O mundo administrado ou: a crise do indivíduo1
Nota preliminar: A conversa entre Eugene Kogon, Theodor Adorno e Max Horkheimer aconteceu no dia 4 de setembro de 1950 e se deu por meio da Hessischen Rundfunk, rádio pública do estado alemão de Hesse, localizada em Frankfurt. Kogon foi um sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald e importante historiador, publicou o livro Der SS Staat (1946)2 , elogiado por Adorno, é referência maior como descrição da organização dos campos de concentração. Aparte esta introdução, Kogon, ao longo da conversa, se destaca enquanto homem público interessado na reconstrução da Alemanha no pós guerra. Adorno e Horkheimer, que haviam acabado de voltar do exílio nos Estados Unidos, estavam interessados em dar contornos mais precisos ao conceito de mundo administrado, tendo em vista que o diagnóstico feito na Dialética do Esclarecimento já não seria mais suficiente para dar conta do tempo presente, pelos próprios parâmetros da teoria crítica. A discussão entre estes três intelectuais logra importância não somente por ser a primeira ocorrência do conceito de Verwaltete Welt (mundo administrado), mas sobretudo porque marca oposição desde cedo sobre o que viriam a ser os anos da Alemanha Ocidental sob Adenauer.
Kogon: Prof. Horkheimer, Prof. Adorno, eu gostaria de começar nossa conversa sobre o mundo administrado notando como o homem moderno está perdido buscando pela sua liberdade; e a forma como eu cheguei nessa nossa conversa, e, como sei, vocês também chegaram, me lembra muito dessa condição. Agora, cerca de uma hora atrás, eu deveria já estar em outro lugar. E eu sei que você, Prof. Horkheimer, deveria estar em Bad Nauheim em 15 minutos. E, no entanto, nós queremos conversar extensivamente, calmamente e razoavelmente sobre este assunto de suma importância, o mundo administrado. E aqui estamos nós, agitados, por assim dizer, nervosos, porque existem outros compromissos importantes esperando por nós. É dessa condição que devemos nos tornar livres. Portanto eu, da minha parte, vou pretender ter tanto tempo quanto me for necessário. E acredito que esse fingimento poderá se tornar realidade e acredito que é precisamente esse o objeto da nossa conversa: se é possível ou não adotar tal atitude e fazer dela uma nova realidade.
Adorno: Talvez eu possa me incluir com uma experiência que repetidamente tenho quando leio romances, tanto antigos quanto contemporâneos. Sou atingido por uma estranha inverdade: que os eventos reportados são ficcionais, mas parece quase como uma mentira que as pessoas que aparecem em romances são descritos como se ainda fossem livres, como se tudo dependesse de suas ações individuais, suas motivações, naquilo que os torna indivíduos; enquanto que de fato alguém tem a sensação que a vasta maioria da população já há muito tempo foi reduzida a meras funções no interior da monstruosa maquinaria social na qual estamos todos atrelados. Alguém poderia talvez formular de maneira tão extrema, por assim dizer, que a vida no sentido que a palavra vida ressoa já não existe mais. Algo como o eminente escritor Ferdinand Kürnberger já disse no século XIX: “A vida não vive”. E é este fenômeno que estou tentando caracterizar, que de fato parece para mim que a mais notável expressão de que queremos falar hoje, nomeadamente a transição de todo o mundo, de toda a vida, num sistema de administração – num certo sistema de controle desde cima.
Horkheimer: Penso que sua experiência é correta, Sr. Adorno. As pessoas perderam suas vidas, suas vidas atuais. Elas vivem a vida preordenada pela sociedade. Apesar de terem os meios para viverem mais livremente hoje do que em qualquer outra época, elas estão sob uma pressão inaudita. E não apenas as classes baixas, mas todas as classes da sociedade. Sartre, afinal, fez desta questão seu tema. Claro, ele não disse que as pessoas perderam suas vidas, ele diz que elas se tornaram incapazes de tomar decisões. Mas neste quesito eu gostaria de levantar uma preocupação: as pessoas ainda agora fazem suas histórias, elas apenas não o sabem. Elas ainda tomam decisões, mas decidem participar do sistema. Hoje, as pessoas são capturadas pela administração, mas elas não precisam estar.
Kogon: Quando Sartre descreve este estado do mundo moderno, Prof. Horkheimer, eu concordo fortemente. Minha crítica seria a de que em suas obras, Sartre, por vezes mostra como se nós sempre tivéssemos postulado a liberdade para decidir, a liberdade para decidir que ele demanda, que ele pressupõe. O mundo, como você acabou de descrever, na verdade parece diferente. Eu, também, tenho a impressão de que nós temos uma liberdade inerente para dizer sim ou não para o processo do mundo a nossa volta, em nossa família, mas isto na maioria dos casos nada vai se seguir como resultado desse sim ou não – ou o mundo não se irá se alterar – ou apenas algo resultará no qual nós mal teremos controle, no qual dificilmente teremos domínio. Então somos jogados novamente para o real mais íntimo, e pelo fato de que o mundo está neste estado administrado, como chamamos aqui, gradualmente também nossa mais íntima liberdade, a última reminiscência desta liberdade interior, está quase perdida. Portanto estamos em uma situação de perigo mortal.
