Ideias.. Ideias, preciso confessar, me interessam mais que homens – me interessam mais que tudo. Elas vivem, lutam, e morrem, como homens. É claro que podemos dizer que só as conhecemos através dos homens, assim como só conhecemos o vento através dos galhos que ele dobra – mas ainda assim o vento é mais importante que os galhos.

O vento existe independentemente dos galhos, retrucou Bernard.

Sua intervenção fez Edouard, que já a esperava, recomeçar, com espírito renovado: Sim, eu sei: as ideias só existem por causa dos homens – mas isso é que é patético: elas vivem às suas custas

Gide, Os Moedeiros Falsos

Nota introdutória

Este texto foi iniciado em 2015 e originalmente publicado em inglês em abril de 2016, no primeiro número da revista Continental Thought & Theory. Seu principal propósito era apresentar o saldo teórico de quatro anos de trabalho coletivo no Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII). É digno de nota que, no momento de sua fundação, o CEII fazia um uso mais tradicional da filosofia e teoria política, entendendo a si mesmo como um projeto de formação militante que ofereceria grupos de estudo e ajudaria a disseminar o trabalho de filósofos como Alain Badiou e Slavoj Zizek. Entre 2011 e 2015, no entanto, esse caráter pedagógico foi ficando em segundo plano e progressivamente deu lugar a uma nova relação com a teoria, em que a utilidade dos insights da filosofia, psicanálise e teoria política era avaliada a partir das questões que o próprio coletivo começou a colocar para si mesmo, com base em sua atuação e seus impasses1. Estar ciente dessa transformação pode ajudar a entender alguns dos desafios em jogo nesse texto, que, por um lado, mobiliza quase exclusivamente os pensadores identificados com esse novo momento da “ideia comunista”, mas, por outro, visa tensionar suas contribuições na direção de problemas e apostas enraizadas na vida do coletivo político que serve aqui de “estudo de caso”.

Mas há uma outra questão contextual de interesse, pois o ano de 2016 não marcou para o CEII apenas uma mudança em sua relação com a teoria política contemporânea, mas também o primeiro ano de operação do coletivo fora de um governo nacional petista. Abril de 2016 – mês de publicação do texto – também é o mês em que se oficializou o impeachment de Dilma Rousseff. Anos depois, quando fizemos um longo balanço da história e desafios do coletivo, usamos o período entre o impeachment em 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 para marcar uma transformação crucial nas condições de funcionamento do Círculo, mudança que trouxe à tona impasses que permaneceram sem respostas organizacionais à altura até a dissolução do coletivo em janeiro de 2021.

Duas coisas ocorrem simultaneamente nesse interregno. Primeiramente, tanto o golpe quanto o susto com o crescimento orgânico da extrema-direita no Brasil terminaram de enterrar qualquer possibilidade de discussão ampla sobre a necessidade de avançar para além do horizonte atual da esquerda brasileira – necessidade que justificava o tipo de prática experimental do Círculo – em favor de debates estratégicos sobre como resistir à pressão reacionária. Por outro lado, esses mesmos anos foram extremamente duros economicamente, o que significou que o tempo disponível para dedicar-se a atividades políticas também foi reduzido por conta das demandas de trabalho e a força generalizada da precarização. Nesse contexto, surgiam novas demandas políticas urgentes enquanto a capacidade de se organizar diminuía – e muitos escolheram priorizar formas de engajamento político que prometiam contribuir para barrar o avanço da extrema-direita naquele momento, se desligando do CEII. Foi um período, inclusive, em que a composição de gênero do coletivo se transformou bastante, uma vez que muitas mulheres que participavam preferiram se organizar em grupos de ação – partidários ou não – diretamente ligados às pautas feministas, visto que a ameaça contra as mulheres e contra a população LGBTQIA+ naquele momento realmente era desproporcional.

Esse novo momento do Círculo colocou à prova todas as ideias e princípios articulados neste texto. Confirmou, por um lado, que o real valor do coletivo estava na capacidade de deslocar seus participantes de seus lugares sociais habituais e no esforço de partilhar ao máximo os meios de pensar sobre nossa própria vida coletiva – confirmação que tivemos pois, quando não fomos capazes de preservar esses traços, o coletivo lentamente deixou de existir. Por outro lado, eu diria que as duas tensões que surgiram ali – a tensão entre autorreflexão experimental e a pressão por ações políticas eficazes e a tensão entre o tempo de militância organizada e o tempo de trabalho e repouso – jogaram nova luz em algumas hipóteses do CEII, revelando suas limitações, bem como apontaram para novos desafios práticos e teóricos que se tornariam depois motivação para a pesquisa do Subconjunto de Prática Teórica.

É verdade – como é discutido no presente texto – que, através das suas discussões teóricas, o CEII se munia de ideias e hipóteses que em seguida experimentava dentro de seu próprio espaço organizativo, mudando seus métodos de deliberação, de divisão de tarefas, até mesmo inventando dispositivos que podiam ser implementados em outras organizações. Porém, havia ainda um outro ponto de passagem a ser considerado nessa relação entre pensamento e política, isto é, o problema do retorno dessas práticas experimentais para o coletivo: dos “pensamentos coletivos sem pensador” para os “pensadores sem pensamento coletivo”. Esse segundo movimento simplesmente não podia ser realizado dentro da dinâmica efetiva do CEII, que permanecia centrado sobre a leitura e discussão de textos já existentes. Descobrir o que é que o Círculo pensava, qual a teoria de sua prática, foi uma das grandes motivações por trás da formação do SPT.

Quatro anos após ser criado, em 2020, ainda antes da dissolução do Círculo, membros do Subconjunto publicaram um texto chamado “Contribution to the Critique of Political Organization”, no qual, além de traçarem a história intelectual dessa pesquisa coletiva, reforçavam a carência dessa “teoria geral e explícita”:

Ao longo da última década, mais de 300 militantes e ativistas participaram do Círculo, reunindo a experiência combinada em 6 partidos políticos, vários sindicatos no Rio e em São Paulo, movimentos sociais, tudo isso modulado por suas diferentes realidades sociais. É esse compromisso subjacente de operar sobre a amostra mais heterogênea possível de experiências militantes que faz da emergência de invariantes e repetições – tanto no testemunho imediato quanto através do trabalho de nossos subconjuntos – sinais relevantes da estrutura e desafios que moldam a paisagem da luta política hoje em dia.

No entanto, o Círculo não foi capaz de produzir ainda uma teoria geral e explícita de seus próprios compromissos práticos – um enquadre conceitual onde a organização coletiva seja entendida como um espaço experimental que nos ensina sobre o mundo social na mesma medida em que o transforma. É essa hipótese, de que a organização política está intrinsecamente conectada à elaboração do pensamento político – produzindo, na verdade, um suporte que é irredutível aos ideais das pessoas que se organizam – que efetivamente motiva esse projeto de pesquisa e seus objetivos teóricos.

Vemos, assim, que o SPT nasce com o intuito de elaborar algo como a teoria intrínseca a uma organização política, distinta da teoria que circulava explicitamente naquele coletivo – o que, talvez contra-intuitivamente, permitiu que o grupo sobrevivesse ao fim do CEII e continuasse seu trabalho. Afinal, não se tratava mais de reforçar o circuito que conectava teoria e prática dentro do Círculo, mas de desenvolver uma teoria cujo domínio se estendesse para além daquela experiência coletiva em particular. Algo, afinal, continua a se pensar.

§0

A aposta que orienta este texto é a seguinte: existem ideias que só podem ser consistentemente pensadas a partir de certas formas de organização coletiva. Isto é, existem ideias que só podem ser elaboradas se sua construção conceitual estiver ligada à construção prática de um dado espaço institucional. 

Essa hipótese não parece tão surpreendente assim à primeira vista – afinal, não é exatamente isso o que estaria em jogo no fanatismo, quando testemunhamos a produção de um sentido comum entre pessoas de um dado grupo? Nesse caso, encontramos ideias que, para qualquer um fora daquela organização, são irrelevantes ou inconsistentes mas que, de dentro do coletivo, ganham um papel importante: mesmo se seu caráter irracional as torna conceitualmente inadequadas, essas ideias funcionam como traços fundamentais de identificação. O estudo desses efeitos de sentido produzido dentro dos grupos reforçaram a impressão corriqueira de que toda pesquisa séria, toda investigação real do mundo, deve evitar as estruturas coletivas – ideias claras e distintas teriam uma certa afinidade com a solidão. Mas o fenômeno do fanatismo, no entanto, não é o que nos interessa aqui. Ainda que o papel do sentido na formação de grupos seja inegável, e pode levar a efeitos terríveis, nós precisamos antes de mais nada desfazer nosso fascínio por esse fenômeno já bem estudado, para que possamos confrontar a realidade – mais surpreendente e frágil – de outra situação: a hipótese de que certas ideias verdadeiras ou racionais só se tornam pensáveis através do engajamento coletivo. Em suma, essa não é uma tese sobre “ideais” – traços comuns que organizam as identificações em um grupo – mas sobre “ideias”, conceitos racionais que, enquanto pensamentos, podem produzir consequências no mundo.

Mas por que estariam as ideias, se verdadeiras, ligadas a uma condição tão acidental quanto a organização coletiva? Como poderia um grupo, que é afinal composto de indivíduos pensantes e distinguíveis entre si, ser uma condição necessária para certas formas de pensamento? E mais – e talvez tão importante quanto: como poderíamos distinguir essas ideias de um traço identificatório como qualquer outro? Isto é, se uma ideia surge dentro de um projeto coletivo e permanece, num primeiro momento, infundada e inconsistente, o que a distingue de um ideal de grupo?

Nessa contribuição, nós buscamos desenvolver a estrutura básica conceitual para tornar nossa hipótese consistente e inteligível e, então, apresentar um estudo de caso concreto do que poderia significar consolidar uma instituição que almeja corresponder a essa afirmação. Assim, após apresentar nossa teoria sobre ideias, nós nos voltaremos ao caso do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia, o projeto coletivo cuja experimentação em curso nos últimos 5 anos condiciona de fato as idéias desenvolvidas neste texto. De certa maneira, então, se o presente trabalho é capaz de confirmar a consistência de sua hipótese, dado que esta hipótese é, em si, o produto irredutível de um esforço coletivo na construção de uma instituição, nós deveríamos, por extensão, fornecer a primeira prova de sua validade.


§1

No primeiro capítulo do Capital, Marx propõe a seguinte comparação entre a medida do peso e do valor de duas coisas:

Um pão-de-açúcar, sendo um corpo, é pesado, mas é impossível ver ou sentir o seu peso. Tomemos agora diversos pedaços de ferro de peso pré-determinado. Considerada em si mesma, a forma material do ferro é tão pouco uma forma de manifestação do peso como a do pão-de-açúcar. Todavia, para expressar que este último é pesado, colocamo-lo numa relação de peso com o ferro. Nesta relação o ferro é considerado como um corpo que apenas representa peso. As quantidades de ferro usadas para medir o peso do açúcar representam, portanto, em face da matéria açúcar, uma simples forma, a forma sob a qual o peso se manifesta. O ferro só pode desempenhar este papel na medida em que o açúcar, ou qualquer outro corpo, cujo peso se quer achar, é posto em relação com ele sob este ponto de vista. Se os dois objectos não fossem pesados, não seria possível entre eles nenhuma relação desta espécie, não podendo, de modo algum, um deles servir de expressão ao peso do outro. Se os pusermos a ambos numa balança veremos que, como peso, são efetivamente a mesma coisa, tendo portanto, numa determinada proporção, o mesmo peso. Tal como a matéria ferro, como medida de peso, representa em face de um pão-de-açúcar apenas peso, assim também na nossa expressão de valor, o objeto material casaco representa, em face do tecido, apenas valor.

Cessa aqui, porém, a analogia. O ferro, na expressão de peso do pão-de-açúcar, representa uma propriedade natural comum às duas matérias – o seu peso -, enquanto o casaco, na expressão de valor do tecido, representa uma propriedade sobrenatural dos dois objectos – o seu valor, algo de puramente social.

Comecemos pela relação de peso: para expressar a propriedade física do peso de um dado corpo, é preciso colocar esse corpo em relação com outro, numa balança, para que essa propriedade invisível e imediatamente impalpável possa aparecer em termos do corpo de uma segunda. Marx faz dois comentários sobre esse processo: (a) a relação de proporção só é possível porque os dois corpos possuem a mesma consistência, isto é, ambos são corpos físicos e partilham da propriedade de ter peso; e (b) ao mesmo tempo em que ambos são fisicamente homogêneos, na relação de peso eles ocupam lugares diferentes: o peso do primeiro corpo, que não pode ser diretamente apreendido, se manifesta como o corpo material da outra coisa – o pão de açúcar pesa tanto quanto o ferro. Essa comparação permite que Marx exemplifique o que havia antes chamado de “forma simples ou acidental do valor”, que coloca em relação o valor imaterial de uma primeira mercadoria e o valor de uso materialmente determinado pelo corpo de outra mercadoria. Ele chama a posição desse segundo corpo – que, neste exemplo, é responsável por encarnar a propriedade “essencial” do primeiro – de “forma-equivalente” da relação, enquanto o primeiro corpo – aqui, o pão-de-açúcar – ocupa o lugar de “forma-relativa”, dado que uma de suas propriedades é indiretamente expressa através da fisicalidade daquilo que relacionamos a ela.

