracia é uma questão de nascimento: ou se nasce aristocrata ou não. Não é possível se tornar um aristocrata. Esse desejo de mudar o que nos foi atribuído pelo destino ou pela sociedade é muito carregado de normatividade, creio eu, e filosoficamente interessante. Quando ele aparece entre as classes mais baixas e os despossuídos do mundo, eu gostaria de me referir a ele como uma forma de dandismo “de massas”. Ao analisar o dandismo como um conceito politicamente relevante, gostaria de sugerir que se trata de um modo específico de classe de levantar reivindicações políticas específicas de classe. Em particular, uma reivindicação de prazer estético, normalmente associado às classes mais altas.


Gostaria, com isso, de rejeitar duas possíveis interpretações da prática. A primeira é que ela é apolítica por natureza, servindo como um mero artifício de moda. A segunda é que se trata de uma prática ideologicamente motivada ou uma mera capitulação às demandas do mercado de consumo excessivo. Em vez disso, gosto de pensar que o dandismo pode ser visto como uma forma de contestação política, um apelo a uma constelação de reivindicações de coisas como prazer estético, lazer e tempo improdutivo. Também acredito que o dandismo não é simplesmente uma reação à má distribuição de recursos, mas talvez à má distribuição de status. O dandismo se apropria da cultura dominante e toma posse dela dentro de um espectro que vai do totalmente irônico ao totalmente sincero. Em uma sociedade individualizada, na qual os locais tradicionais de organização e contestação política (a fábrica, a rua) não são imediatamente acessíveis, ou talvez estejam bloqueados, o dandismo aponta para a possibilidade de um desses locais na esfera da auto-apresentação. Antes de desdobrar esse argumento, deixe-me falar um pouco mais sobre a história desse tropo. Gostaria de destacar e elaborar duas características principais do dândi. Primeiro, o culto ao eu e o desejo de produzir a si mesmo, muitas vezes por meio de formas sensíveis de auto-apresentação e moda. Em segundo lugar, sua afeição pela aristocracia e o desejo de viver entre a aristocracia. Ao fazer isso, quero destacar algo no dandismo que testemunha uma sociedade dividida em classes e nos ajuda a conceituar o dandismo como um fenômeno específico de classe (isto é, um fenômeno que deve necessariamente aparecer em uma classe que não seja “a mais alta”).
O dandismo se estabeleceu como um tropo social e literário em meados do século XIX. É difícil determinar seu local de nascimento, pois ele descende de muitos pais diferentes, mas pode-se dizer que ele se consolidou em trânsito entre Paris e Londres. Sua existência é tanto histórica quanto literária, uma tendo influenciado a outra. O nascimento do tropo literário pode ser associado a um ensaio intitulado “Du dandysme et de George Brummel”, escrito em 1845 pelo francês Jules Barbey d’Aurevilly. George Brummel, também chamado de “Beau” Brummel, foi uma figura importante na Inglaterra da Regência, e Barbey o vê como um arquétipo de uma certa afetação que ele chama de dandismo. Barbey descreve Beau Brummel como um seguidor e criador de regras em questões de gosto, “um explorador de modos de ser por meio de seus aspectos materialmente mais visíveis”. Além disso, Brummel nasceu em uma família próxima ao poder e era amigo pessoal do futuro rei George. Essa proximidade de Beau com o rei da Inglaterra não pode ser ignorada. A literatura da época chama a atenção para o fato de que o dandismo está imbuído de um senso de respeito, talvez até de reverência, ou de saudade dos costumes da realeza e da aristocracia.


O desejo de ser alguém diferente de si mesmo, um aristocrata, muitas vezes está entrelaçado com o desejo de ser estrangeiro. Na Inglaterra do final do século XVIII, era comum a aristocracia enviar seus filhos para o “Grand Tour” pela Europa quando atingissem a maioridade. Jovens de vinte e poucos anos viajavam pela Europa, especialmente para a Itália, para explorar o patrimônio cultural do Renascimento, ver obras de arte, arquitetura e música. Alguns desses jovens retornavam à Inglaterra com uma afeição especial pelos costumes italianos e um gosto particular por seus hábitos culinários. Eles ficaram conhecidos na Inglaterra como “Macaronis”, uma espécie de proto-dândis que receberam esse nome devido ao seu recém-descoberto amor pela massa italiana. Já no século XIX, os aristocratas franceses que viviam no exílio na Inglaterra e que haviam aprendido os costumes da alta sociedade londrina acharam seguro retornar a Paris. O dandismo, em suma, desenvolveu-se como esse olhar para o estrangeiro. Não apenas os burgueses que queriam ser aristocratas, mas também os franceses que queriam ser ingleses. Os ingleses que queriam ser italianos. E assim por diante.