Adorno: Me parece que o real infortúnio em relação a esta questão é o de que existe um tipo de harmonia pré-estabelecida entre processos objetivos, isto é, entre o crescimento da administração de um lado e o subjetivo de outro…
Kogon: Como você chama isto de harmonia, Prof. Adorno? Não compreendo.
Adorno: Bem, harmonia talvez não seja a palavra certa…
Kogon: É o que me parece, também.
Adorno: … uma espécie de coincidência fatal…
Kogon: Certo.
Adorno: … uma sintonia desastrosa. Certamente, a pressão que se abateu sobre a humanidade em certos períodos anteriores não foi menor do que a atual. Mas o que aumentou foi a socialização. As pessoas são deixadas com cada vez menos formas para escapar, das formas socialmente obrigatórias, nas quais elas existem. E como resultado, a pressão, a compulsão para se conformar, se tornou ainda maior, enquanto que a área na qual as pessoas levam uma vida independentemente desse mecanismo social se tornou ainda menor. Não há mais, como antes, possibilidades de escapar e portanto as pessoas tendem a repetir em si mesmas todos aqueles processos de administração os quais são feitos a elas desde fora. Cada indivíduo se torna, por assim dizer, um funcionário administrativo de si mesmo…
Kogon: Se eu pudesse acrescentar…
Adorno: …apenas quando vemos essa dupla face é que captamos uma ideia da natureza iminente da avalanche.
Kogon: Acrescentando, eu poderia apenas apontar, Prof. Adorno, que a escravidão existiu nos últimos séculos e milênios e que essa condição se abateu sobre milhões de pessoas que foram deixadas sem liberdade social nenhuma. Nós agora atingimos a liberdade no curso de dois mil anos, e consequentemente parece ainda mais horrível que estejamos caindo novamente numa condição análoga a escravidão no mundo administrado…
Adorno: …em comparação ao que seria possível e aquilo que já foi realizado até certo ponto…
Horkheimer: Você diz, Sr. Kogon, que nós alcançamos a liberdade, e essa é realmente a questão: nós a alcançamos? Nós poderíamos presumir dizendo que o desenvolvimento social e econômico como um todo que teve lugar nos últimos 50 anos foi uma aberração e que nós deveríamos retornar ao tempo em que houve algo como a liberdade, ao menos na esfera econômica. Acredito que, de fato, no tempo em que o estrato social decisivo foi formado por empresários menores algumas características relacionadas à liberdade foram desenvolvidas, ao menos a liberdade individual, para esse relativo pequeno estrato em grande medida em comparação ao que é desenvolvido para a maior parte da sociedade hoje. No entanto, foi precisamente essa era da economia de livre mercado que nos legou nosso presente estado. É precisamente por causa dessa liberdade que os mais poderosos empreendimentos têm agora se agrupado para formar grandes corporações as quais, em grande medida, suportam a responsabilidade econômica por aquilo que chamamos mundo administrado. Nesta medida não é tanto uma questão de administração governamental, quanto é pelo fato de que todos os ramos da economia assim como os profissionais liberais são administrados. Sim, nós sabemos bem, todos nós, você, Sr. Adorno, e você, Sr. Kogon, que pelo estudo da mídia de massa, a ciência é ela mesma administrada.
Kogon: Sim, Prof. Horkheimer, os aparatos governamentais, os aparatos governamentais administrativos, parecem ser a maior expressão da necessidade que erigiu da assim chamada, e parcialmente real, liberdade econômica no começo do século XIX. Logo, é como você disse: um pequeno estrato alcançou uma relativa liberdade a partir de certa servidão social. Dessa relativa liberdade um rápido desenvolvimento cresceu para um estrato maior, e eu não quero negar que praticamente todos os estratos sociais participaram em alguma medida, aos menos temporariamente. Mas os problemas que surgiram dessa sociedade como um todo são enormes, horríveis em alguns casos, que os aparatos governamentais tiveram que ser expandidos a fim de deixar tudo sob controle, como que com abraçadeiras. O que eu queria dizer anteriormente com meu ponto era: nós conquistamos a liberdade em dois mil anos e agora a perdemos parcialmente, com a ameaça de perdê-la completamente. Esta era a liberdade da pessoa, não tanto na sociedade. Ao colocar a pessoa, a personalidade do ser humano, no centro, o Cristianismo transformou a sociedade, ainda que de forma prática e em longos séculos, em um longo processo. A pessoa individual foi colocada no centro, em tempos anteriores, como na Idade Média europeia, em ordens ainda vinculadas que mais tarde, em séculos posteriores, também consideramos restritivas. Então, ocorreu o processo que você mencionou e cujo fim presenciamos hoje. Só gostaria de dizer que a administração, enquanto tal, é uma necessidade da sociedade. Ela não é ruim. A questão é: ela está adaptada à realidade estratificada, a essa realidade tão diferenciada da sociedade em questão? Ou é uma camisa de força, uma donzela de ferro de Nuremberg, na qual a vida, como você, Professor Adorno, disse no início, deve sufocar ou ser esfaqueada? Portanto, a racionalidade da administração deve estar ajustada à realidade, na verdade: ela deve ser servidora, caso contrário… Não deve, portanto, acontecer que se afirme uma ditadura ilusória da razão abstrata, como foi o caso parcialmente nos séculos XVIII e XIX na filosofia, que na verdade apenas ocultava interesses existentes. Enquanto isso ocorre, esses interesses na sociedade levam à criação de enormes aparatos administrativos, como na economia, por exemplo, como o senhor mencionou, que acabam por tornar praticamente impossível respirarmos livremente.
