Por um euro se compram os cravos nas esquinas. Senhoras pequenininhas como minha vó, torrando ao sol da primavera que vem já desacreditada depois de um inverno imenso. Por um euro se compram os cravos para enfeitar a lapela ou os cabelos naquilo que já é um símbolo e um desfile cívico.

Os ex-combatentes, sob aplausos, tiram as fotos, os bigodes e as boinas da poeira dos armários; os jovens, lindos ornamentados em vermelho, acessam Abril mediados pela moda da época, suas canções de rua e de rádio, o design dos cartazes.

Não é justa a pressa da afirmativa de que isto é melancolia. Será? É possível que, para Portugal, Abril tenha sido apenas… ontem. As forças da direita, por exemplo, tentam enterrar a memória da radicalidade do processo que se estendeu de Abril de 74 até novembro de 75 (pelo menos a nível oficial, pois alguns historiadores mostram como ainda em 86 discussões sobre “como deveria ser o socialismo” nos ambientes de trabalho eram comuns) elogiando justamente essa última data como o “grande momento da normalização democrática” e vendo toda miríade de formas de luta, autogestão e expropriação, como um “caminho para a democracia”; não tão longe, por exemplo, do tratamento que se dá a luta armada no Brasil pelo progressismo, isto é, como uma luta não pelo socialismo, mas por uma abstrata democracia, podendo mesmo ser a democracia representativa.

Falemos do cravo: erguido a símbolo, perde a dimensão particular crítica, inclusive em que nasceu. O mito é o de que uma senhora do povo, vendedora das flores da estação nas ruas de Lisboa, ao perceber a movimentação dos soldados e questioná-los sobre o motivo, teria recebido em resposta algo como um “viemos para derrubar o fascismo”; entusiasmada, entregou-lhes as flores que tinha. Firma-se assim, apesar das contraindicações na noite do golpe por parte do exército acerca da participação popular (recomendava-se a permanência “em casa”), um pacto entre o povo e as forças armadas em que o Belo seria uma dádiva entregue pelos debaixo. Esse ‘cravo universal’ enfeita inclusive o bolso dos casacos dos termidorianos do “novembro”, marcando Abril e seus processos subsequentes como algo a que todos devem referência e posicionamento. Contra ou a favor, a questão está fincada próxima ao peito. Mesmo os ateus lidam com a cruz.

Novamente o cravo: símbolo do pacifismo revolucionário. Já é um lugar-comum na historiografia abordar Abril como um processo interligado às revoluções anti-coloniais ocorridas em África desde pelo menos 1961, tendo em referência o Império português. No caso desses processos de libertação em específico, a violência foi tanta que, proporcionalmente ao tamanho da metrópole, as baixas podem ser comparadas ou maiores ao Vietnã. A crise do império, o alargamento e os custos da burocracia, a transformação de Portugal num país urbano a partir de 1960, são fatores que concorrem para a explicação dos motivos da ruptura. O que se seguiu a partir daí é sempre mais difícil de explicar por seu caráter inovador e criativo. A adesão popular ao golpe feito por um setor do exército, possibilitou, por exemplo, que num país de mais ou menos nove milhões de habitantes, quase sua metade estivesse diariamente mobilizada em assembleias e comissões. Nascida numa época onde o horizonte revolucionário já começava a se desfocar, a Revolução dos Cravos, como uma das últimas do século XX, parece ter incorporado todos os tipos de luta vitoriosas e fracassadas até então: desde a intervenção dos jovens universitários no meio urbano às clássicas revoltas camponesas onde se expropriavam os latifúndios.

Quarta-feira, 24 de abril.

Em pequenas publicidades, das que se encaixam nos cubículos dos pontos de ônibus, diversos fragmentos de poemas foram espalhados pela cidade em comemoração aos 50 anos do 25 de Abril. O design letras vermelhas sob o fundo branco também é evocativo daquilo que no marxismo-leninismo chamava-se de agitação e propaganda. Uma das coisas que sempre me chamou atenção em Portugal é a incorporação de seus melhores artistas pelo Estado através das atribuições de prêmios, medalhas, nomes de escola e a utilização de trechos do melhor da literatura local em discursos políticos. Me surpreendi com uma pequena coleção de livros onde cada primeiro-ministro escolhia “os poemas da sua vida”. O que há de mais clichê, em poesia, do que a metáfora do cravo, por exemplo? Comparado a isso, o 68 parisiense parece sempre mais retórico. Se na Alemanha a filosofia foi a ideologia por excelência, em Portugal, é provável que tenha sido a poesia. No entanto, há grande poesia. Ao lado dos cartazes publicitários, um pequeno papel colado à parede com uma explosão de cores no meio dizia na parte superior “Tentemos”, na inferior, “de novo”. Tentemos de novo.


Ricardo Menezes

Escritor e tradutor. É membro da revista Zero à Esquerda e autor da fotografia que destaca o presente texto.


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