Em O Pintor da Vida Moderna, Baudelaire viu a modernidade não apenas como uma forma do homem se relacionar com o presente, mas também consigo mesmo. Ser moderno não é meramente aceitar a si mesmo no fluxo dos momentos que passam, mas conceber-se como objeto de uma elaboração complexa e difícil. Baudelaire chama esse impulso em direção à autocriação precisamente de “dandismo”. É interessante notar que esse ponto é abordado por Foucault em seu ensaio O que são as luzes?, no qual distingue entre a visão negativa de Kant sobre a modernidade como uma forma de sair da infância da humanidade e a visão positiva de Baudelaire sobre a modernidade como anunciadora de uma propensão à autocriação. De acordo com Foucault, a autocriação como atitude é uma característica da vida moderna. Em vez de liberar o homem em seu próprio ser, a modernidade “o obriga a enfrentar a tarefa de produzir a si mesmo”. O dândi desafia qualquer aceitação fatídica de seu próprio destino. Ele anseia pelo estrangeiro, pelo diferente, deseja escapar da estreiteza de sua própria identidade e se tornar algo maior, algo além do eu. Essa negociação da identidade de alguém pode ser entendida não apenas como uma expressão de ideias sobre o eu, eu diria, mas também de ideias políticas sobre classe. Na medida em que o dandismo olha “para cima”, eu gostaria de sugerir que ele é um modo específico de classe de expressar ideias políticas. O dandismo aponta para a própria estrutura de uma sociedade de classes, e seus componentes constitutivos poderiam ser extrapolados para explicar as práticas expressivas contemporâneas das classes mais baixas. Vestir-se elegantemente como um membro das classes mais altas significa uma coisa. Vestir-se elegantemente como um membro das massas, ou das classes mais baixas, significa outra coisa. Na medida em que a última aponta para essa cesura de classe, ela adquire um significado político especial.
Com essa leitura, eu gostaria de me distanciar de duas outras possíveis interpretações. Em primeiro lugar, a visão de que as práticas expressivas das classes mais baixas, como o que estou chamando de dandismo, são apolíticas por natureza — uma mera moda de vestuário e estilo, ou talvez uma manifestação peculiar de vaidade individual e amor-próprio exacerbado. Semelhante a essa visão é a alegação de que essas práticas expressivas só são politicamente significativas na medida em que as reivindicações que elas transmitem podem ser reduzidas a aspectos materiais da vida das classes mais baixas.
Acredito que a “elegância”, para o dândi, torna-se um termo-símbolo de elementos associados de forma mais geral ao prazer estético: tempo improdutivo, excesso, prazer, hedonismo e ociosidade. Considero o dandismo de massas como uma reivindicação prática do direito de não ser produtivo, de viver uma vida de excessos e de se divertir por meio de excessos. Isso pode mostrar por que o dandismo de massas não é apenas uma reação à má distribuição de recursos. O desejo de ser como aqueles que aparentemente podem aproveitar o mundo ao máximo (as classes altas) tem sua origem em uma diferença de status, não de posses materiais. Acredito que foi isso que o falecido carnavalesco brasileiro Joãosinho Trinta quis dizer quando sintetizou o significado do carnaval no Brasil: “Quem gosta de miséria é intelectual; o povo gosta de luxo”. Não se quer ascender socialmente para ter mais dinheiro para gastar, mas para pertencer à classe que tem mais dinheiro para gastar, por assim dizer.