Adorno: Acho, Dr. Kogon, que o que você disse por último nos leva adiante em nossa discussão. Quando criticamos a administração, não estamos criticando a racionalidade. Não estamos criticando o fato de que as relações humanas sejam planejadas como tal, para assim diminuir o sofrimento que certamente existe devido ao jogo cego das forças sociais. O que é fatal no desenvolvimento mais recente, que aliás não é tão recente assim, parece consistir no fato de que algo irracional é racionalizado, ou seja, que o resultado do jogo cego das forças da sociedade liberal, do qual o Sr. Horkheimer falou anteriormente, agora é fixado e tratado da maneira mais habilidosa, planejada e inteligente possível, de modo que esses estados fixos possam se manter e que as pessoas se ajustem a eles da maneira mais suave possível, sem que algo sério seja feito para superar esse resultado de um processo irracional e cego…
Kogon: Só uma pergunta, Sr. Adorno, para que eu possa entendê-lo corretamente: Você quer dizer com isso que a liberdade da pessoa é pressuposta e até afirmada, mas que, na verdade, essa liberdade se dissipou no desconhecido, no irracional, e que a realidade é que os interesses criaram aparatos administrativos que são altamente racionais?
Adorno: Isso é o que eu quero dizer, entre outras coisas, que a liberdade se tornou um mero pretexto para melhor controlar as pessoas. Mas quero dizer além disso que a sociedade, que hoje realiza o planejamento, contém em si mesma todos os elementos da falta de planejamento e, por isso, apenas interesses particulares conseguem se impor. E esse planejamento, na verdade, não beneficia as pessoas, mas serve, como você mencionou, a determinados grupos de interesse. Portanto, pode-se dizer que a base de toda a racionalização, como a vivenciamos hoje, continua sendo irracional.
Horkheimer: E o que você diz também se manifesta no fato de que a concorrência, na verdade, não foi abolida. Embora tudo seja administrado, sob essa administração ainda ocorre uma concorrência intensa entre as pessoas por posições, cargos e progresso, talvez até mais acirrada do que antes. Isso acontece de tal forma que, mesmo no Oriente, onde a concorrência aparentemente foi eliminada, as visões políticas parecem servir como pretexto para lutas de cliques e disputas internas. Na realidade, embora as empresas não mais compitam entre si, as pessoas enfrentam-se cada vez mais intensamente.
Kogon: Esse é um fenômeno extremamente importante, Professor Horkheimer, que você destacou. É também extraordinariamente complicado. Trata-se, na prática, de uma confusão entre realidades e conceitos. Existem, por exemplo, muitos empresários que defendem a livre concorrência em seus setores e, dentro dessa concorrência, que em parte eles apenas afirmam porque eles mesmos a organizam, planejam em grande escala e fazem exatamente o oposto do que pregam, ou seja, uma…
Horkheimer: Com certeza.
Kogon: …economia planificada em todos os aspectos, por assim dizer, sem que isso seja reconhecido…
Horkheimer: Com certeza.
Kogon: …Mas eles as chamam de algo completamente diferente. Chamam-na de livre concorrência, porque é a organização, a organização racional, de seus próprios interesses. Visto de uma perspectiva da sociedade como um todo, não é verdade, é falta de planejamento e ao mesmo tempo a abolição da livre concorrência. Por isso eu disse: confusão até mesmo das realidades. E no Leste, como você destacou, na esfera totalitária, que é altamente racional, ocorrem lutas de interesses elementares que, em parte, são simplesmente sobre a vida, não apenas sobre posições…
Horkheimer: Certo.
Kogon: …e isso ocorre com toda a selvageria e barbárie. O que me parece notável é que esse processo está ocorrendo tanto no mundo ocidental quanto no oriental. E a diferença parece ser apenas que no Oriente ele é brutal, realizado com extrema violência e terror, usando meios terroristas, enquanto no Ocidente não é tão visível de forma tão massiva, digamos agora com uma certa hipocrisia, porque há ideologias encobridoras sobre elas, mas que ainda têm um núcleo originalmente correto, o que me parece bom, que pelo menos, mesmo na forma de hipocrisia, ainda está em algum lugar da consciência, porque é um ponto de partida melhor, parece-me. Mas o estado básico é, na verdade, o mesmo em todo o mundo.
Horkheimer: O medo, por um lado, não é tão intenso, porque não há terror.