Essa analogia, no entanto, encontra um limite, que marca a distinção entre as formas naturais e as formas não-naturais, ou sociais. Quando colocamos dois corpos físicos numa relação de medida de peso, a medição expressa através de sua relação em uma certa quantidade do segundo corpo existe em cada corpo independentemente de termos colocado ambos em relação – a comparação entre eles apenas nos permite expressar seu peso, tornando-o legível para nós. O valor de mercadorias, por outro lado, é inerentemente social – ou seja, é ele mesmo relacional. Mercadorias, quando removidas do campo das relações de equivalência e troca, mantêm apenas suas determinações naturais e heterogêneas, aquelas ligadas ao seu valor de uso, mas não há nada nelas a ser expresso em termos de valor. 

Isso nos leva a adicionar um terceiro comentário aos dois já antecipados por Marx, a saber, o fato de que a homogeneidade entre os corpos em uma dada relação de medição deve ser estendida para incluir aí também a própria balança, a própria medição: formas físicas tornam-se legíveis através de medições físicas enquanto formas sociais se tornam legíveis por medições sociais. Essa tese, que vacila entre o óbvio e o obscuro, nos permite definir uma diferença fundamental entre as relações naturais e sociais: é apenas no último caso que o ser das coisas comparadas e a comparação ela mesma são não apenas da mesma consistência, mas efetivamente indiscerníveis entre si – nada distingue o processo de expressão do valor de uma mercadoria do processo de constituição de seu valor, para começo de conversa.

Esse é, assim, o limite da analogia de Marx e o ponto de partida de nossa investigação: formas sociais, tais como a forma do valor, tornam-se racionais – entram em relações de proporção que tornam certas propriedades legíveis e articuláveis – através do mesmo processo que as torna efetivas. O próprio ser da relação social sendo investigada é homogêneo e indistinguível do processo através do qual essas propriedades se tornam legíveis para nós. Num certo sentido, a “balança” social que precisamos para expressar a forma do valor é parte dessa forma: não são os atores do processo de troca que abstraem e tornam comensuráveis as diferentes mercadorias que são relacionadas ali – se fosse esse o caso, durante o ato de troca nós não poderíamos estar preocupados, como certamente estamos, com seus valores de uso. Na verdade, é a própria forma do valor, essa dimensão enigmática das próprias mercadorias sendo trocadas, que é responsável por produzir sua comensurabilidade. Esse é o estranho insight que levou o filósofo Alfred Sohn-Rethel a concluir que

 “‘a unidade transcendental da consciência de si’, para usar a expressão kantiana para o fenômeno em jogo aqui, é ela mesma uma reflexão intelectual de um dos elementos da própria abstração da troca, seu elemento mais fundamental, a forma de substitutibilidade das mercadorias que subjaz a unidade do dinheiro e da síntese social. Eu defino o sujeito transcendental kantiano como um fetiche da função capital do dinheiro” (Sohn-Rethel, 1971:76-77).”


De alguma maneira, acabamos descobrindo que o verdadeiro cientista social, a instância vazia e neutra capaz de medir seres sociais de maneira imparcial, comparando seus valores, é ninguém mais do que a própria mercadoria, que “produz com seu cérebro de madeira ideias grotescas, mais incríveis do que se ela começasse a dançar livremente” (ibid: 163).

Acabamos de examinar a hipótese meta-econômica de que o sujeito da ciência na economia política não é o ator da troca, mas algo que está implicado e determinado pela própria forma da mercadoria. Formas irredutivelmente sociais são, na verdade, constituídas pelo ponto de indistinção em que  seu ser e seu pensamento se produzem mutuamente – mas esse ponto, paradoxalmente, não coincide conosco como seres pensantes: o ponto de partida do Capital é justamente que existem formas sociais que pensam – “uma forma de pensamento que é distinta do pensamento”, como diz Slavoj Zizek (1989: 19).

No entanto, enquanto essa tese deu origem a uma sofisticada teoria do fetichismo, nossa aposta aqui é que essa dimensão social do pensamento, ainda que sempre disjunta de nós, não precisa necessariamente coincidir com a ideologia. Em suma: defendemos que o pensamento produzido por formas sociais deve ser apreendido tanto como ideologia quanto como ideia.

§2

Nosso ponto de partida torna a seguinte questão relevante: se existem ideias racionais que não precedem o coletivo, dando a regra de sua organização, mas são produzidas pelas relações sociais que ali se dão, como podemos discerni-las? Isto é, qual é o traço local – se há algum – que diferencia essas ideias sociais de ideais de grupo, bem como de ideias que poderiam ter sido pensadas à parte desse condicionamento coletivo?

Esse problema nos leva a outra área de estudo, aparentemente muito distante, que tem sido objeto de investigação pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Em seu livro sobre São Francisco, A Altíssima Pobreza, ele investiga a relação entre regras e vida da seguinte forma:

Podemos assim dizer que a regula vitae é aquilo por meio do qual vivemos, o que corresponde perfeitamente à expressão regula vivificans que definirá a regra franciscana para Angelo Clareno: “a regra não é aplicada à vida, mas a produz e ao mesmo tempo é produzida por ela”. Que tipo de texto são regras, então, se elas parecem realizar performativamente a vida que elas devem regular? E o que é uma vida que não pode mais ser distinguida de uma regra? (Agamben, 2013: 69)

Uma vida que não pode ser distinguida de uma regra – isso é o que Agamben chama de “forma de vida”: uma vida que não pode ser separada de sua forma sem deixar de ser vida. Está em jogo nessa investigação da forma de vida um problema muito próximo daquele que já estávamos estudando. Marx mostrou que práticas sociais podem produzir abstrações reais, abstrações que são disjuntas de qualquer pensador particular daquela prática – por exemplo, a abstração fundamental que produz a homogeneidade subjacente ao ser social das mercadorias. Tais abstrações apresentarão, portanto, duas propriedades: (a) não preexistem à prática social, mas são produzidas por ela; (b) ditam as condições dessa prática, mas não como princípios regulativos aos quais os participantes dessa forma devem se adequar. Afirmar que tal disjunção entre pensadores individuais e o pensamento social pode vir a produzir efeitos emancipatórios significa que precisamos ser capazes de conceber uma prática que, não denegando a existência de “pensamentos sem pensadores”, não deixe, portanto, de estabelecer uma relação diferente com essa dimensão, que não aquela que encontramos na troca mercantil. É precisamente essa nova relação entre as regras abstratas e a vida real que Agamben reconhece como uma invenção franciscana:

Parafraseando o dito escolástico “forma dat esse rei” (a forma dá ser à coisa), poderíamos dizer norma dat esse rei (a norma dá ser à coisa, Conte, p. 526). A forma de vida seria assim a coleção de regras constitutivas que a definem. Mas é possível dizer que um monge, nesse sentido, como um peão no xadrez, é a soma das prescrições de acordo com as quais ele vive? Não poderíamos, na verdade, dizer exatamente o oposto, que é a forma de vida do monge que cria essas regras? Talvez as duas teses sejam verdadeiras, sob a condição de que especifiquemos que regra e vida entram aqui numa zona de indiferença, na qual – como não é mais possível distingui-las – elas permitem que uma terceira coisa apareça, que os Franciscanos, mesmo sem conseguir defini-la muito bem, chamaram de “uso”. (Agamben, 2013: 71)

Para extrairmos a profunda ressonância entre o estudo de Agamben e nossa própria investigação, precisamos primeiro examinar esse processo de reduplicação da regra que emerge na leitura agambeniana da forma de vida. A forma social aparece aqui tanto como a “coleção de regras constitutivas” que define a prática de uma dada coletividade, bem como o estranho “excesso formal” da vida ela mesma, a consolidação colateral de um certo modo de vida, que não coincide com regras escritas em relação às quais deveríamos nos medir.

Passemos a dois exemplos complementares dessa divisão da regra em regras que constrangem a vida individual e regras que produzem um modo de vida. A primeira demonstra como essa duplicação na verdade inverte a relação entre adequação e exceção à regra na orientação franciscana. Em um dos mais antigos comentários às regras monásticas nós encontramos a seguinte proposição: “usar sapatos depende de uma dispensa da regra em caso de necessidade; não usar sapatos é uma forma de vida”. Isto é: os casos em que, por uma necessidade ou outra, é permitido que os monges usem sapatos estão todos listados minuciosamente, enquanto o preceito de andar descalço não está escrito em lugar nenhum. De acordo com essa lógica, o livro de regras monásticas só rege as exceções à regra, enquanto que seguir a regra seria uma espécie de exceção absoluta. A regra de andar descalço não ficou ‘acidentalmente’ de fora do livro: se estivesse escrita como um comando, ela cessaria de ser o que é – pois tal hábito excepcional, quando realizado, nos permite dizer que nossa vida não é meramente adequada a um preceito, mas é na verdade exemplar. Manter o hábito de andar descalço mais além do dever (da submissão da vida a uma regra) e do direito (de uma liberdade de restrições) é uma condição para que seja fundada ali uma relação mais profunda com a regra que é encarnada pelo hábito: andar descalço é o caso de uma regra que não precede o andar, mas que, em vez disso, é tornada efetiva pelo caminho.

No entanto, existe outro efeito dessa divisão da regra em duas: nesse ponto de indistinção entre regra e vida, não encontramos apenas regras que só existem como modos de vida, mas também uma vida que só existe como uma regra – e que Agamben exemplifica com o caso do estudo monástico habitual das regras pelos próprios monges. Como conta o filósofo, o próprio livro de regras contém um capítulo sobre a tarefa de ler em voz alta o livro de regras uma vez por dia, de forma contínua, durante refeições. Isso significa que os monges precisam, num certo ponto do dia, ler em voz alta o texto do capítulo que prescreve essa própria regra. Ler em voz alta – uma regra que é realizada, vivificada, no próprio processo de ser enunciada. Assim, no ato de ler, “sua leitura realiza a instância exemplar de uma enunciação da regra que coincide com sua execução, de uma submissão que é indiscernível do comando que ela obedece.” (ibid: 77).

Esse redobramento da lei cria, assim, “uma zona de indiferença” entre regra e vida, em que se torna impossível dizer o que é a norma e o que é que segue a norma, pois a vida regrada é na verdade criada pela própria norma – ou seja, é a norma que dá o ser da coisa.

Podemos reconhecer aí uma estrutura muito similar àquela da abstração real implicada na forma social da troca de mercadorias: o processo de pensar o valor das mercadorias é indistinguível do processo de constituição das mercadorias elas mesmas, porque a comparação que expressa o seu valor é a mesma operação que consolida o seu ser social. Nesse sentido, a norma que regula a prática social dá ser à coisa social – ou, como Zizek (2010: 285) diz, “no campo social, o ‘como se’ é a coisa em si”: os postulados de agir ‘como se’ mercadorias fossem homogêneas entre si é precisamente o que constitui o seu ser social. E é precisamente nessa operação, através da qual uma dada prática não apenas se conforma a uma série de preceitos, mas produz uma dimensão formal, abstrata, que é irredutivelmente ligada à dimensão prática das regras, que Agamben tenta reconhecer um “novo nível de consistência da experiência humana” (Agamben, 2013: 87).

Se a semelhança entre a troca mercantil e a forma de vida franciscana vem da indistinção entre prática e ser, a principal diferença diz respeito a essa “terceira coisa” que vem à tona através de tal indistinção: a prática do consumo, no primeiro caso, e a prática do “uso”, no segundo. O valor de uso de uma dada mercadoria depende de suas propriedades materiais, isto é, naquela dimensão de seu ser que sobrevive à sua exclusão do circuito de troca – dado que o que a prática social condicionada pela forma do valor produz não é algo para ser usado tanto quanto a comensurabilidade entre usáveis heterogêneos. Por outro lado, na medida em que a indistinção entre norma e vida na forma de vida não leva à existência de uma dimensão formal normativa, mas à vivificação da regra – considerando que a interpenetração entre ambas na prática tanto segue quanto está em exceção às regras -, é na verdade o ser social ele mesmo, essa “nova forma de consistência”, que é dado para o gozo comum. Em suma: o fetichismo da mercadoria nos permite levar a vida trocando o que usamos, enquanto a forma de vida franciscana nos permite fazer uso de uma forma de viver. E por que seria esse uso diferente de uma forma de consumo? Porque ela não pode ser apropriada (ibid: 143): se eu me remover da prática social para consumi-la privadamente, essa vida seria ela mesma perdida, a própria consistência da coisa que desejo consumir estaria perdida, por não ser mais a liturgia vivificada que era até então.