É verdade que a reivindicação de elegância acaba assumindo uma forma distorcida: Como os laços que unem os membros de uma classe — especialmente a classe trabalhadora — como classe estão ausentes em uma sociedade cada vez mais individualizada, uma reivindicação política de libertação de condições de trabalho opressivas, por exemplo, é impedida de ser articulada no local de trabalho. Daí a necessidade, eu diria, de procurar possíveis incorporações de potenciais libertários em outros lugares, já que reivindicações, desejos ou sentimentos não articulados poderiam, como eu estava sugerindo, estar enterrados sob formas mais mundanas de autoexpressão na vida cotidiana e em práticas mais diretamente ligadas ao mundo do consumo.
Acredito que o dandismo aponta para um local de contestação política que muitas vezes não é percebido como tal. A esfera política na qual as reivindicações políticas podem ser feitas é rígida em termos dos tipos de reivindicações que aceita. Esse limite pode ser desafiado por dentro (fazendo reivindicações normativas em uma esfera pública normativamente carregada), mas também por fora, em formas expressivas e não discursivas. Quando vem de fora, parece vir de uma posição de a-politicidade. Aparece como a-política porque não assume a forma do que normalmente é entendido como uma reivindicação política. É mais simbólico do que semântico, mais expressivo do que discursivo. O dandismo de massas sugere que essa “a-politicidade” é apenas aparente. Mais do que uma mera capitulação aos ditames do mercado — uma submissão cega aos costumes das classes mais altas em nome do consumo — , esse recurso a formas de autoexpressão sensível pode equivaler a uma forma de protesto “oculto”. Essas expressões podem ser interpretadas como reivindicações normativas e, portanto, “desencriptadas”.
A segunda interpretação da qual quero me distanciar é aquela que vê o dandismo como um movimento abertamente reacionário ou uma prática ideologicamente motivada. Essa visão baseia-se na natureza da admiração, ou talvez do anseio, do dândi pela aristocracia. Na França pós-revolucionária, por exemplo, admirar a aristocracia era, quase por definição, a postura mais antirrevolucionária que se poderia ter. Da mesma forma, no dandismo moderno das classes mais baixas, essa visão argumentaria que almejar as maneiras das classes mais altas é uma questão de falsa consciência: o desejo de parecer, se comportar e se vestir como as classes mais altas poderia ser explicado por uma inculcação ideológica de valores extrínsecos a essa classe e contrários aos seus interesses.


Acho que esse é um argumento justo. Não é coincidência, por exemplo, que o dandismo tenha como alvo as maneiras das classes mais altas, já que elas exercem todas as formas de dominação sobre as classes mais baixas. Os objetos de consumo da elite simbolizam “distinção”, para usar os termos de Bourdieu: eles começam como formas de parecerem únicos e acabam “descendo” a os estratos sociais para se tornarem objetos de desejo de todas as classes inferiores. Embora eu ache que isso seja verdade, há algo no dandismo que funciona para se apropriar dessas imposições culturais e se apropriar delas. Isso pode ser feito de forma irônica, em que a apropriação também funciona como zombaria — talvez a cultura dos ballrooms de Nova York na década de 1980 seja um bom exemplo disso, em que a “realeza” e o glamour são usados como armas apenas de forma “meio séria”. Mas também acredito que isso pode ser cem por cento sério e não irônico, especialmente quando essa cultura dominante “estrangeira” acaba constituindo a identidade fundamental de alguém. O exemplo canônico aqui é o que Bolívar Echeverría chama de “barroco”: a imitação teatral e exagerada dos modos europeus pelas populações indígenas das Américas depois que grande parte dessa população foi dizimada pelos colonizadores. Nesse caso, acho que faz pouco sentido falar em termos de uma consciência autêntica ou sincera, com interesses autênticos e sinceros, contra uma forma falsa de consciência que atropela seus interesses autênticos. Acho que não se trata de algo autêntico ou inautêntico, mas de um tipo de inautenticidade autêntica, uma adoção de uma visão sincera das coisas “entre aspas” — para parafrasear Susan Sontag em seu ensaio sobre o camp.
Em suma, acredito que o dandismo nos obriga a pensar: e se esse desejo de elegância não for de forma alguma falso, mas — simplesmente — verdadeiro?

Italo Alves

Estuda e leciona filosofia. É editor da Revista Porto Alegre.

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