Adorno: Parece-me agora que o característico da situação não é tanto o aumento dos aparatos administrativos em si – afinal, tem havido aparatos burocráticos em todos os tempos – mas sim as mudanças pelas quais as pessoas mesmas se transformam em objetos de administração. Pode-se dizer que as pessoas mantêm as características que adquiriram na era da concorrência, que hoje as ajudam a se adaptar a esse estado, ou seja, uma certa habilidade, rapidez de visão, prontidão de reação, agilidade, uma série de características desse tipo, também uma certa dureza em relação aos outros e a si mesmas. No entanto, elas perdem todas as características que atrapalham esse processo e que até hoje temos considerado como as verdadeiramente humanas, as não totalmente capturadas. Elas perdem seus impulsos, perdem a paixão. A ideia de um ser humano apaixonado hoje em dia parece quase anacrônica…
Kogon: …de uma verdadeira paixão…
Adorno: …uma verdadeira…
Kogon: …pois existe sim uma paixão histérica…
Adorno: …não, de uma verdadeira, de uma paixão como a paixão de Madame Bovary ou de Anna Karenina. Poderíamos quase dizer…
Kogon: …ou a paixão por aquilo que é o correto…
Adorno: Exatamente.
Kogon: …como no caso Dreyfus com Zola.
Adorno: Exato, isso não existe mais.
Horkheimer: Se alguém sente um amor intenso, simplesmente vai ao analista e não morre mais por isso.
Adorno: Poderíamos quase dizer: as pessoas estão perdendo completamente o que um dia foi o caráter, a distinta singularidade de seu eu, que herdaram do passado e mantêm para o futuro, porque esse eu é, de certa forma, um fardo que poderia dificultar seu progresso dentro da gigantesca máquina social. Quase se poderia ir tão longe a ponto de dizer que, nesse processo, as pessoas que se adaptam a tudo isso apenas para sua própria preservação, nesse processo de adaptação, acabam perdendo exatamente esse mesmo eu, esse self, que na verdade desejavam preservar, e é aí que reside a dialética satânica desse processo, pelo menos em sua vertente humana.
Horkheimer: Essa adaptação, no entanto, traz enormes dificuldades. Esta era é a era da psicologia e, como eu disse antes, especialmente a era da psicanálise. Na psicanálise, o processo de administração continua dentro do próprio ser humano. O ser humano se torna objeto de si mesmo, ele se objetifica, por assim dizer. Ele só quer progredir. Ele quer o que a psicanálise chama de capacidade de prazer e capacidade de trabalho, e sob isso não há mais nada – pelo menos é o que vejo hoje – a não ser a adaptação à realidade dada. A análise, que costumava tentar levar as pessoas para fora deste mundo através da crítica, permanece no mundo objetificado. Os livros que hoje são publicados sobre psicologia são em grande parte os mais bem-sucedidos. As pessoas buscam a paz, a paz de espírito, e como parecem não ter mais uma verdadeira crença, recorrem à psicologia e perguntam como alcançá-la. Eu sei que em alguns países as pessoas acompanham essas tendências com interesse e as pessoas esperam ansiosamente por isso, já que os jornais diariamente trazem conselhos de psicólogos sobre como se comportar em diferentes situações. Isso ilustra o quão desorientadas as pessoas realmente se tornaram.
Kogon: Todavia, Professor Horkheimer, vejo no processo da psicanálise e na tendência de recorrer a um psicanalista uma certa sensação de desorientação, que não pode ser simplesmente interpretada como adaptação. Não apenas, repito, embora isso certamente seja predominante…
Horkheimer: A adaptação é de fato o objetivo.
Kogon: Sim, o objetivo. Pode ser um objetivo oculto e reconhecido. Entre os ocultos, quero dizer, há ainda outras causas atuantes. Sinto quase pena de tantos que acreditam que podem descobrir com o psicanalista onde estão as causas dos sofrimentos individuais que sentem nesta sociedade moderna, nesta sociedade administrada. Vejo nisso quase uma tentativa desesperada de se libertar das armadilhas, das redes, de todas essas prisões do mundo administrado. Concordo plenamente que eles permanecem dentro do sistema do mundo administrado, que essa tentativa psicanalítica não derruba as paredes, não quebra as correntes, não rasga a rede, não é? Porque se busca um ponto no próprio passado, do qual então se encontram todas as explicações em cadeia, por assim dizer. E a liberdade de decisão, ou seja, a liberdade da pessoa, não é estabelecida dessa maneira, embora possa ser uma ferramenta útil, digo, possa ser, se houvesse valores presentes que fossem os únicos capazes de romper as correntes.
Horkheimer: A psicanálise tenta justamente evitar que a pessoa rasgue as redes externas, ensinando-a a gerenciar seus próprios impulsos e paixões.
Kogon: Isso está certo, sim.