Uma prática constituída que é constitutiva de uma vida formal – esse parece ser o cerne da invenção franciscana: mobilizar o ponto de indistinção entre uma prática real e uma regra abstrata de modo a conceber uma forma de vida na qual esse elemento inútil da forma social – que chamamos anteriormente de pensamento – se torne uma nova forma de uso, distinta do valor de uso, que é o uso sob condições da forma do valor. Nesse sentido, o estudo de Agamben constitui um primeiro passo em nossa investigação do que significaria discernir uma ideia cujo fundamento racional depende da instituição de uma prática comunal: uma tal ideia poderia apenas ser usada, mas não poderia ser apropriada por ninguém.

Nossa aposta inicial foi de que existem ideias que só são pensáveis sob condição de um engajamento prático com certas formas de organização institucional. Isso nos levou, num primeiro momento, a examinar a noção de abstração real em jogo no fetichismo da mercadoria. Como vimos, a análise de Marx da forma do valor destaca duas operações: (a) uma indiscernibilidade entre pensamento e ser social, dado que a relação de valor que abstrai de toda determinação concreta das mercadorias sendo comparadas é indistinguível do ato de comparar duas mercadorias e (b) um descentramento dessa coincidência em relação ao pensamento, pois o ponto em que “ser e pensar é o mesmo” só se dá negativamente: não somos nós que, como participantes do mundo das trocas mercantis, pensamos, mas o pensamento que está implicado na própria forma social de nossas práticas.

Essa investigação inicial nos levou a reconhecer que “existe um tipo de realidade cuja consistência ontológica implica uma certa ignorância por parte de seus participantes” (Zizek, 1989: 15) – isto é, o ser social é condicionado por uma abstração que também produz esse ser, mas esse pensamento acontece fora, e apesar, de nós.

Mas se o conceito de abstração real nos permite verificar um aspecto fundamental de nossa hipótese de trabalho, ele no entanto não nos traz nenhum insight sobre como transformar em algo útil essa disjunção entre nosso engajamento com uma forma social e a forma social que é assim produzida. Para pensar tal forma inusitada de uso, cujo objeto é precisamente esse ponto de indistinção entre a consistência de uma prática e seu pensamento, nós nos voltamos para o estudo de Agamben sobre as regras monásticas.

Investigando a relação entre vida e regra, como uma reformulação da questão do ser e do pensar nas práticas sociais, também analisamos uma estrutura social que verifica as duas operações elencadas por Marx, e em um contexto claramente institucional – em oposição a um contexto social mais difuso ou geral. Esse é um passo muito importante, pois uma das maneiras de negar a validade de nossa hipótese seria não tanto negá-la, mas trivializá-la, dizendo que essa é uma característica tão fundamental das ideias em geral que seria apenas uma platitude insistir que se trata de um caso especial. É portanto crucial afirmarmos que não estamos simplesmente dizendo que as ideias dependem do tecido social e histórico do tempo em que nascem, o que é realmente trivial, mas que certos pensamentos consistentes são condicionados por formas instituídas de organização em particular, formas que podem ser construídas e que têm, portanto, uma duração: estruturas sociais que começam, perseveram e, possivelmente, terminam. Nossa tese não diz respeito à sociabilidade enquanto tal, mas ao nosso engajamento com práticas coletivas localizadas, como aquela organizada pelas regras monásticas dos Franciscanos – ou por um partido comunista. 

No entanto, esse esclarecimento só nos leva a uma interrogação ainda mais precisa do problema; poderíamos certamente aceitar que ideias racionais e consistentes dependem dos recursos básicos da sociabilidade porque os recursos da racionalidade são de fato indistinguíveis daqueles da linguagem – esta seria a hipótese ‘trivializada’. Mas como poderia ser o caso em que estruturas construídas a partir desses recursos, isto é, a partir da uma submissão a regras passíveis de serem suspensas, poderiam afetar o espaço do que é pensável?

§3

Para reconhecer a contribuição de Agamben ao nosso problema original, talvez seja útil reformularmos a divisão entre espaços sociais “constitutivos” e “instituídos” em termos da diferença entre sobrevivência e vida.

Vamos partir da distinção tal como ela é apresentada pelo próprio Marx: no nível constitutivo da sociabilidade capitalista, sobreviver e viver não podem ser distinguidos imediatamente – ou melhor: somente o valor apresenta a forma autopoiética e transformadora própria do viver (a “unidade orgânica” do capital). A consequência de um modo de produção em que a organização do trabalho é mediada pela forma do valor é que a atividade concreta das pessoas é dirigida pela reprodução da vida, isto é, por sua sobrevivência, enquanto a qualidade abstrata e universal do trabalho, a capacidade genérica dessa potência transformadora, é colocada à serviço da produção de mais-valia. Em outras palavras, o “o que” e o “como” das atividades laborais é determinado pelo mercado – nós trabalhamos naquilo que nos permite continuar existindo -, enquanto a dimensão reflexiva, auto-transformadora do trabalho se desloca para a relação entre valor e valorização, o capital. Ao contrário do que algumas interpretações do marxismo sugerem, o domínio dos valores de uso não pode ser considerado externo à forma do valor simplesmente por ser o domínio das propriedades concretas dos objetos – como Marx também escreve no começo do Capital, existe uma história do uso (“a descoberta desses modos e portanto dos diferentes usos das coisas é o trabalho da história” (Marx, 1976: 125)), de modo que a utilidade e as formas de uso não são trans-históricas ou imunes aos modos de produção e intercâmbio de uma dada época. Outra forma de dizer isso é que a forma de uso definida por sua oposição ao abstrato é uma forma historicamente determinada de relação entre homem e coisas, tão mediada pela forma do valor quanto a relação entre mercadorias. É por isso que nenhuma demanda pelo retorno às coisas “concretas” realmente consegue apontar um caminho para fora do capitalismo. Além do mais, a renovada teoria do intelecto geral como a produção imanente e imediata da produção de algo comum, uma teoria fortemente baseada numa passagem dos Grundrisse, também erra nesse mesmo ponto: o fato de que o conhecimento está potencialmente disponível para todos, na medida em que a mercadoria conhecimento possui uma tensão inerente com a forma de propriedade privada, não significa que o acesso a esse conhecimento trará uma outra forma de vida – é perfeitamente possível acessar algo e ainda assim ser incapaz de participar desse algo. A teoria do intelecto geral como uma recuperação da “vida genérica” do homem também confunde o acesso ao valor de uso do conhecimento – seu consumo para a reprodução de uma forma expandida ou mais complexa de sobrevivência – com a capacidade efetiva de “viver as ideias”, no sentido que Agamben dá à teoria das formas de vida: dando algo de nós no processo regrado de fazer ideias consistirem.

Vemos, assim, que a teoria agambeniana das formas de vida não é apenas um novo conceito de forma que está em jogo, um em que as regras participam da constituição daquilo que poderemos usar, mas também um novo conceito de vida. Não a vida que existe privadamente, na relação do homem consigo mesmo e com suas necessidades, mas como um acesso a uma fruição frágil – local, mas construída coletivamente – que não adiciona nada à existência e reprodução das pessoas, que não pode ser possuída (já que é produzida pela performance de regras), não pode ser consumida (já que não é algo concreto cujas propriedades possam ser gastas com o uso) e que não corresponde a nenhuma necessidade particular de nenhuma pessoa em particular.

O próprio Marx, em seus Manuscritos Parisienses, descreve uma situação que ressoa diretamente com a proposta de Agamben.

Para suprassumir o pensamento da propriedade privada basta, de todo, o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva é preciso uma ação comunista efetiva. A história irá produzi-la e aquele movimento que nós, em pensamento, já sabemos ser um movimento suprimido a si próprio, sofrerá na efetividade um processo muito áspero e extenso. Temos de considerar, porém, enquanto um progresso efetivo, que desde o princípio temos adquirido uma consciência tanto da estreiteza quanto da finalidade do movimento histórico, e uma consciência que o sobrepuja. Quando os artesãos comunistas se unem, vale para eles, como finalidade, antes de mais nada, a doutrina, propaganda, etc. Mas ao mesmo tempo eles se apropriam, dessa maneira, de uma nova carência, a carência de sociedade, e o que aparece como meio, tornou-se fim. Este movimento prático pode-se intuir nos seus mais brilhantes resultados quando se vê operários socialistas franceses reunidos. Nessas circunstâncias, fumar, beber, comer, etc. não existem mais como meios de união ou como meios que unem. A companhia, a associação, o entretenimento, que novamente tem a sociedade como fim, basta a eles; a fraternidade dos homens não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho (Marx, 1974: 302).

Analisemos o movimento completo do argumento de Marx.

Num primeiro momento, Marx distingue o “pensamento” da “ação efetiva”: a ideia de propriedade privada de sua existência efetiva, a ideia do comunismo de seu movimento real. Como costuma ser o caso, para Marx, essa não é apenas uma distinção de registros, entre a apresentação abstrata e concreta de uma dada coisa. A ideia do comunismo pode na verdade exercer um efeito contrário ao movimento comunista real, na medida em que, do ponto de vista de uma ideia sem realidade efetiva, “o estranhamento real da vida humana permanece e é amplificado pela própria tomada de consciência dele”. O movimento comunista efetivo, por outro lado, não supera as relações efetivamente mediadas pela propriedade privada com a mesma facilidade que sua contraparte ideal: a prática comunista, na realidade, é árdua, precária, atravessa “um processo áspero e extenso”. Mas Marx também sugere que a própria passagem do pensamento capaz de idealmente antecipar a abolição da propriedade privada para a dura realidade da luta concreta é, em si mesmo, um “progresso efetivo”: termos consciência tanto “da estreiteza quanto da finalidade do movimento histórico” constitui nossa primeira vitória como comunistas.

O segundo parágrafo, no entanto, introduz uma reviravolta inesperada. Marx não fala aqui da estratégia comunista em termos gerais, se voltando agora para os “artesãos comunistas” que se reúnem com propósitos táticos específicos, como a realização de algumas tarefas de importância para um movimento político – agitação, propaganda, formação política etc. Esse movimento local e efetivo, um difícil e doloroso processo de emancipação – que é cem vezes mais importante do que o trabalho dos filósofos, sentados em casa, pensando sobre a ideia de liberdade – é, no entanto, subitamente interrompido ou distorcido pela emergência de uma “nova carência”. Essa nova carência tem uma estrutura muito peculiar, porque – ao contrário do “estranhamento real da vida humana”, que só pode ser superado através da superação efetiva, e portanto futura, da propriedade privada – é uma carência que pode encontrar satisfação no próprio presente, no processo de socialização e associação dos trabalhadores aqui e agora. Essa nova carência é introduzida pela própria organização dos artesãos, pois não é uma carência que nos leva a nos organizar, é algo que aparece a partir de uma reunião que tinha outros propósitos. Há algo de enigmático ou paradoxal aí, na medida em que sua emergência inverte a relação entre meios e fins: em vez de se reunirem para planejar e preparar algumas tarefas de interesse ao movimento comunista real, os artesãos comunistas passam a se engajar na dura luta pelo comunismo efetivo para ter uma razão para “fumar, beber, comer” juntos. Num certo sentido, eles se tornam, ao partilhar de “companhia, associação, entretenimento” como os preguiçosos filósofos que Marx acabara de criticar, aqueles que pensam no comunismo pelo puro prazer de pensar. No entanto, aqui, a livre associação entre homens, diferentemente da livre associação de ideias dos filósofos, é uma realidade – uma realidade que Marx enfaticamente enaltece, ainda que essa não se apresente como uma contribuição efetiva para a transformação futura da humanidade.

A emergência da “nova carência” da qual fala Marx, que surge como uma nova satisfação, um prazer desavisado, não deixa de causar mal-estar nos coletivos militantes, nos movimentos sociais e nos partidos políticos. Afinal, do ponto de vista daqueles que abandonaram a satisfação narcísica de seus ideais e se dedicam às durezas e frustrações da prática política, ter seus suados esforços de mobilização coletiva subitamente transformados em “meros” meios de socialização – sua dedicação à transformação futura da sociedade reduzida a uma razão para fumar e beber – só pode mesmo aparecer como um desvio, uma interrupção ou uma traição à verdadeira orientação do movimento. Como escreve Jacques Rancière em seu estudo dedicado a essa mesma passagem dos Manuscritos:

Aqui está um problema que é bem capaz de transformar o entusiasmo do comunista no desespero do revolucionário – a nobreza da humanidade iluminando cedo demais essas figuras que deveriam ter até mesmo perdido a aparência de humanas para que pudessem se transformar nos produtores do futuro da humanidade (…) O obstáculo na transformação dos comunistas franceses em proletários revolucionários não é seu estatuto de artesãos, mas seu estatuto de comunistas – não o endurecimento trazido pela jornada de trabalho, mas a leveza de sua antecipação de um futuro comunista. (Rancière, 2003: 82-83)

Sem uma teoria da dimensão “vivificada” da organização coletiva, que serve a nenhum fim pré-estabelecido antes de sua formação, isto é, sem um lugar prático para esse estranho curto-circuito entre meios e fins, se torna impossível impedir as cisões insistentes e recorrentes dentro dos movimentos revolucionários, cisões entre aqueles se movendo na direção de uma transformação futura da sociedade, e aqueles que, sendo expostos a essa “nova carência” – “a carência de sociedade” -, gozam de uma satisfação presente.

