Trata-se de uma conversa ocorrida em 1970 entre Marcuse e o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger. Sendo essa a última publicação de Marcuse em alemão, lançada no mesmo ano. [N. T.]

Enzensberger: Na Europa temos a impressão de que a situação política nos Estados Unidos vem se intensificando consideravelmente e de que nos últimos anos chegou a um limite. Ouvimos falar de prisões preventivas, de motins policiais… a American Left tem publicado listas de campos de concentração que estão prontos para serem usados. Há rumores de que o governo americano tem desenvolvido pesquisas de como o país reagiria se as eleições presidenciais de 1972 fossem canceladas, de como reagiria se as eleições fossem simplesmente proibidas. Podemos concluir que a ordem em sua totalidade tem se tornado cada vez mais idêntica ao seu oposto – isto é, desordem com extorsão [racketeering], ordem com lei arbitrária: uma solda sem juntas de política e crime, máfia e governo? Como esses desenvolvimentos podem ser explicados?

Marcuse: Seus exemplos são bem escolhidos. Quanto aos campos de concentração, eu não posso falar com nenhum grau de certeza. Eu não os vi. Além disso, não sei até que ponto o governo americano está flertando com a ideia de abolir as eleições. Acredito que seja improvável, pois esse governo não tem nada a temer com as eleições. A questão fundamental é se o fascismo está tomando conta dos Estados Unidos. Se por isso entendermos a gradual ou rápida abolição dos restos do estado constitucional, a organização de forças paramilitares como o Minutement, a concessão de poderes extrajurídicos à polícia – como a lei de busca domiciliar sem mandado, algo que elimina a inviolabilidade do lar –, se olharmos as decisões dos tribunais nos últimos anos, se estivermos a par de que tropas especiais – os chamados counterinsurgency corps – vêm sendo treinadas nos Estados Unidos para uma possível guerra civil; se observarmos a censura quase explícita da imprensa, da televisão e do rádio: aí, sim, até onde podemos saber, é possível falar de um fascismo incipiente.

As pessoas criticam essa visão dizendo que há muito mais espaço para a crítica radical nos Estados Unidos que, digamos, na França. O que é verdade. Mas isso provavelmente está mais relacionado ao fato de, neste momento, a sociedade americana poder lidar com a crítica justamente por ela não ter efeito.

Enzensberger: Mas outros aspectos do fascismo, como se sabe, estão ausentes. Por exemplo, um líder carismático. Ou você acredita que gente como Nixon, Agnew ou Reagan tem esse potencial? O apelo direto às massas ainda não assumiu a forma que geralmente atribuímos ao fascismo.

Marcuse: Não acredito que um líder carismático seja uma necessidade do fascismo atual. Assim como com qualquer outro movimento, com qualquer forma de opressão, o fascismo também se relaciona com as tendências gerais da sociedade. O fascismo americano se apresentará diferentemente do fascismo alemão na medida em que a sociedade americana é diferente da sociedade alemã de 1933. Um líder carismático não é mais necessário. Lembremos de uma excelente formulação de William Shirer (que, sabe Deus porque, não é um socialista): o fascismo americano será provavelmente o primeiro a chegar ao poder através de meios e apoio democráticos.

Enzensberger: Que análise você faz dessa questão nos Estados Unidos? Mesmo a teoria mais grosseira sobre o fascismo explica a vitória de Hitler na Alemanha a partir da crise de 1929. Você vê algum paralelo com a intensificação das contradições econômicas e sociais nos Estados Unidos?

Marcuse: Acredito que existe algo como um fascismo preventivo. Nos últimos dez a vinte anos experienciamos uma contrarrevolução preventiva para nos defender de uma revolução temida, que, entretanto, não aconteceu e não está na agenda neste momento. É da mesma forma que surge o fascismo preventivo. A deterioração gradual do estado constitucional dos Estados Unidos é um resultado das contradições do imperialismo americano. Essas contradições, em verdade, são administráveis no momento, mas elas ameaçam adentrar na consciência mesmo dos mais doutrinados – isto é, a contradição entre a imensa riqueza social e o uso destrutivo que se faz disso; a contradição entre a possibilidade de reduzir o trabalho alienado e sua manutenção sistemática; a contradição entre a possibilidade de abolir a pobreza e a miséria num curto espaço de tempo e o imenso desperdício. A longo prazo, essas contradições só poderão ser suprimidas pela força.