Adorno: Eu acredito que se pode estudar o desenvolvimento do mundo administrado através da própria psicanálise. Pois a psicanálise já teve dias melhores. Originalmente, ela pretendia libertar as pessoas, tornando conscientes seus impulsos reprimidos, pelo menos internamente, e aliviando a pressão que, dentro delas, representa a continuação da pressão externa, social. Este aspecto desapareceu completamente da psicanálise de hoje, e exatamente aquele desejo de liberdade, pelo qual ela surgiu, é hoje considerado na própria psicanálise como utópico, neurótico, e sabe-se lá o que mais. A psicanálise, em sua forma praticada atualmente, busca mais que as pessoas se sintam bem sob a pressão geral, e reforça a atitude amplamente disseminada de conformidade. Especialmente as popularizações atuais da psicanálise, que tentam abreviá-la ou facilitá-la e poupar as pessoas do sofrimento e do esforço da autorreflexão, visam na verdade apenas cortar as arestas das pessoas que não se ajustam suavemente, transformando-as subjetivamente naquilo que já são objetivamente: potenciais funcionários de uma única, gigantesca megaempresa.
Kogon: Mais uma vez, quero dizer que houve um ponto de partida correto, mesmo na psicanálise, para encontrar uma saída deste mundo administrado. Foi uma espécie de necessidade oculta de salvação que levou ao seu desenvolvimento. No entanto, esse ponto de partida foi desenvolvido de forma errada novamente, e permanecemos dentro do círculo vicioso. A causa mais profunda de toda essa confusão, parece-me, é que os valores reais e transformadores se perderam. Não tanto na consciência, pois tradicionalmente eles ainda estão presentes — fala-se continuamente em toda a Europa, em todo o mundo, sobre valores como liberdade e moralidade, não é? Bondade e o que mais você quiser, todos os valores elevados —, mas eles não são realidade na vida individual ou são apenas fragmentados, como últimos vestígios, e, portanto, não transformam a realidade existente. Um exemplo: uma relação correta com a realidade, com o mundo dado, requer uma espécie de apreensão amorosa. Isso não se aplica apenas às pessoas — em uma de nossas conversas anteriores, Professor Horkheimer, você apontou que não se deve considerar a natureza apenas de maneira utilitária…
Horkheimer: Exatamente.
Kogon: …bem, portanto, é necessária uma espécie de apreensão amorosa, a disposição de se entregar ao outro, seja uma pessoa ou, se necessário, até mesmo uma coisa, por mais paradoxal que isso possa parecer, já que estamos falando do mundo reificado e administrado, mas agora num sentido libertador: encontrar essa relação com a coisa, entregar-se, unir-se ao outro. E porque esses valores existem, no máximo, apenas na mente, mas não vivem no coração, acredito que é por isso que a mente se torna obtusa. Do coração obtuso vem a mente obtusa.
Horkheimer: Aí, eu acredito, a psicanálise original tem um grande mérito, ao mostrar que o que chamamos de valores pode se tornar consciente de muitas maneiras, mas que esses valores só podem ser incorporados à consciência, incorporados ao ser humano, se, durante uma infância protegida, a pessoa tiver a oportunidade de realmente aprender esses valores de alguém que ama. E acredito que a situação econômica atual, com sua dissolução da família, sua dissolução de toda paz e segurança, não permite mais isso, pelo menos em grande parte. E, por isso, não chegamos mais ao que poderíamos chamar de desenvolvimento da consciência.
Kogon: Fica muito claro para mim, a partir das suas exposições, o quanto a psicanálise em si está reificada, o quanto ela permanece dentro do círculo vicioso. Ela procurou pontos de determinação, pontos dos quais poderia, de forma puramente causal e inevitável, continuar ou retroceder o desenvolvimento individual do ser humano para torná-lo consciente. Mas isso não liberta. Esse tipo de consciência, de encontrar uma cadeia causal, não leva aos valores que mencionei antes, os quais poderiam atuar de forma transformadora, ultrapassando as barreiras.
Horkheimer: Não, esses valores precisam estar presentes na sociedade. A análise apenas mostra as condições nas quais esses valores podem ser internalizados na personalidade.
Adorno: A psicanálise aparentemente se dedica ao indivíduo como algo ainda não compreendido, inconsciente, instintivo, e parece, portanto, estar em oposição ao mundo administrado. No entanto, acabamos de constatar que ela faz isso ao compreender o não compreendido em si mesmo, ao manipulá-lo novamente. A famosa frase freudiana “O que é isso, deve ser tornado consciente” expressa claramente essa intenção. E nessa dualidade, ou seja, na aparente imersão no indivíduo apenas para submetê-lo de forma mais eficaz ao abstrato e reificado, expressa-se uma tendência muito mais geral que chamamos de pseudoindividualização. O que queremos dizer com isso pode ser ilustrado mais facilmente se eu te lembrar de uma caricatura que foi publicada uma vez na revista de humor americana The New Yorker. Havia um bueiro em uma rua, com uma placa de identificação “Sr. Smith” presa a ele, assim como hoje em dia, em todos os balcões, encontramos placas com os nomes dos funcionários correspondentes. Um visitante se aproxima e pergunta ao trabalhador no bueiro: “O Sr. Smith está em casa?” Isto é pseudoindividualização, ou seja, quanto mais tudo está englobado, mais nos é feito acreditar que ainda somos o Sr. Fulano, seres humanos muito especiais com nomes próprios. E uma das tarefas mais importantes para escapar do mundo administrado é não cairmos na fraude da falsa individualização.