Rancière dedicou boa parte de sua obra à questão do estatuto do conhecimento em organizações como a dos artesãos franceses. Tanto em seu A Noite dos Proletários quanto no caso específico de Joseph Jacotot, estudado em O Mestre Ignorante, o filósofo francês investigou a relação entre a constituição de um espaço em que o progresso rumo a um fim é suspenso e o tipo de capacidade intelectual que é produzida por essa suspensão. No caso de Jacotot, Rancière fala do espaço criado por essa “nova carência” como a formação de um “círculo da potência”:

O círculo da impotência sempre já está aqui: ele é o próprio funcionamento do nosso mundo social, escondido na diferença evidente entre ignorância e ciência. O círculo da potência, ao contrário, só pode se tornar efetivo ao se tornar público. Mas isso soa como uma absurdidade ou uma tautologia. Como poderia um mestre conhecedor vir a entender que ele pode ensinar o que ele não sabe com tanto sucesso quanto o que ele sabe? Ele não pode senão considerar esse aumento de potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência. E o ignorante, por sua vez, não acredita em sua própria capacidade de aprender sozinho, e muito menos na capacidade de ensinar aos outros. Aqueles que são excluídos do mundo da inteligência subscrevem eles mesmos ao veredito de sua exclusão. Em suma, o círculo da emancipação precisa ser sempre iniciado (Rancière, 1991: 16).

No entanto, o que significa “começar” um processo desses? Para Rancière, antes de mais nada, isso significa um engajamento coletivo com a afirmação de uma forma de igualdade. Não uma igualdade positiva, como se defendêssemos a capacidade comum de todos de realizar alguma tarefa, aprender algum conteúdo etc., mas uma igualdade negativa: ao invés da desigualdade indelével perante o conhecimento (já que alguns sabem mais que outros), Rancière foca na igualdade axiomática dos homens perante a ignorância de qualquer um. Isso pode ser traduzido na seguinte proposição: um homem que não sabe transmitir para outro o que sabe, não sabe. Se alguém deseja saber alguma coisa, então ele também deseja que outra pessoa seja capaz de verificar que ele sabe. Dentro do círculo da potência, os participantes não são tratados como se carregassem um saber valioso escondido, que ignoravam até então, mas começam a partilhar de uma forma na qual sua própria ignorância pode ser utilizada: se alguém deseja aprender algo, ele demandará um mestre não porque precisa que lhe ensinem algo, ou porque precisa de alguém que saiba mais que ele, mas porque precisa de alguém para quem ensinar – de modo que, ao se confirmar a transmissão do conhecimento para o mestre ignorante, possa ser verificado que realmente quem ensinava veio a saber o que desejava. O círculo da potência, assim, é o círculo em que a própria ignorância se transforma num poder.

Uma das principais consequências dessa estranha associação entre engajamento coletivo e esforço intelectual é que a questão do conteúdo do conhecimento se torna secundária em relação à forma como o conhecimento é adquirido:

O problema de Jacotot não é a instrução das pessoas: instrui-se recrutas sob uma bandeira, subalternos que devem entender suas ordens, o povo que se quer governar – tudo à maneira progressista, é claro, sem direitos divinos e somente de acordo com a hierarquia das capacidades. Seu problema é na verdade a emancipação: que todo homem comum possa conceber sua dignidade humana, tomar medida de suas capacidades intelectuais, e decidir como usá-la (..) quem ensina sem emancipar embrutece. E quem emancipa não precisa se preocupar com o que a pessoa emancipada aprende. Ele aprenderá o que quiser, talvez nada. Ele saberá que pode aprender pois tem a mesma inteligência a seu serviço que aquela em jogo em todas as produções da mente humana (Rancière, 1991: 18)

O que Rancière encontra nos círculos dos trabalhadores – lugares em que o empoderamento intelectual dos pobres os tornava desinteressantes para os revolucionários, que estavam mais preocupados com a consciência de classe – é uma encarnação secular das organizações franciscanas estudadas por Agamben. Um círculo da potência é, precisamente, uma forma de vida onde a vida – a dignidade humana – é indistinguível da forma, da afirmação coletiva do poder da ignorância, e onde essa indistinção, por fim, está disponível para cada participante “decidir como usá-la”.

O que permanece obscuro, no entanto, é a conexão entre esse momento negativo – a potência da ignorância, afinal de contas, não é ainda uma ideia – e suas consequências coletivas. O próprio Rancière, seguindo Jacotot, para antes desse próximo passo, já que ambos consideram que essa “nova carência” produzida pelo círculo pertence, num segundo momento, à esfera privada de cada indivíduo. É verdade que há um momento de mediação coletiva – é necessário pelo menos dois homens ignorantes para que o aprendizado sem professor seja possível -, mas cada um decide sozinho como usar essa potência, de modo incondicionado à forma como foi adquirida. Nem Rancière nem Jacotot acreditavam que o círculo teria consistência institucional, nem que a duração dessa empresa coletiva poderia condicionar o acesso àquilo que tornava, no entanto, possível.

§4

Uma das razões para essa limitação é que, para Rancière, o processo de emancipação iniciado pelo engajamento torna todo saber indiferente: um homem emancipado “aprenderá o que quiser, nada talvez”. E por mais que isso seja verdade – uma organização em que a ignorância é a medida comum, em vez do saber, realmente não tem como antecipar o que alguém deve, pode ou irá aprender -, ainda existe um outro registro no qual o saber e o pensamento podem estar em jogo, aquele com o qual iniciamos nossa investigação: o campo da forma social enquanto tal. Um círculo que suspende seus objetivos também precisa suspender qualquer determinação do que alguém deve aprender ou pensar, mas, para fazê-lo, um círculo como esse precisa, ele mesmo, encarnar uma certa forma de pensamento. Afinal, existem coletivos que são incapazes de sobreviver à suspensão de seus objetivos futuros, que não podem funcionar sem um ideal claro, enquanto outros, como os círculos operários de Rancière, insistem mesmo na ausência de tal orientação. Nessa distinção, formas diferentes de abstração estão operantes: de um lado, grupos abstraem de sua ignorância para focar em seu saber comum, do outro, coletivos que abstraem do que sabem para tornar sua ignorância uma potência comum.

O que isso significa é que, para entender de fato o novo lugar do pensamento em um círculo que promove uma certa indiferença ao conhecimento, nós precisamos de uma teoria das ideias que nos permitisse afirmar que, enquanto os participantes individuais de um coletivo podem estar ocupados com seus interesses privados, a própria instituição que eles compõem continua a pensar.

Talvez não haja nenhum outro filósofo hoje mais equipado para suplementar nossa teoria zizekiana das formas sociais – de formas coletivas em que o pensamento tem lugar fora dos pensadores – do que Alain Badiou e sua teoria das ideias políticas.

Para Badiou, pensar não é uma atividade nem consciente nem inconsciente – sua propriedade principal é a produção e manutenção de uma indiferença imanente a um certo domínio. Essa posição, na verdade, não contradiz a teoria freudiana do inconsciente, pois o inconsciente não é nada senão o fato de uma indistinção, que atesta a falta de diferença determinada entre os sexos. Mas ela também não exclui a possibilidade de que exista um pensamento consciente – em certos casos, pode até ser que nós experimentemos essa indiferença localizada, mas, ontologicamente, isso seria um tanto acidental. O essencial é que essa definição do pensamento também se aplica a domínios que são totalmente heterogêneos à escala e à forma da consciência individual: textos científicos, obras artísticas, invenções do amor e organizações políticas. Nada nos impede, para Badiou, de dizer que uma organização coletiva pensa – mesmo que o pensamento implicado em tal ser não seja necessariamente homogêneo ou compatível com o pensamento de nenhum daqueles que compõem esse grupo. Diferentes formas de organização respondem a problemas organizacionais concretos e localizados em relação a diferentes desafios materiais, assim como o círculo de Jacotot era uma resposta experimental à pergunta “é possível haver aprendizado sem o postulado da desigualdade das inteligências?”. A limitação da teoria de Rancière é assumir que essa resposta deveria ser encontrada na cabeça dos participantes do círculo, e não no próprio círculo tomado como uma forma social de pensamento.

O que é igualmente importante para nós, no entanto, é que Badiou associa sua teoria das “ideias imanentes” à distinção entre sobrevivência e vida, que nós já mencionamos. Isto é, o sinal no nível dos indivíduos da participação em uma ideia não é sua apreensão consciente pelo pensador, mas a transformação da sobrevivência em uma vida que vale a pena viver – uma “vida de acordo com uma ideia”. Em oposição à sobrevivência, que, para Badiou, como para Marx, se refere ao campo da reprodução dos seres humanos, em qualquer grau de complexidade que esse ente possa adquirir, viver significa “participar, ponto por ponto, na organização de um novo corpo, no qual um formalismo subjetivo fiel possa se enraizar” (Badiou, 2009: 35). Mas para entender como a vida e a forma se relacionam em seu projeto, precisamos rapidamente nos desviar e entender melhor o que é um formalismo e o que é a participação.

Enquanto Agamben fala de formas primariamente em termos jurídicos, isto é, em termos de normas e regras, Badiou pensa o formalismo do ponto de vista da atividade matemática. Mas o que ganhamos com essa mudança? Para nossos propósitos aqui, é suficiente perceber que uma regra jurídica tem alcance em uma dada comunidade – é uma forma baseada na diferença constitutiva de um grupo, razão pela qual o filósofo Lyotard, estudando o problema do confronto entre regimes normativos incompatíveis, cunhou a expressão “differendo” para nomear o impasse fundamental que ganha espaço no encontro entre duas “diferenças diferentes”, a impossibilidade de traduzir as regras de uma comunidade nas regras de outra. O formalismo matemático, por outro lado, é baseado na indiferença de um dado conjunto de regras – indiferença à consciência (já que podem contradizer nossa intuição), indiferença às comunidades (já que o poder dedutivo não respeita costumes), e até mesmo ao mundo físico (já que existem sistemas formais sem modelos naturais possíveis). Isso não significa que Badiou considera todo formalismo matemático, mas, antes, que apenas um conceito de formalismo amplo o suficiente para incluir a matemática vai ser adequado para ele, vai servir como teoria geral das formas. 

A importância dessa definição de formalismo para a teoria da vida em Badiou fica clara quando lembramos da passagem de Marx mencionada anteriormente, sobre a dimensão transformadora e universal da prática humana, aquela dimensão que só existe como capital quando a prática é mediada pelo valor como forma social. Para Marx, a vida genérica do homem, aquilo que realmente define o que significa viver, é a nossa capacidade de participar no universal, na transformação do próprio conceito do que significa ser humano. Nesse sentido, o genérico é o inumano no humano, ou pelo menos o ainda-não humano, pois concerne àquelas atividades e produções que caem fora do conceito atual de humanidade. Ao pensar as formas do ponto de vista de sua indiferença a uma dada situação, Badiou está na verdade conectando a capacidade de experimentos formais de exceder o que os in-forma – a universalidade negativa do formal -, de volta à teoria marxista do genérico, que sempre foi a teoria marxista da verdadeira vida. Em suma, é apenas ao participar em formas que excedem seu próprio material – excedem os confins das comunidades, da experiência e da consciência – que as pessoas têm acesso a uma vida que não é mera sobrevivência. A descrição de Rancière dos círculos de potência não chegam a dar conta dessa experiência – da experiência de partilhar da “nova carência” reconhecida por Marx em sua análise da inversão dos meios e fins na organização coletiva – porque ele pensa a emancipação apenas como liberdade de – liberdade de professores, liberdade da desigualdade – e, desse ponto de vista, nada viria de prestarmos atenção à organização que promoveu essa emancipação, dado que considerar a organização uma condição para esse desligamento seria religá-la de volta a alguma coisa, e portanto perdê-la. A teoria de Badiou, em vez disso, pensa a emancipação também como “liberdade para”, liberdade para realizar alguma coisa – isto é, liberdade para participar numa Ideia.