Valores como a disciplina do trabalho, que o capitalismo precisa manter, estão perdendo seu poder sobre as pessoas e começando a se desintegrar. Ao mesmo tempo, o non-sense da guerra no sudeste asiático e das ditaduras na Grécia e América Latina – cuidadosamente apoiadas pelos Estados Unidos – vem se tornando tão óbvio que desculpas e dissimulações já não fazem diferença. É por esse motivo que o sistema vem se apoderando de medidas que tem por objetivo mostrar a oposição que a partir do momento em que ela se tornar perigosa eles irão trancafiá-la, irão destroçá-la.

Enzensberger: As contradições que você indica podem ser vistas concretamente como contradições de classe, mesmo nos Estados Unidos. Ou você não vê nenhuma possibilidade de relacioná-las aos conflitos de classe americanos?

Marcuse: Trata-se de um deslocamento de contradições. Marx nunca manteve que as contradições do sistema capitalista estavam concentradas exclusivamente na classe dos trabalhadores industriais. Em verdade, as contradições permeiam toda a sociedade – tanto a infraestrutura como a superestrutura. Claro que elas são atualizadas de maneiras muito diferentes nas distintas classes sociais, mas elas são contradições do sistema como um todo.

Enzensberger: Então na sua opinião a contradição mais aguda não é fundamentalmente entre o trabalho assalariado e o capital?

Marcuse: Com certeza, também entre capital e trabalho. Mas se nos reivindicamos marxistas temos de ser cuidadosos em não fetichizar o conceito de classe. As mudanças estruturais do capitalismo são acompanhadas por mudanças nas classes e em suas condições. Não há nada mais inadmissível e mais perigoso para um marxista do que empregar um conceito reificado de classe trabalhadora.

Enzensberger: Você fala sobre uma necessidade de uma análise das classes. Grupos políticos da esquerda na Europa também vêm tentando promover esse trabalho. Em verdade, isso demanda uma confrontação direta com a existência física e moral da classe trabalhadora. Uma análise da classe deve ser apenas um dos aspectos da prática política. Por essa razão muitos camaradas têm ido às fábricas, às instituições sociais. Eles têm chegado à conclusão que a análise teórica isolada de uma luta organizada no interior da produção não leva a nada.

Marcuse: As contradições sociais internas originadas a partir das relações de produção não podem ser vistas ou ouvidas indo às fábricas. É claro, a análise da classe trabalhadora deve ser a mais concreta possível. Mas suspeito que hoje em dia isso frequentemente conduz a um desdém e a um rebaixamento da teoria. As pessoas já não se dispõem a isso. Mas aí voltamos a posição da sociologia burguesa. Desde que as teorias não sejam abandonadas, desde que não viremos presa de um conceito fetichista de proletariado, aí, claro, é necessário ir às fábricas. Mas se esse caminho é adotado supondo que substituirá a experiência teórica e a análise, é simplesmente um passo em direção à falsa imediaticidade…

Enzensberger: O movimento estudantil era essencialmente determinado pelas condições de classe dos que estavam envolvidos, por seus interesses e consciência…

Marcuse: …Desculpa, mas isso é marxismo vulgar. Que um movimento seja determinado por sua consciência…

Enzensberger: …também por uma posição material específica! A classe trabalhadora está claramente subrepresentanda nas universidades da Alemanha Ocidental…

Marcuse: …isso certamente não significa que os estudantes sejam incapazes de transcender tais condições, observando e articulando as relações sociais em sua totalidade. É totalmente irrelevante se alguém vem da classe média. Marx e Engels vieram da classe média…, mas quais seriam, em sua opinião, as deficiências do movimento estudantil?

Enzensberger: As deficiências podem ser vistas no fato do movimento não saber ir além de seu próprio raio de ação e mobilizar a classe trabalhadora.