Horkheimer: Isso significa que a individualidade se torna uma ideologia, poderíamos dizer. Em vez do ideal de igualdade defendido pela Iluminação, surge o da padronização. E o que vale para as mercadorias vale também para as pessoas. A publicidade nos apresenta cada novo tipo de produto como algo absolutamente novo. E todo fabricante sabe que precisa ter cuidado para não produzir um novo tipo de produto que seja muito diferente dos outros, senão ele não será vendido. Cada mercadoria parece feita especialmente para você. E na verdade, é feita para as massas. A padronização é de fato uma categoria válida tanto para as pessoas quanto para as mercadorias, parece-me.
Kogon: Mas até mesmo na economia, Professor Horkheimer, eu diria, ainda existe essa verdadeira individualidade, que então leva à escolha correta e à adaptação à própria realidade. Infelizmente, muitas vezes hoje ela está ligada à riqueza, acessível apenas a camadas muito específicas e finas da sociedade, e ainda assim realizável.
Horkheimer: Sem dúvida.
Kogon: Certamente. Mas eu concluo a partir deste ponto econômico muito mais amplamente. Eu gostaria de dizer: toda experiência, mesmo desta época terrível, ensina que a verdade, o genuíno, ainda reside em cada indivíduo em algum lugar, eu diria: reside, muitas vezes não visível, não eficaz, mas ainda presente. Não afirmo isso apenas por motivos teológicos, mas considero que é um fato da experiência diária e da experiência de vida de todos, que o ser humano permanece com algo de Deus, algo do verdadeiro ser e da liberdade de escolha, para o bem ou para o mal. Afirmo que o ser humano pode, mesmo nesta imersão, enclausuramento e endurecimento, ainda se desenvolver de forma diferente, apesar de todas as camadas de concreto que cobrem a realidade. Mesmo que ele esteja, por assim dizer, em seu bueiro, como infelizmente é frequentemente o caso hoje em dia, e tenha seu nome pendurado sobre ele, ele pode sair; ele também pode ir mais fundo, mas também pode sair.
Adorno: Acho que devemos lidar com esse motivo, que certamente contém alguma verdade, com extrema cautela. Eu me lembro claramente de uma ocasião em que, em um contexto literário específico, um homem que tive a oportunidade de conhecer como um empresário muito astuto começou um ensaio com a citação da frase de Dostoiévski: “Em cada criatura, uma centelha de Deus”. E não me pareceu muito fácil acreditar nessa centelha naquele homem em questão. De qualquer forma, parece-me que o tipo de pessoa que nasce hoje no mundo já se encaixa de antemão em um grau extremamente amplo no mundo administrado, como se nascesse dentro dele ou, para ser mais preciso, como se os mecanismos de adaptação já estivessem profundamente enraizados e presentes em uma camada extraordinariamente profunda e precoce. Eles são caracterizados de antemão por duas qualidades aparentemente contraditórias: rigidez e flexibilidade. Essas pessoas são rígidas porque na verdade não têm mais espontaneidade, porque na verdade não estão mais vivendo completamente, mas porque já se experimentam como coisas, como autômatos, como são utilizados no mundo…
Kogon: Posso aplicar novamente sua comparação anterior com o New Yorker: rígidos dentro do canal, mas flexíveis para mudar de canal.
Adorno: … mas flexíveis para mudar de canal, ou seja, eles precisam estar prontos para funcionar em qualquer momento e em qualquer lugar, e somente se demonstrarem essa disposição continuamente, então eles escapam da ameaça universal do desemprego, no sentido mais amplo, que naturalmente vai além da ameaça real do desemprego tecnológico enfrentada pelo trabalhador industrial. E essa mistura de extrema flexibilidade e total rigidez, como a de um parafuso que pode ser transferido de um lugar para outro, parece-me característica da constituição antropológica de uma grande parte das pessoas hoje.
Horkheimer: Eu acredito que é de fato como o Sr. Kogon disse, que o ser humano tem a possibilidade de ser diferente. Mas precisamente por isso, e para lembrá-lo dessa possibilidade, é nosso dever mostrar o que está acontecendo com o ser humano no presente. Você, Sr. Adorno, também esteve envolvido nas investigações que conduzimos na América para descobrir se o perigo do homem administrado, do homem que internalizou a administração em sua própria psicologia, do homem ligado à autoridade, está aumentando. E encontramos – e encontramos com base em muito material – que é realmente o caso. As pessoas que estão cegamente ligadas à autoridade estão aumentando nesta época atual. Agora, como são essas pessoas? Elas são caracterizadas por um pensamento estereotipado. Elas sempre pensam em termos de superior e inferior. Elas classificam cada pessoa igualmente em uma classe, em um partido político, em um país, em uma raça. Elas pensam em termos de preto e branco. O preto é o grupo que não é o delas, e o branco é o grupo delas, onde tudo está bem, como deveria ser. Elas próprias têm uma necessidade enorme de se sentirem como membros de um desses grupos que é o bom. Isso acontece porque o ego delas, sua espontaneidade, sua vontade, se tornaram fracas e suaves, e elas só podem se sentir quando pensam em si mesmas como membros de uma comunidade forte. Daí esse impulso de pertencimento.
Adorno: Isto reflete novamente um traço da própria administração. Assim como um funcionário administrativo vê as pessoas como objetos, avaliando sua utilidade ou inutilidade, ou como um administrador julga, ao pensar em sua carreira, se uma pessoa está a favor ou contra ele, as pessoas hoje tendem a ver todas as outras pessoas apenas sob a categoria de “A favor ou Contra”, como objetos. E assim, o verdadeiro diálogo entre as pessoas, que consiste precisamente na interpenetração do a favor e do contra, é interrompido, e é precisamente por isso, eu diria, que o cumprimento espontâneo das relações humanas se torna impossível até um grau tão fatal.
Kogon: Meus senhores, espero que não se importem se eu me dirigir por um breve momento aos ouvintes. Meus ouvintes, vocês não sentem em sua vida cotidiana que o que os dois senhores acabaram de dizer é uma ameaça real? Vocês não categorizam, não dividem incessantemente, não conhecem essas distinções eternas entre amigo e inimigo no bairro, onde a consciência de que o outro é um ser humano como nós se perde? Mas vocês não sentem também que podem agir de forma diferente, se quiserem? – E, Professor Horkheimer, direcionei essa última frase aos ouvintes agora apenas para fazer uma pequena provocação também contra você, no sentido de que é possível, sim, é mais viável do que talvez você assuma no estado deste mundo administrado, que você conhece tão bem e analisa tão profundamente. É preciso apenas estar extremamente vigilante e alerta em relação aos perigos deste mundo administrado, tanto ao nosso redor quanto dentro de nós mesmos. Parece-me que é ainda mais importante tirar conclusões sobre si mesmo e questionar criticamente se estamos realmente sucumbindo continuamente a esse estado de administração, como o concebemos aqui.
Horkheimer: Não duvido de que o que você falou seja possível. Mas, como cientista, devo examinar se o tipo que você descreveu tão bem está aumentando no mundo. E, infelizmente, é exatamente esse o caso. A história das últimas décadas nos ensina que, infelizmente, é verdade que essas pessoas, que só conhecem amigos e inimigos e que não têm consciência, estão se tornando predominantes.
Kogon: Sim, no que diz respeito ao perigo, ao estado e à magnitude do perigo, concordo plenamente com você. Gostaria de adicionar um exemplo talvez ilustrativo: veja os cristãos dos nossos dias. Embora eles carreguem constantemente as distinções, as grandes distinções entre o bem e o mal consigo, até mesmo as proclamem constantemente ao mundo – pregamos, por assim dizer, todos os dias para o mundo maligno, onde quer que ele esteja, seja na vizinhança, na mesma cidade, no Ocidente ou no Oriente -, apesar de carregarem essas diferentes categorias consigo, eles ainda são tão prisioneiros deste mundo administrado. Na realidade. Pois se fosse diferente, a mudança viria justamente dos cristãos, que têm essas categorias distintivas do Evangelho.
Adorno: Sim, não quero negar que essa possibilidade exista. Mas acredito que se trata de uma relação muito difícil. Sempre que nos referimos ao que ainda existe no mundo, corremos o risco de nos tornarmos defensores do mundo como ele é; enquanto eu acredito que a verdadeira vontade, a vontade incorruptível de escapar das coisas de que falamos, precisa simplesmente que as coisas sejam ditas como são, sem comodidade, sem tentar contra-argumentar: “Sim, mas isso e aquilo ainda estão presentes.” Eu quase diria: assim que adotamos o gesto de “sim, mas” ao contemplar essas questões gravemente sérias, já estamos negligenciando a seriedade do que estamos lidando e nos tornando, de alguma forma, ainda que inconscientemente, defensores desse estado.
Kogon: Sim, entendo você. É um desafio delicado…
Adorno: Penso que estamos na mesma página…
Kogon: …entendo. O que estou chamando de “conforto” – primeiro, eu não rotularia assim. Segundo, o que está sendo referido aqui como conforto não é originado do estado do mundo administrado. Ele surge do âmago do próprio ser humano e está além deste mundo administrado. É aquele resquício ao qual nos retiramos anteriormente ao descrever o estado.
Horkheimer: O mundo administrado está sob o signo da proclamação da felicidade, da liberdade, do progresso. A defesa faz parte da manutenção do mundo administrado. A constante referência de que as coisas poderiam ser diferentes, de que o ser humano tem todas as possibilidades de fazer o bem e de fato as realiza, desempenha um papel enorme na manipulação, da qual acabamos de falar.
Kogon: Se isso permanecer no domingo e no espiritualismo.
Horkheimer: Sim, fica claro que, se for verdade o que vemos, as pessoas que pensam de maneira estereotipada e dividem o mundo entre amigo e inimigo estão realmente predominando. Não é verdade que a experiência do negativo como negativo é o reconhecimento do bom?
Kogon: Pode ser.
Horkheimer: Sim, até mesmo a proclamação imediata do bem em si pode representar um perigo tremendo…
Kogon: Entendo, também concordo.
Horkheimer: Sim, porque ela pode servir para glorificar o que é.