Essa participação, como mencionamos rapidamente, não é a mesma coisa do que a apreensão consciente, o sentimento ou mesmo a experiência pessoal. Lembremos que, na teoria da “participação” (metaxu) de Platão, esse termo é usado para explicar a relação entre o sensível e o inteligível, a relação entre o caso local e a forma geral. Uma cadeira “participa” da Ideia de Cadeira – seu ser múltiplo é visto como “um” do ponto de vista da ideia da qual participa. Isso poderia nos levar a achar que “participar numa ideia”, no caso da organização coletiva, significa tratar a organização concreta e local como um caso concreto, e nossa apreensão, ou nossa imaginação de sua versão ideal, como a forma – mas o que Badiou propõe é bem mais o contrário: é a própria organização, na universalidade negativa ou indiferente do formalismo que encarna, que carrega os traços de uma ideia geral ou genérica, e aqueles que são formados por ela – trabalhadores, ignorantes etc. – são o múltiplo unificado do ponto de vista da forma social. Participação se torna, para Badiou, o nome de uma mediação imanente entre duas regiões do mundo, o conjunto de indivíduos determinados e o formalismo prático que os in-difere de sua situação determinada. 

Quando Marx descreve a congregação dos socialistas franceses, reunidos com o propósito de “instrução, propaganda etc.”, mas, ao mesmo tempo, estranhamente satisfeitos com a “companhia, a associação, a conversação”, sua aparente falta de objetivos revolucionários não deve nos enganar: eles podem estar ocupados com “beber, fumar, comer”, mas a organização composta por eles continua a pensar. É do ponto de vista dessa forma que “a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho”.

§ 5. 

  É importante notar que as investigações de Rancière sobre os círculos de trabalhadores no séc. XVIII foram realizadas como uma reação a uma primeira – e falha – tentativa de deslocar o pensamento criativo revolucionário na Europa para fora da universidade e de volta às organizações militantes. Ou seja, Rancière estava respondendo a uma falha prática do esforço de Louis Althusser de reverter a tendência consolidada que deslocou o pensamento crítico das organizações políticas para a academia.

Em termos esquemáticos, houve uma perceptível alteração no espaço de elaboração da teoria política na esquerda antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Se o início do século viu uma profusão de pensadores cujas ideias eram profundamente conectadas com os processos políticos nos quais eles se engajavam – consideremos, por exemplo, a relação entre diferentes posições teóricas dos revolucionários russos e seus engajamentos práticos antes e depois da revolução bolchevique, ou (melhor) o trabalho teórico de Lukács e sua conexão às lutas do Partido Comunista da Hungria nos anos 1920 -, a ascensão do fascismo promoveu uma nova dissociação entre pensamento político e engajamento político. Muitos pensadores importantes e criativos direcionaram seus engajamentos políticos ao combate armado e à resistência contra a ameaça fascista, enquanto, em algum momento, obtinham posições acadêmicas nas universidades, o que poderia garantir-lhes alguma estabilidade básica durante estes tempos sombrios e problemáticos. Ademais, a visibilidade crescente das atrocidades ocorridas na União Soviética, além da dissolução da Terceira Internacional, também afastou as pessoas dos Partidos Comunistas e em busca de um lugar em que o pensamento crítico – e as críticas às políticas partidárias – poderia florescer adequadamente. O caso paradigmático desta tendência foi, talvez, aquele da Escola de Frankfurt, que até deu uma forma institucional a essa divisão entre militância política e pensamento crítico, mas essa é uma divisão que vive até os dias atuais, geralmente tomando a forma do pensamento crítico direcionado contra a ossificação, alienação e os efeitos militaristas da organização coletiva em geral.

Althusser, que também lutou na guerra e posteriormente se estabilizou como um professor de filosofia na universidade, contribuiu, entretanto, para a inversão deste movimento. A força para esta rota alternativa, que distinguiu ele e seus estudantes da bem estabelecida intelligentsia marxista daqueles tempos, foi certamente a influência do maoísmo, o que insuflou nova vida na teoria da política partidária e na teoria em geral através de seu compromisso com uma concepção de prática como a origem das “ideias corretas”. E os efeitos palpáveis deste compromisso podem ser realmente percebidos no método e no pensamento de Althusser: ele não apenas estabeleceu uma interlocução horizontalista incomum com seus estudantes – desenvolvendo informalmente uma metodologia de trabalho que o acompanharia durante toda sua vida, informando sua escrita e estilo -, mas a própria consolidação de seu projeto teórico, com a publicação de Ler o Capital (1968), que foi em si um esforço coletivo. Esta tendência a incutir no trabalho teórico uma forma coletiva também foi evidente em outros lugares: Althusser foi um dos poucos marxistas de seu tempo que permaneceu fiel tanto ao Partido Comunista Francês quanto à ideia de que “a análise concreta das situações concretas” marxista deveria se aplicar também às próprias instituições militantes. Essas duas intuições althusserianas – primeiramente, promover projetos de pesquisa coletivos e, em segundo lugar, postular críticas de dentro das instituições, em vez de postulá-las de fora das mesmas – podem ser entendidas como o alicerce sobre o qual um retorno do pensamento para as organizações políticas é condicionado.

Porém, é interessante notar que mesmo que Althusser tenha ajudado a demonstrar a necessidade de uma nova forma de associação entre prática coletiva e pensamento crítico, a consolidação real de um grupo baseado neste princípio althusseriano não o incluiu. O Cercle d’Epistemologie, composto por alguns de seus mais brilhantes estudantes, foi concebido fora das estritas fronteiras acadêmicas, tomando para si a tarefa de editar um jornal inovador de política, filosofia e psicanálise chamado Cahiers pour l’Analyse, no qual a base para uma nova teoria da discursividade deveria ser elaborada coletivamente. Infelizmente, o jornal, assim como o Cercle, não sobreviveu à intensa atividade política do final da década de 1960 na França: na medida em que o projeto foi organizado principalmente em torno de uma produção teórica sofisticada, sem uma visão clara de suas próprias bases políticas e institucionais, não pôde resistir ao tipo de associação tensionada entre estudantes e trabalhadores que caracterizou a experimentação militante naquela sequência histórica. Ainda que os membros do Cercle d’Epistemologie tenham explicado a desintegração do grupo essencialmente em termos de suas diferentes posições a respeito do movimento político na França – alguns exibindo um maoísmo mais estrito, outros menos -, é claro que a própria forma do projeto revelou, ela mesma, estar distante dos desafios organizacionais de seu tempo (Hallward & Peden, 2012). Simultaneamente ao desenvolvimento do Cercle, no entanto, houve também a fundação da escola psicanalítica de Jacques Lacan, a École Freudienne de Paris, provavelmente o melhor experimento em organização coletiva na França daquele tempo. Durando da metade da década de 1960 ao início da década de 1980, a EFP foi um projeto que, curiosamente, também contou com a presença de Althusser tanto em seu início quanto em seu término (Tupinambá & Yao, 2013: 405-435). Deixando de lado os muitos méritos e falhas dessa empreitada – o que mereceria uma análise completa por si mesma -, não deveríamos subestimar sua importância da mudança de investimento que conduziu alguns dos mais ativos membros do Cercle para longe de seu próprio coletivo e em direção à construção da Escola. Este fato é significativo porque revela como alguns dos elementos perdidos na visão “científica” althusseriana da coletividade foram encontrados nos debates sobre organização coletiva dos psicanalistas lacanianos naquele período (Tupinambá & Yao, 2013).

Rancière não era parte do Cercle – mesmo tendo participado, ao lado de alguns deles, no projeto Ler o Capital, de Althusser, alguns anos antes – mas nós podemos facilmente entender sua virada conceitual para longe de temas althusserianos e em direção a arquivos de movimentos de trabalhadores como uma resposta ao fracasso, tanto de seu mestre quanto de seus colegas, de articular conjuntamente pensamento e engajamento coletivo. O trabalho de Rancière, de La Leçon d’Althusser (1975) até O Mestre Ignorante (1987), tem sido lido geralmente como uma forte crítica à fetichização da classe trabalhadora pelo movimento revolucionário – o que de fato o é, na maior parte. Como Rancière demonstrou, especialmente em seu Le Philosophe et ses pauvres (1983), o paradigma da produção em certas correntes marxistas conduz a uma fetichização do trabalhador que efetivamente impede que a igualdade ocorra entre os camaradas. Mas também encontramos nesses estudos a base para uma teoria alternativa do pensamento que é indissociável da organização coletiva. Como já discutimos previamente neste texto, Rancière acha no “método universal de emancipação” de Joseph Jacotot uma teoria que ata a aposta engajada na igualdade com a criação de um espaço para aprendizagem. Entretanto, como também vimos, nem Jacotot nem Rancière adotam o passo adicional de conceber a experiência dos círculos emancipatórios de trabalhadores como a base para uma nova forma de organização: para ambos, o engajamento com essa afirmação, embora amarre uma pessoa a outra através de uma ignorância comum, não constitui um vínculo social durável.

É dentro desta longa história das tentativas fracassadas ou incompletas de associar organização coletiva e pensamento criativo que o Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII) busca se inscrever como um outro passo, ainda que precário, em frente.

O Círculo foi criado em 2012 com o objetivo de incorporar as lições extraídas desses experimentos prévios ao longo do movimento contínuo de reconectar engajamento coletivo com produção teórica em uma tentativa renovada de desafiar e revitalizar a forma-partido sob condições contemporâneas. Em seu documento norteador, o Círculo refere seu próprio nome a quatro tarefas cruciais que recaem sobre qualquer tentativa de trabalhar através da conjunção de pensamento e participação hoje, conectando estes desafios a quatro pensadores que já mencionamos aqui:

1. A construção de um Círculo que distingue entre duas partes dentro de um partido político – uma dimensão transitiva, focada em demandas específicas do mundo como ele é, e uma dimensão intransitiva que, do ponto de vista do mundo, não responde a nenhuma demanda específica – deve ser capaz de distinguir entre uma dimensão política dirigida para uma finalidade e outra guiada pela inutilidade. Assim, a construção do espaço do Círculo depende da nossa capacidade de saber o que é uma comunidade sem propósito. Esta tarefa é identificada por Giorgio Agamben.

2. Um Círculo de Estudos, cujo emblema propõe a articulação de pensamento com militância, tem o dever de transformar sua própria operação em um exemplo dessa abordagem. Dessa forma, é necessário inventar um conceito de estudo que torne possível um uso produtivo da maestria – estabelecendo poder a serviço do conhecimento -, bem como sustentar um método de trabalho capaz de estabelecer uma ligação entre os participantes baseada nos problemas comuns,produzindo poder a partir da vicissitude do conhecimento. Esta tarefa é identificada por Jacques Rancière.

3. Um Círculo de Estudos da Ideia – um espaço dedicado à invenção de uma instituição concreta, mas cujo princípio construtivo é alguma coisa que não existe ainda – precisa ser capaz de afirmar que a prática pode ser orientada pelo que é inexistente e indistinguível do pensamento. Em outras palavras, é necessário investigar de que maneira a política pode ser entendida como a encarnação de uma Ideia. Esta tarefa é identificada por Alain Badiou.

4. Um Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia não pode, no entanto, parar de questionar a diferença entre o trabalho de transformação do mundo e o dispêndio de energia investido na repetição de nossas coordenadas atuais. Ou seja, precisamos conceber como os vínculos sociais existentes podem ser reforçados pelos nossos esforços de quebrá-los e, desta investigação, pensar como seria uma intervenção política irredutível aos processos ideológicos que colocam o ímpeto de mudança a serviço da manutenção do presente. Esta tarefa é identificada por Slavoj Zizek. (CEII, 2016).

Esses quatro pontos são então resumidos na seguinte aposta:

No cruzamento de seus projetos filosóficos, achamos uma das mais radicais tentativas de produzir uma nova formulação da hipótese comunista, bem como sua mais corajosa reafirmação, pela premissa compartilhada de que o centro opaco do que é comum – a inutilidade, a ignorância, a inexistência e o sintoma – é também o que liga pensamento e militância (CEII, 2016).

§ 6

O Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia toma para si explicitamente a tarefa de continuar uma experimentação que, de fato, não foi concebida como tal pelos seus próprios precursores. Na seção anterior, esboçamos brevemente a genealogia do problema e introduzimos a afirmação do Círculo de pertencimento à história experimental de articulações entre organização e pensamento. Nesta seção, nos concentraremos na descrição de alguns dos mecanismos formais que caracterizam o funcionamento do grupo.

A composição do CEII tornou-se cada vez mais complexa nos últimos anos. Atualmente, é um coletivo que conta com mais de 50 membros espalhados em mais de 5 países, trabalhando ao lado de partidos políticos e sindicatos no Brasil, organizando eventos acadêmicos em diferentes países, traduções de livros, grupos de estudo, experimentando o uso da psicanálise no pensamento político estratégico, bem como se engajando com diferentes atividades militantes. No entanto, esta complexidade é sustentada por alguns mecanismos formais que garantem a unidade básica do Círculo. O que nos interessa em nossa breve análise desse coletivo é entender em qual sentido esta unidade pode ser verdadeiramente baseada no “centro opaco do que é comum”: ou seja, estamos interessados no experimento coletivo concreto que o Círculo tem produzido através de sua apropriação dos recursos teóricos apresentados até o momento.