Marcuse: Isso é culpa dos estudantes ou das condições objetivas da classe trabalhadora? Dou um exemplo: em grande medida foi o movimento estudantil nos Estados Unidos que mobilizou a oposição contra a guerra do Vietnam. Isso vai muito além de interesses pessoais. Na realidade, isso está em contradição com tais interesses e toca na ferida do imperialismo americano. Bem sabemos que não é por causa dos estudantes que a classe trabalhadora americana não aderiu…

… Nada é mais anti-burguês que o movimento estudantil americano, enquanto nada é mais burguês que o trabalhador americano. (Desculpe o exagero!) Os clichês que você utiliza são inúteis. Você realmente acha que as comunas, as manifestações políticas, as ocupações são burguesas?

Enzensberger: Não necessariamente. Por outro lado, a chamada cena dos protestos, a cena Hippie, a cena dropout – todas essas cenas – parecem ser largamente um fenômeno burguês.

Marcuse: Acredito que a função política dos hippies e dos dropouts tenha terminado.

Enzensberger: Esses fenômenos foram absorvidos pela cultura dominante.

Marcuse: Na verdade eles se tornaram até reacionários. Eles confundiam libertação pessoal com libertação social… Os grupos políticos rejeitam essa confusão. Hoje em dia eles já não são apenas hippies, ou não são hippies de todo.

Enzensberger: Sr. Marcuse, para usar um termo popular da futurologia, você visualiza um cenário nos próximos dez anos para os Estados Unidos? Como você avalia as perspectivas para a sociedade americana?

Marcuse: Eu diria que nos próximos anos a repressão será mais intensa, que a oposição terá problemas extremamente difíceis de resolver – acima de tudo, problemas a respeito do papel e os limites da ação política, da contra-violência [counter violence], etc. Diria que as contradições do imperialismo americano se intensificarão, internamente assim como internacionalmente, e por essa razão a repressão aumentará. Diria que o potencial fascista continuará a crescer e que a oposição radical vai precisar de todas suas energias para iluminar e educar pelo exemplo a classe trabalhadora para que ela não seja presa do fascismo.

É possível que um período neofascista do imperialismo seja prevenido. As forças opositoras estão aí. Nós não discutimos a coisa mais importante: economia política. Nas chamadas sociedades de consumo, o modo de produção capitalista força seus próprios limites internos: saturação do investimento e commodity markets. O trabalho “improdutivo” cresce em relação ao trabalho produtivo. Inflação, o que significa queda dos salários, são parte da dinâmica do sistema. Enquanto a expansão imperialista nos países menos desenvolvidos (Canadá, França, Inglaterra) avança, encontra uma crescente resistência na América Latina (Chile, Peru, Bolívia). A China está no caminho para tornar-se uma grande potência comunista. A guerra de liberação dos vietnamitas e dos cambojanos demonstrou as possibilidades de parar a máquina de guerra mais poderosa de todos os tempos. Nas metrópoles do capitalismo mundial, a desintegração da moral do trabalho pode tornar-se uma força material que ameaça o funcionamento suave do sistema. Mas a única oposição real em luta atualmente nos Estados Unidos para parar a contrarrevolução mundial é a da juventude radical e dos militantes do gueto. Todas as divergências em questões de estratégia e tática, todas as divergências ideológicas devem ser suspensas; todas as ações que são autodestrutivas, toda impaciência e derrotismo deve ser superado pelo bem da luta comum – pois hoje já não é uma questão de atacar, mas de autopreservação do movimento enquanto uma força política radical.



Tradução: Ricardo Menezes
Revisão: Jade Amorim
Original: Em “Herbert Marcuse. The New Left and the 1960s, vol .III. Edited by Douglas Kellner”
a obra que ilustra o texto é de autoria de Gerhard Richter: “Uncle Rudi“, de 1965.


Hans Magnus Enzensberger & Herbert Marcuse

Herbert Marcuse foi um filósofo pertencente à Escola de Frankfurt.
Hans Magnus Enzensberger foi poeta, ensaísta, tradutor, escritor e editor alemão. 

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