Kogon: Eu mesmo disse: como ideologias encobridoras sobre os interesses reais. E até a verdade, a verdade objetiva, pode ser uma ideologia encobridora e se tornar uma mentira na aplicação prática. Porque, como o Professor Adorno tão corretamente disse, ela não captura a realidade, mas até a mantém.
Adorno: Então, falando concretamente, a ameaça é simplesmente que – e nós não podemos resolver esse problema, mas acho que deveríamos pelo menos mencioná-lo antes de terminar nossa conversa -, quando se diz que o indivíduo ainda pode ser bom hoje e se retirar da administração, embora algo correto em si seja dito, mas, segundo nosso entendimento das leis desta sociedade, mesmo que inúmeras pessoas sigam essa exigência de integridade pessoal, devido ao domínio dos processos anônimos que acontecem acima de nossas cabeças, nada decisivo na administração do mundo seria alterado…
Kogon: Entendo, então você nega isso.
Adorno: …mas é preciso, eu diria, sair de si mesmo e entrar em uma prática objetiva, não pessoal, se se espera mudar o mundo administrado; contudo, com isso, é necessário também dar ao diabo do mundo administrado, essa reificação, pelo menos o dedo mínimo, ou seja, só se pode combatê-la com meios que, em certo sentido, também são materiais e objetivos…
Kogon: Bom, mas isso é…
Adorno: … e este é o terrível dilema em que estamos.
Kogon: … isso é visto como uma alternativa muito radical, Professor Adorno. Não é verdade que existem meios normais – como já dissemos no início: a administração é necessária, não é mesmo, ela deve se adequar à realidade e a uma realidade diferenciada…
Adorno: A administração de coisas, mas não a de pessoas, é necessária.
Kogon: Sim, mas uma parte entre as pessoas – já que a sociedade é um campo de forças -, uma parte entre as pessoas também é objeto de organização. E isso faz parte da administração. No entanto, o ser humano não deve ser visto como objeto, esse é o ponto crucial, e não se deve agir como se ele fosse um objeto, ou usá-lo, como é tão bem colocado hoje em dia, não é mesmo, de forma totalmente mecânica. Mas ainda assim, acredito que há um passo, e é um passo contínuo, diário, um passo para fora dessa esfera mais íntima da liberdade de escolha entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, em direção à realidade, à objetiva, e que, quando esses passos são dados e muitas pessoas os fazem, a realidade externa pode ser alterada de uma maneira não completamente controlável; especialmente quando dentro do sistema, dentro de um sistema político de liberdade individual baseado na lei de sua sociedade, ou seja, na democracia, utilizamos os meios disponíveis.
Horkheimer: Eu acredito que devemos agora, ao final, também dizer uma palavra em favor do mundo administrado. Porque não é apenas verdade que este mundo administrado traz apenas coisas negativas para o ser humano. A diminuição do que chamamos de vida, vida própria, o declínio do nível de experiência, está relacionado com a disseminação dos bens de consumo. De fato, hoje existe uma facilitação da vida, como nunca se poderia ter imaginado antes. As tecnologias simplificam a vida e, portanto, criam muitas fontes de experiência, mas também muitas fontes de sofrimento. A experiência está ligada ao sofrimento. As ruas limpas, a higiene, a civilização padronizada modificam o ser humano. Mas agora a questão é se devemos simplesmente negar as ruas limpas, a higiene, a civilização, a tecnologia e a administração por causa disso. Pode ser que, no final das contas, tudo isso crie as condições para um estado em que a realização do potencial individual, do qual o senhor Kogon falou, seja muito mais possível do que é hoje.
Kogon: Que maravilha são as conquistas civilizacionais. Mas o preço que pagamos por elas, sobre isso todos concordamos, é imenso e em parte levou à completa desumanização. Certamente, todos nós, que ainda preservamos um resquício de coração e mente, não estamos dispostos a pagar continuamente um preço tão alto por quaisquer vantagens materiais. O cerne de nossos esforços sempre será, portanto, manter essas vantagens civilizacionais, usá-las corretamente, mas desenvolver a substância do humano. E devo dizer, senhores, que me parecem haver mais possibilidades, por mais sombrio que tudo pareça, do que emergiu em nossa conversa. Vejo isso na família, vejo isso no cotidiano, no escritório; isso não é apenas ético, Professor Adorno, parte da ética, é claro, e de valores genuínos, mas também leva a essa realidade triste e a transforma passo a passo. Gostaria de dizer: o elemento do bem está presente apesar de todas as impurezas, de todas as camadas que o encobrem, até mesmo o terror que está por cima; ele está presente e é eficaz. Se não estivesse presente, não saberia por que deveríamos tornar toda esta situação consciente.
- Tradução baseada em Horkheimer, M. (1989). Die verwaltete Welt oder: Die Krise des Individuums. Gesammelte Schriften, 13, Fischer, pp. 121-142. ↩︎
- Sem tradução em português. ↩︎
Felipe S. Vieira
Doutorando e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Filosofia (UFPR). Foi bolsista do Programa de iniciação científica (PIBIC). Tem experiência na área de Teoria Crítica, com ênfase em estética e política, atuando principalmente nos seguintes temas: Adorno, Benjamin, Paulo Arantes, Teoria crítica da arquitetura e Filosofia política.