Vamos dar uma olhada em quatro aspectos diferentes dessa estrutura formal: como entrar no Círculo, como se manter nele, como se posicionar nele e como tornar seus fracassos produtivos.

(A) Entrada

A fim de entrar no grupo, deve-se preencher um formulário de admissão dividido em duas seções: uma exigindo informação objetiva sobre o candidato, e outra pedindo ao proponente escrever um comentário acerca do projeto do Círculo. O formulário apresentado, no entanto, não é avaliado pelos membros do coletivo baseado em seu conteúdo ou mesmo nas identificações políticas do candidato: em vez disso, o que é avaliado é se o formulário foi preenchido de uma forma que o desautoriza. Por exemplo, alguns candidatos, quando confrontados com a necessidade de se submeterem a um procedimento formal de entrada, aparentam se sentir obrigados a escrever em suas palavras que eles não acreditam em formulários de admissão, ou afirmando isso explicitamente ou deixando partes do formulário simplesmente em branco. Nesses casos, o Círculo avalia o formulário negativamente – e um email é enviado de volta ao candidato, declarando explicitamente as razões pela recusa e convidando-o a enviar um novo formulário. Em todos os outros casos, independentemente do conteúdo dos comentários enviados, o formulário é aceito.

Neste sentido, o formulário de entrada funciona um pouco como a “porta da Lei” na parábola de Kafka: parece que vai haver um exame – e muitas pessoas ficam de fato paralisadas frente aos critérios obscuramente simples de entrada -, mas a única resposta errada é rejeitar o exame como ilegítimo. No entanto, esta é uma condição essencial: se o Círculo aprovasse todos indistintamente, seu formulário de entrada seria uma mera formalidade, mas na medida em que o próprio fato de preenchê-lo legitimamente cria o objeto a ser positivamente avaliado no processo de votação do grupo, o formulário de admissão se torna parte de um formalismo – ou seja, o objeto sob análise não é o referente externo representado pelo formulário escrito (quem é o candidato, suas crenças políticas etc.), mas o que a forma cria por si mesma, sua consistência mais interna e superficial.

(B) Permanência

Porém, o formulário de entrada não é o operador determinante de pertencimento na lógica do Círculo. Em vez de derivar consistência de um mecanismo que distingue o que está dentro e o que está fora do coletivo, o CEII acredita em um protocolo diferente que privilegia a conexão de uma reunião a outra: as notas de trabalho.

Uma vez que alguém é aceito no Círculo, o único compromisso necessário deste participante é escrever, após cada reunião, uma breve nota anônima – de absolutamente qualquer conteúdo. Toda célula se reúne sobre uma base semanal, mas a presença de algum participante nesses encontros é, de fato, considerada secundária à realização das notas de trabalho: é a presença da escrita que marca o engajamento com o projeto, não a presença física no espaço da reunião. Como escrito no projeto do Círculo:

Todo o trabalho é sustentado pela afirmação seguinte: a presença nas reuniões não é uma garantia de pensamento – através disso marcamos a distinção entre presença e participação. A presença permite a criação de uma coesão através de um sentido comum, produzido invariavelmente quando um grupo discute um assunto comum. A participação, por outro lado, é como podemos subtrair de tal coesão a razão para o engajamento com o que resiste à compreensão. O mecanismo que opera a distinção entre presença e participação são as notas de trabalho. (CEII, 2016)

Todas as notas escritas pelos membros de uma dada célula são então reunidas e uma sistematização mínima desses fragmentos orienta o debate e o estudo que ocorrerá na reunião seguinte. Se um participante não entregar quatro notas seguidas, a próxima reunião é cancelada – e se as notas que faltam ainda não forem contabilizadas, ele é considerado então como tendo abandonado o Círculo. Assim as notas são descritas no projeto do CEII:

As notas de trabalho são textos sem qualquer restrição sobre o tema ou tamanho e que devem ser escritos tanto individualmente quanto anonimamente. A anatomia das notas de trabalho atende a três diferentes funções:

  1. As notas de trabalho são um pequeno fragmento do desenvolvimento individual
  2. As notas de trabalho são o texto que guia a direção da próxima reunião da célula
  3. As notas de trabalho são um marcador de disciplina, um certificado escrito de compromisso regular (CEII, 2016)

Se as notas de trabalho são um fragmento de elaboração, é porque aquele que as escreve dessa forma fixa materialmente suas dúvidas, que podem então ser consideradas e trabalhadas. Enquanto as notas de trabalho são um empreendimento individual, também são, como qualquer forma de trabalho, um vetor social – uma nota bem construída é aquela que transforma uma falta individual de conhecimento em uma falta coletiva de conhecimento, tornando-se assim útil para todo o Círculo (CEII, 2016).

     O caso das notas de trabalho já nos dá uma dica de como operacionalizar a ideia de uma “mediação negativa” entre organização coletiva e pensamento. Afinal, o conteúdo das notas não está prescrito em nenhum lugar, é apenas o fato formal de escrever que verdadeiramente conta como um marcador de engajamento com a coletividade. O conteúdo heterogêneo das notas de trabalho é assim suplementado pela forma homogênea de compromisso que ele possibilita. E enquanto a disciplina formal de escrever as notas garante a continuação da célula, as questões, comentários, críticas postas à escrita dirigem as elaborações teóricas do grupo sem o pressuposto de consenso entre seus membros.

Por último, é interessante notar que esta disciplina formal aparentemente simples – escrever, após cada reunião, uma nota anônima sobre qualquer tema e de qualquer tamanho – é a fonte para a grande ansiedade de muitos membros. Assim como no caso do formulário de entrada, a suspensão de qualquer critério a respeito do que deve ou não ser escrito cria um espaço de indeterminação que é geralmente preenchido com fantasias dos participantes sobre o que é esperado deles etc. Por causa disso, as notas de trabalho tornam-se um local privilegiado, dentro da organização, no qual os impasses libidinais da organização são encenados.

A indiferença formal em jogo tanto nos processos de admissão quanto nos de permanência compartilha algumas similaridades com a “regra de ouro” da psicanálise: a regra da associação livre. Na psicanálise, a suspensão de qualquer restrição extrínseca sobre o que o paciente deve falar é uma condição essencial para a “realização do inconsciente” (Lacan, 1981) e o estabelecimento da transferência – pois é precisamente nessa ausência que as restrições intrínsecas do discurso reluzem, regras que comandam o que nós podemos ou não falar, mesmo que não haja um governante externo exigindo que obedeçamos a isso. A produção de um agente concretamente responsável por esses desvios intrínsecos – alguém que conhece este imperativo que não podemos deixar de obedecer – é o que chamamos de transferência, e o trabalho do analista é encaminhar a suposição desta agência ou conhecimento de volta para o falante, através de escansões, interpretações etc.

       No Círculo, o espaço indeterminado criado pela característica puramente formal das notas de trabalho produz uma ausência similar que é igualmente seguida por uma certa forma de trabalho transferencial, de deslocamentos e suposições relativas aos outros membros e ao grupo em si. Este estabelecimento ou realização de transferência, por fim, possibilita ao Círculo tratar alguns de seus obstáculos – e o “outro” que seria responsável por tais interdições – como objetos de interpretação, ainda que não haja ninguém na posição de um analista: como se vê, os efeitos analíticos em um coletivo necessitam ser formalmente homogêneos com o local de sua intervenção a fim de produzir qualquer tipo de transformação efetiva, e é por isso que apenas intervenções coletivas são capazes de interpretar essas formações sintomáticas (Hamza & Ruda ed, 2015: 133).

(C) Posições

A constituição de uma célula do Círculo requer que haja ao menos duas pessoas, pois este é o número mínimo necessário para a distribuição de duas posições básicas que compõem seu funcionamento: o “Mais-um” e o Secretário Geral. A posição de “Mais-um” foi inventada por Jacques Lacan como uma forma de prevenir os grupos de trabalho em sua Escola – aos quais ele chamou de “cartéis” – de usar o trabalho coletivo como uma justificativa para fortalecer os traços identificatórios entre os participantes destes grupos, o que consolidaria ainda mais a já existente “doxa” e prejudicaria a aparição de novas ideias (Lacan, 2001: 229-242). A fim de evitar isso, Lacan propôs que cada grupo incluísse um “Mais-um”, alguém cuja função seria a de provocar os demais membros a trabalhar através de novas ideias, questionando incansavelmente qualquer produção coletiva e, assim, impedindo-os de transformar o trabalho coletivo em um mecanismo de confirmação de seu próprio senso comum. No Círculo, um mecanismo similar foi adotado por cada célula, mas com uma variação essencial. Isto se deve ao fato de que, contrariamente à própria proposta de Lacan, as células do Círculo não são “orientadas para projetos” (project-oriented), ou seja, elas não são meios para um objetivo ou produto específico, de modo que, após atingi-lo ou completar um ciclo de trabalho, o grupo se desintegraria. Considerando que uma das principais tarefas da organização do Círculo é precisamente achar uma mediação possível entre duração (militância) e diferença (pensamento), algumas adaptações para essa posição precisam ser realizadas.

Primeiramente, no Círculo, o “Mais-Um” se torna uma posição que qualquer um poderia ocupar – não é conectada, como nas Escolas Lacanianas, com um certo nível de experiência analítica pessoal. Diferentemente do “desejo pela diferença absoluta” (Lacan, 1981: 276) na psicanálise, que pode ser produzido somente através de um processo analítico singular e cuidadoso, a posição do “Mais-Um” no Círculo está facilmente disponível a todos. Porque – e esta é uma segunda transformação do conceito lacaniano – a tarefa do “Mais-Um” não é concebida como provocadora de elaboração através da dissolução do que é comum. Para entender isso, nós devemos apenas lembrar que as Escolas psicanalíticas começam da homogeneidade – por cada participante de um “cartel” ser um psicanalista de orientação teórica similar à de outro, então homogeneidade e consistência são pressupostos pelo grupo – e então, nesses casos, o “Mais-Um” poderia introduzir diferença somente contra a consolidação destas comunalidades. Aqui, porém, o grupo começa da heterogeneidade – o Círculo aceita qualquer um, sem nenhum requerimento particular de idade, bagagem acadêmica ou classe social e a diferença é introduzida precisamente através da pressão dessa heterogeneidade em uma síntese parcial das notas de trabalho coletadas, ou seja, sendo tratada como a interseção ou ponto comum do coletivo. O “Mais-Um” permanece, assim como em Lacan, responsável por manter o sentido comum em cheque, mas não através de ceticismo ou pontuações críticas – as quais ainda seriam intervenções relativas ao conteúdo das notas -, mas por meio de um “curto-circuito” formal de notas de trabalho aparentemente incongruentes, expondo aos membros uma associação coletiva de suas ideias privadas. Por ser um trabalho formal – que não produz uma “diferença absoluta”, mas, em vez disso, uma indiferença comum -, não há experiência pessoal, conhecimento ou desejo requerido para ocupar esse lugar. O desafio para o desejo – a angústia – está mais do lado dos participantes, que têm as fronteiras de seus pensamentos privados removidas sem a justificativa de qualquer tipo de comunhão positiva. De fato, cabe aos membros da célula interpretar qualquer cristalização do “Mais-Um” em um mestre ou professor quando, diante dos efeitos de seu trabalho puramente formal, eles buscam creditar suas consequências a uma causa substancial ou personalizada – assim como as particularidades do participante ocupando essa posição.

Se a posição psicanaliticamente inspirada de “Mais-Um” tem efeitos, sobretudo na metodologia de estudos do Círculo, a posição do Secretário Geral é preocupada especialmente com as condições materiais de existência do grupo, sempre buscando confrontar o espaço do pensamento dentro do coletivo com o esforço coletivo demandado para mantê-lo. A posição do Secretário possui uma longa tradição nas organizações políticas de esquerda, em que é geralmente concebida como uma instância responsável pela supervisão administrativa da instituição. Desta concepção clássica, o Círculo manteve a responsabilidade do Secretário sobre o funcionamento administrativo e sobre os recursos materiais de uma dada célula, bem como o entendimento de que esta é uma posição que deve ser financeiramente remunerada, pois ela constitui uma atividade laboral assim como qualquer outra. Neste sentido, não importa quão pequena seja uma célula do Círculo, a questão de como manter materialmente seu espaço é sempre considerada. Contudo, o Secretário Geral de uma célula não é responsável unicamente por garantir que a base material de existência do grupo se torne objeto do pensamento dos participantes – referindo a eles os problemas de logística, de divisão de tarefas, de pagamento etc. -, ele também garante que cada célula permaneça compatível com quaisquer outras células que existam no Círculo ou que possam vir a existir.

Este papel adicional foi integrado à função de Secretário porque, diferentemente da forma clássica do partido revolucionário, em que uma função como essa foi originalmente concebida, o Círculo não conta com um consenso ou com uma compreensão comum como base de sua coesão. Em vez disso, a confiança na dimensão formal da organização conduz o CEII a assumir uma posição reflexiva em relação a sua estrutura logística e econômica. Mais do que buscar universalidade no nível de um conteúdo determinado, ele almeja infundir universalidade na instituição através de uma indiferença formal, ou seja, testando se a maior parte das regras práticas da organização é capaz de acomodar diferenças de classe, gênero, formação e até mesmo de filiação política. O Secretário Geral é, portanto, responsável por descentralizar debates e discussões conceituais através da intervenção de protocolos que referem o que ocorre em uma reunião às próprias condições formais da célula da reunião. Esta interrupção dá ao coletivo uma chance de tratar sua própria base material – aquilo que deve desaparecer para que um grupo apareça como um organismo naturalmente ligado – como o lugar de transformações e invenções que dizem respeito ao espaço da instituição como tal. Para esse propósito, o Secretário Geral supervisiona a aplicação de uma série de protocolos, controlando a duração dos debates e das leituras coletivas, garantindo que todas as reuniões serão gravadas para acesso posterior pelos membros de outras células e que a bibliografia citada e as referências sejam igualmente disponibilizadas para todos – todos os mecanismos desenvolvidos para garantir que qualquer reunião seja formalmente atravessada pela preocupação com aqueles que não estão presentes. Mais importante ainda, essa posição é responsável por inspecionar a aplicação da metodologia do Círculo para processos deliberativos – que determina que quaisquer decisões locais importantes de uma dada célula devem ser submetidas à votação, incluindo quaisquer membros fora dessa célula que desejem participar de taldeliberação.

É importante notar que tanto a posição de “Mais-Um” quanto a de Secretário não contribuem substancialmente para o estudo do Círculo ou para a orientação coletiva, elas simplesmente dão forma para quaisquer ideias que o coletivo possa incorporar. Por um lado, as notas de trabalho se tornam o material para uma composição associativa que corresponde ao pensamento de ninguém em particular. Por outro lado, qualquer pensamento que, de fato, se consolide através desse processo formal é então “posto à prova” de fornecer uma orientação que possa responder tanto aos aspectos práticos e econômicos do Círculo quanto sobreviver à sua exposição para aqueles que não pensem nisso – tanto os membros atuais como os membros futuros de outras células.

Neste sentido, seja lá o que um determinado membro pense por conta própria, a própria estrutura do Círculo garante que ele será confrontado com dois pensamentos que não foram pensados por ele, mas sim através dele: o produto da livre associação de elaborações particulares após cada reunião, trazido à tona pelo “Mais-Um”, e os impasses concretos da organização coletiva, tornados visíveis pelo Secretário Geral. Tomar o primeiro a fim de se orientar no segundo é uma tarefa cujo sujeito só pode ser definido como o próprio Círculo – mais do que seus membros particulares ou até a soma de todos eles.

(D) Processo

Mesmo que essa apresentação estática da estrutura formal do Círculo já nos habilite a discernir como é possível conceber uma organização concreta na qual  o pensamento ocorre fora dos pensadores que o compõem, é apenas pela consideração dessa estrutura em seu desdobramento dinâmico que a propriedade verdadeiramente essencial de tal dispositivo vem à tona, a saber, a capacidade desta forma de organização de reconhecer o pensamento não tanto em excesso “positivo”, em que o “todo é maior do que a soma de suas partes”, mas, em vez disso, nas falhas do coletivo, naqueles lugares nos quais a maquinaria formal trava ou tropeça.

    A fim de compreender o funcionamento do Círculo, devemos considerar ao menos duas instâncias temporais distintas: a primeira, em que o grupo se reúne com o objetivo de estudar e debater coletivamente, e a segunda, na qual o estudo é aplicado na manutenção e transformação do próprio coletivo. Os resultados desse segundo momento são então inscritos de volta no primeiro, orientando posteriormente a direção das investigações teóricas do Círculo. Estes dois momentos correspondem a duas posições tomadas pelos participantes do Círculo. Na primeira instância, enquanto se preocupam com a apreensão conceitual de certas ideias, os membros participam do Círculo na forma de “pensadores”, mas nenhum pensamento coletivo está ocorrendo – uma vez que a organização coletiva apenas sustenta o espaço para o debate e elaboração plurais. No segundo momento, enquanto aplicam os resultados parciais de sua investigação teórica aos problemas concretos do coletivo, os membros contribuem ao Círculo na forma de um “pensamento”, ainda que ninguém conte nesse ponto como pensador – uma vez que os problemas aqui em jogo são indiferentes a qualquer debate conceitual no qual os participantes estejam envolvidos. É apenas da perspectiva temporal que a disjunção entre a coleção de pensadores, aqueles que compõem o pensamento da organização, e o próprio pensamento coletivo,  que está apenas posteriormente à disposição dos pensadores, se torna aparente.

Por exemplo, em um primeiro momento, um membro do Círculo pode apresentar ao resto do grupo um ponto teórico particular de seu interesse. No entanto, dada a absoluta porosidade do formulário de entrada para novas adesões bastante heterogêneas, a transmissão desse argumento particular pode ficar restrita a apenas alguns membros, talvez aqueles com uma bagagem prévia sobre um determinado tópico. Em um segundo momento – que pode seguir imediatamente o primeiro -, o fracasso da transmissão é tomado como um objeto do pensamento: alguém que não consegue transmitir o que sabe realmente sabe o que acha que faz? O que teria que ser feito diferentemente para que esse argumento ou apresentação particular alcançasse esses membros? Neste ponto, a apresentação teórica não é mais o sinal de que há um pensador na sala, mas sim o indicador de um problema para um tipo diferente de pensamento, que diz respeito tanto ao apresentador quanto aos demais participantes.

Outra situação possível é quando, em um primeiro momento, o grupo decide participar de uma certa atividade prática – como a organização de um evento acadêmico ou visitas regulares aos subúrbios para conversar com trabalhadores. Em um segundo momento, entretanto, as condições econômicas para a participação de todos os membros são colocadas em jogo: como o Círculo deve organizar suas economias para que uma atividade como essa não dependa de uma divisão injusta de trabalho ou não exclua aqueles que não possuem dinheiro para o transporte?

      Em todos esses casos, o que ocorre não é simplesmente a aplicação deficiente das regras do Círculo, mas sim que um formalismo bem construído pode tornar impasses úteis e problemas legíveis, permitindo-nos experimentar novos caminhos a partir deles. Esses problemas podem às vezes ser resolvidos localmente, através de refinamentos na aplicação de um dado princípio, mas em alguns casos eles realmente exigem a reformulação extensiva dos aspectos tanto conceituais quanto práticos do projeto orientador do CEII.

Essa breve visão do dinamismo do Círculo já nos permite enxergar que o que medeia verdadeiramente estes dois momentos, dando-os uma base comum, é de fato o “centro opaco” da organização. O Círculo é unido pela dimensão inútil do coletivo, aqueles aspectos relacionados à mera manutenção do espaço, não sendo de interesse teórico ou de utilidade política. Pela ignorância de seus participantes – não tanto a desigualdade entre o conhecimento dos membros sobre um determinado tópico, mas o fato de que cada um é igualmente ignorante a respeito dos efeitos coletivos dessa desigualdade sobre a própria organização. Pela inexistência da própria ideia do Círculo – pois nenhuma instância separável do coletivo contém sua própria raison d’etre (razão de ser) -, exigindo sempre um passo a mais para encontrar sua função adequada. E pelos sintomas que atrapalham o próprio processo, quando o espaço indeterminado produzido por um conjunto completamente formal de regras sem conteúdo particular passa a ser habitado pelos diferentes fantasmas e tentativas do grupo de dar sentido à estrutura disjuntiva do coletivo. Como nós esperamos ter mostrado, é este momento negativo – que se expressa como inutilidade, ignorância, inexistência e como formações sintomáticas – que oscila verdadeiramente entre um obstáculo e um objeto para o pensamento, e que decide se os participantes estão pensando a organização ou sendo parte do objeto que é praticamente trabalhado através da própria forma coletiva.

§ 7

Na seção anterior, focamos na lógica interna dos mecanismos formais do Círculo, descrevendo em detalhes algumas das regras básicas que definem as propriedades do espaço identificado pela prática do CEII. Nesta seção conclusiva, gostaríamos de explorar uma questão que os membros do Círculo frequentemente colocam a si mesmos, não sem algum desespero: a questão da inutilidade política desta forma.

Como nossa apresentação anterior deixou bastante claro, nenhum dos protocolos definidores do Círculo é direcionado para o exterior, para a transformação do mundo. Tanto o formulário de entrada como as notas de trabalho informam a consistência do coletivo, enquanto o “Mais-Um” e o Secretário Geral colocam essa consistência à prova da heterogeneidade conceitual e econômica – ou seja, testam a genericidade de tal consistência. O mundo externo existe para o Círculo, primeiramente, como uma oportunidade para pensar a universalidade de sua própria forma. Evidentemente, os membros individuais do coletivo estão sob a mesma pressão superegoica de “mudar o mundo” assim como qualquer outro militante político ou simpatizante da esquerda hoje, e, assim, esse programa – circular? – aparentemente autocentrado se torna difícil de justificar, até para eles mesmos.

No entanto, em vez de uma defesa conceitual ou moral, este modo particular de organização mostrou sua utilidade em suas consequências concretas.

O Círculo se engajou em dois processos políticos de duas formas diferentes: através de atividades que exigiam que o Círculo operasse de acordo com a lógica tática atual da esquerda e por meio de atividades que permitiam ao Círculo ou estender ou reproduzir seu próprio funcionamento dentro de organizações e contextos diferentes. Chamemos o primeiro tipo de engajamento de “construtivista” e o segundo de “investigativo”.

Curiosamente, o engajamento construtivo do Círculo geralmente ocorre como uma resposta a demandas, feitas ou por membros particulares do coletivo ou por pessoas visitando uma reunião, por uma “prova” concreta da contribuição política do CEII, seja como uma forma de legitimar sua existência ou como uma boa razão para se juntar ao grupo. Como tentativas de fornecer a outras pessoas essa validação, o Círculo se uniu a protestos de rua, ajudou com campanhas eleitorais em partidos de esquerda (tanto para eleições internas do partido bem como para campanhas municipais e nacionais), produziu e distribuiu panfletos políticos, participou de organizações de base partidárias e ocupações habitacionais. Em todas essas atividades, entretanto, um objetivo dual está sempre em jogo: preencher uma dada tarefa e fazer isso de forma que a identidade política do Círculo seja esclarecida para alguma outra instância ou instituição. Essa dualidade não é acidental, mas sim uma condição implícita de qualquer orientação construtiva: uma tarefa só pode ser considerada funcional para um determinado objetivo se este objetivo for conhecido de antemão e o resultado da tarefa puder ser comparado a esse objetivo antecipado – ou seja, será considerada uma transformação bem-sucedida se ela obtiver o ideal que já era conhecido (ou pelo menos uma versão aproximada dele) antes do engajamento prático. Essa segunda operação, que compara o ideal antecipado e o resultado de uma tarefa, vem com certos pressupostos, sendo o mais importante de todos o de não perturbar os princípios que sustentam a identidade política a qual se está tentando pertencer através do engajamento construtivo. Isso significa que – deixando de lado a questionável contribuição dessas atividades ao “acúmulo de forças” da esquerda – pouco pode ser esperado dessas práticas em termos de novos impasses e problemas para o pensamento político: se os ideais de esquerda em jogo fossem abalados por algum problema ou obstáculo, a conclusão a que se poderia chegar é simplesmente que se tratou de uma atividade fracassada ou de uma atividade que não era de esquerda. Esta disjunção entre validação identificatória e problemas políticos – que segue a lógica da famosa piada lacaniana: “minha noiva nunca está atrasada, porque, se ela se atrasa, ela não é mais minha noiva” – tem como consequência tornar impossível aprender qualquer coisa com os fracassos da esquerda, pois não há indicador formal nesses fracassos que permita à esquerda se reconhecer neles. E, assim, o efeito de tais atividades para o Círculo geralmente é o fato de que não há nada para preservar de tais experiências: tarefas são completadas, com maior ou menor sucesso, sem clareza estratégica adquirida. Apenas, talvez, uma sensação de pertencimento à esquerda é produzida provisoriamente – até a próxima vez que a mesma questão aparecer novamente.

  O outro tipo de atividade – aquela na qual o Círculo busca expandir seu alcance ou replicar sua própria forma – aparece como uma resposta a um chamado ou demanda para ação política, mas, em vez disso, ocorre como um convite à experimentação, isto é, como a curiosidade da organização em testar sua própria universalidade de uma maneira local e concreta. Assim, o que está em jogo aqui não é meramente a transformação de um determinado conteúdo da situação – distribuindo flyers e panfletos onde não havia materialmente nenhum antes -, mas sim a transformação da própria situação.

  Um exemplo desse tipo de prática investigativa é o trabalho do Círculo no Rio de Janeiro, de 2014 a 2016, tentando organizar dentro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) um curso de formação política que atravessaria as divergências políticas radicais e agressivas dentro do próprio PSOL – o que dividiu o partido em duas metades que sabotam uma a outra, elas mesmas divididas em mais de 20 tendências políticas diferentes. Encarregando-se de cuidar da parte logística do curso, o Círculo deslocou o eixo do debate do conteúdo ideal do curso – um ideal que nenhuma das duas tendências do partido concordou – para a questão sobre que forma essa atividade deve assumir a fim de que as divergências entre ideologias políticas, em vez de serem “resolvidas” através de um consenso, possam ser de fato tornadas indiferentes. Orientando reuniões em torno de questões organizacionais e administrativas – por exemplo, que tamanho e escopo um curso como esse precisaria de forma que todas as tendências pudessem dar disciplinas eletivas? -, a atividade do Círculo revelou um inesperado resultado, que não se coadunava com a estrutura identificatória do partido, apesar de claramente ter em vista os maiores interesses do partido. A disjunção entre o ideal do partido e sua forma comum apareceu na resposta sintomática que ele deu ao Círculo, um tipo de resistência comum – geralmente vinda de pares divergentes – de que tal proposta era simplesmente impossível, mesmo que fosse nada mais do que a afirmação mais inocente da unidade explícita do partido. Mesmo sem o apoio da estrutura administrativa do partido ou de suas organizações militantes, o Círculo criou experimentalmente um “curso de verão” unificado de formação política para militantes. A atividade permanece sendo o curso de formação mais extenso oferecido pelo PSOL no Estado do Rio de Janeiro, com mais de uma dúzia de disciplinas dadas pelos militantes de algumas das linhas concorrentes do partido. Ele foi, com certeza, um completo fracasso, na medida em que a falta de experiência do Círculo em lidar com as vicissitudes da política partidária conduziu-o a navegar nas sensibilidades políticas de seus interlocutores sem atenção ou cuidado suficientes a suas contradições, reforçando certas divisões e ficando aquém de tornar o espaço disponível para as tendências políticas mais radicais no partido. Por causa disso, o Círculo foi impotente em distinguir seu engajamento formal com o partido de acusações de que, ao fazê-lo, estava meramente mantendo um ideal oculto acerca do que deveria ser ensinado e realizado no curso proposto. Ou seja, faltou ao CEII o conhecimento sobre como distinguir a atividade investigativa de uma ideia do engajamento construtivista com um ideal que simplesmente não era o da instituição em questão. No entanto, na medida em que este experimento não foi realizado por uma questão de provar a apreensão do próprio ideal do Círculo – de forma que seu fracasso colocaria o esquerdismo “real” do coletivo em questão -, mas sim com o objetivo de verificar se era possível exportar as apostas fundamentais do CEII em novos contextos, esse fracasso foi homogêneo com a organização do Círculo, interno a ela. Como esse experimento compôs a trajetória de um pensamento, ele ficou à disposição de seus membros como um desafio para o pensamento.

Muito já foi escrito desde a década de 1960 para criticar a capacidade do engajamento construtivo de respeitar as visões pluralistas e contraditórias que o marxismo hoje reconhece como uma característica fundamental da composição da classe trabalhadora. Contra as pressuposições unificadoras e idealizadas da militância identificatória, orientada por tarefas, certos marxistas propõem uma abordagem mais espontânea para a atividade militante, sugerindo que hoje nós devemos primeiramente respeitar as diferenças criativas de cada luta local e assim encontrar meios de unificá-las em uma bandeira comum. Em suma, esse modelo estratégico acredita que podemos atualmente deixar de lado o “trabalho de base” porque não só sabemos que não existe uma base homogênea esperando para mudar o mundo de maneira organizada, mas também porque também sabemos que as lutas locais, sendo parte do mesmo “ciclo de lutas” capitalista, já carregam implicitamente dentro delas uma homogeneidade mais profunda, que um projeto comunista pode “explorar” a fim de unificá-las a partir de uma perspectiva global. Do ponto de vista do trabalho que propusemos aqui – e considerando especialmente o tratamento marxista das formas sociais como o pensamento implícito no ser mais imediato dentro de uma dada forma de sociabilidade -, nos parece que tal resposta fracassa em romper com a abordagem construtivista. Ela meramente substitui a posição de que todos nós devemos agir de uma determinada forma a fim de atingir nossos objetivos políticos pela pressuposição de que, por mais que atuemos, esse ideal de unidade será preservado: no caso do PSOL, isso significaria que se poderia esperar que todas as diferentes tendências do partido finalmente desejassem sua própria unidade, algo que poderíamos atestar encontrando um traço comum que atravessasse todas as suas posições diferentes e incongruentes.

Enquanto essa crítica do engajamento político construtivista possui o claro benefício de partir da heterogeneidade em vez de envolver-se apenas com instâncias de consenso previamente estabelecido, ela carrega consigo um preceito fundamental que ainda a liga ao modelo de engajamento que ela critica: a afirmação de que pode existir um propósito comum. O esquema básico da atividade construtivista ou funcional permanece em vigor: uma transformação que parte de uma necessidade unificada ou um conjunto de necessidades parciais, e atinge sua satisfação mais ou menos ideal. O que a aposta do CEII sobre a utilidade política da atividade investigativa atinge é uma ruptura com esse modelo básico de ação, preservando sua vocação original.

       Poderia-se argumentar, depois de tudo, que falhar em organizar um curso unificado de formação política em um partido de esquerda é somente isso, um fracasso inútil. Ou então que visitar trabalhadores nos subúrbios com o objetivo explícito de apenas ouvir o que eles têm para dizer não contribui para a melhora da vida dos trabalhadores em qualquer sentido. E isso tudo é verdade, se visto de um ponto de vista desengajado – ou seja, de um ponto de vista que não é comprometido com a experimentação, constitutiva do projeto do Círculo, de testar se essa organização é capaz de acomodar formalmente qualquer um. De dentro do CEII, no entanto, esses fracassos e atividades inúteis assumem uma qualidade diferente. Tendo separado as tarefas de compor um pensamento e tê-lo à disposição de seus membros – ou seja, tendo separado as transformações que afetam a capacidade do coletivo de receber indiferentemente qualquer um da apreensão intelectual das regras e efeitos dessas transformações -, a verdadeira realização do Círculo é afetar o conjunto de pessoas reais e concretas sobre as quais esse fracasso ou inutilidade recai. E tal extensão não é desprovida de significado quando considerada do ponto de vista da seguinte afirmação: nem todo mundo possui o direito de experimentar o fracasso como parte de uma forma de pensamento.

  A luta de classes não divide simplesmente o mundo entre aqueles que têm e aqueles que não têm – ela também nos divide entre aqueles que possuem a falta do que não possuem e aqueles que são expropriados da própria falta. Os primeiros são aqueles que conseguem subjetivar seu sofrimento e transformar seus sintomas no “material” de investigações psicanalíticas, do pensamento político e científico etc. – em suma, aqueles que têm recursos materiais suficientes para viver, ou seja, para participar em um pensamento genérico. Os últimos são aqueles cujo sofrimento é, na melhor das hipóteses, o material do qual o pensamento dos outros é composto: sociólogos, instituições de caridade generosas, militantes de esquerda, líderes populistas e religiosos – todos estão prontos para mencionar as duras condições da mera sobrevivência, mas aqueles que estão ocupados demais sobrevivendo não podem simplesmente se permitir entrar no “ciclo de lutas” que está supostamente construindo um novo ideal comum.

O Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia está experimentando com uma forma que, apesar de ser porosa à heterogeneidade do mundo, expõe aqueles que se modelam a uma experiência política do pensamento em que os que nela participam podem assumir coletivamente seus próprios fracassos – ou seja, “adquirir uma nova necessidade”, como Marx colocou – e viver por eles. É verdade que atividades políticas concebidas como experimentos localizados sobre a capacidade de um modelo incluir qualquer um podem ser consideradas sem propósito. Mas nossa aposta é que, ao fazê-lo, o Círculo também busca expor qualquer um que deseje se engajar com isso a uma vida que não serve a ninguém.

Por último, é importante notar que o CEII não constitui uma mera aplicação de ideais políticos e filosóficos no campo da prática militante. Mesmo que o projeto tenha começado com referência explícita ao pensamento político contemporâneo, ao ponto de certos autores serem até mesmo citados no projeto do Círculo, a existência concreta de suas diferentes células demandou que o documento fosse reescrito várias vezes, filosofias fossem reconsideradas e pressuposições fossem desafiadas. De fato, o estado atual do Círculo não é de estabilidade, e nosso estudo de caso não representa mais do que um fragmento parcial de uma prática transformativa em andamento. Parece verdadeiramente importante colocar os resultados parciais dessa investigação em escrito –  e uma breve comparação de nossas elaborações aqui com as orientações originais do Círculo seria suficiente para mostrar que tais elaborações acompanharam, mais do que precederam, a aplicação coletiva destas orientações -, mas é crucial também terminar esse breve estudo de caso com algumas considerações finais sobre limitações e tensões atuais com as quais o Círculo luta e que certamente nos conduzirão a um engajamento renovado com nossos pensadores e ideias norteadoras, quiçá a novos experimentos militantes.

O Círculo hoje enfrenta dois grandes impedimentos: o problema da inibição e o problema do tempo. Primeiramente, tornou-se cada vez mais difícil dissipar as fantasias de que, sob a afirmação segundo a qual “qualquer um pode estudar filosofia”, existe uma secreta injunção superegóica de falar de maneira sofisticada ou de entender certas ideias. A própria expansão do Círculo, o fato de que há outras células trabalhando em paralelo às quais um participante não tem acesso direto, parece criar um espaço para qualquer membro que se sinta inseguro acerca de sua ignorância depositar suas fantasias e suposições. Esse problema, com o qual ainda estamos aprendendo a lidar, poderia também nos conduzir a um engajamento renovado com o trabalho de Jacques Rancière, levando-nos a colocar, por exemplo, a questão relativa ao fato  de que, sem um mecanismo suplementar, o “axioma de igualdade” pode se transformar em um imperativo superegóico. Como lidamos com a inibição – que também aparece como resistência agressiva – que emerge onde o Círculo é incapaz de dispersar a suposição de que aqueles que possuem maior formação acadêmica ou experiência política “estão mais por dentro” do que fazer do que aqueles que acabaram de entrar no CEII?

O segundo problema diz respeito à solução econômica que o grupo precisará inventar para lidar com o fato de que a militância toma o tempo de trabalho ou o tempo de descanso dos participantes do Círculo. De certa maneira, o pensamento em questão possui uma forma clássica no pensamento marxista, a saber, que a militância é uma forma de tempo livre, e tempo livre é um tempo cujo “material” é retirado do tempo de consumo da força de trabalho ou do tempo de sua reprodução (descanso), ambos cobertos por um salário e, portanto, sob a regra da remuneração. A solução usual é apelar para uma dimensão voluntarista, argumentando que a militância é sua própria remuneração. O próprio Badiou, em sua teoria da “vida verdadeira”, pode ser considerado a par dessa posição. O obstáculo concreto de organizar reuniões, visitar o subúrbio ou ter tempo livre para ler ou debater, transformou a tensão econômica em um problema passível de consideração filosófica: como se deve tratar a tensão das restrições econômicas da militância? Deveríamos talvez procurar uma teoria leninista revitalizada dos “revolucionários profissionais”? Nenhuma solução hoje aparenta estar apta o suficiente para nos guiar, mas nós estamos engajados atualmente com vários experimentos sobre como pagar militantes pelo tempo que a política tira de nossas vidas, experimentos que, até agora, têm revelado resultados surpreendentes – por exemplo, a solidariedade inesperada entre a classe trabalhadora e o militante trabalhador, que, por causa de seu pagamento, é visto como alguém que também luta para sobreviver e que, por isso, pertence a uma luta comum, em vez de poucos privilegiados que têm tempo livre disponível para se engajar em tais atividades sem qualquer risco.

  1. Vale dizer também que foi em torno dessa época – talvez um pouco mais cedo, em 2014 – que o CEII se ofereceu para organizar a realização de um evento brasileiro do ciclo de conferências internacionais “A ideia do comunismo”, coordenada por Badiou e Zizek e que já havia passado por Londres, Nova Iorque e Berlin àquela altura. O evento acabou não indo à frente. ↩︎

Gabriel Tupinambá

Psicanalista, membro do SPT e Coordenador de Estratégia Social no Instituto Alameda.

Victor Pimentel

Doutorando em Sociologia e Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ) e Professor Substituto do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais (GSO/UFF).

Caeli Corvere

Psicanalista, graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Orienta seus estudos pelas áreas da psicanálise, anarquismo, filosofia política, tradução e epistemologia. Mais uma zero à esquerda.

Posts Similares

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *