[1]Fonte:  Konstitution und Klassenkampf, Verlag Neue Kritik, p. 298.

I. Marcuse interpreta os princípios emancipatórios de possíveis processos sociais revolucionários nas metrópoles industriais do capitalismo tardio, no sentido de que a base empírica da alienação de si não é mais a experiência mediada da miséria imediata, mas o caráter social contraditório [Widersprüchlichkeit] a ser experimentado conscientemente, a apatia e a integração. No centro da teoria marcuseana da revolução está a questão: como a carência [Bedürfnis] de emancipação pode ser desdobrada sob as condições de uma satisfação repressiva das necessidades materiais elementares? Como as necessidades por um reino da liberdade, da paz e da felicidade podem entrar na consciência das massas e tornar-se fenômeno político, se elas não mais estão ancoradas nas necessidades vitais materiais de eliminar a fome, a urgência material e a miséria física?

II. O fato do trabalho em si mesmo é a forma fenomênica [Erscheinungsform] da exploração na formação social do capitalismo tardio. De acordo com Marcuse, sai de cena a questão sobre trabalho necessário e supérfluo, e com ela a questão sobre repressão necessária e supérflua. Antes, o progresso na automação da maquinaria abre a perspectiva real utópica da abolição do trabalho em geral.

III. Se a emancipação da compulsão ao trabalho está acoplada dessa forma ao progresso técnico, os donos do poder capitalista são compelidos a colocar a democracia, completamente funcionalizada, a serviço da eliminação de tais impulsos emancipatórios. A liquidação da necessidade de emancipação, como sempre ideologicamente desfigurada e que é um comentário à transição do capitalismo concorrencial ao capitalismo monopolista, exige, segundo Marcuse, uma uni-dimensionalização das ideologias na época do capitalismo tardio.

IV. A resposta a isso é a negação do sistema por meio dos grupos marginais privilegiadamente sensíveis ou sub-privilegiadamente afligidos – negação necessariamente abstrata face a um sistema hermeticamente fechado, na figura da razão impotente e do protesto indignado da Grande Recusa.

V. A formação da sociedade no capitalismo tardio derrota, sob o signo da integração, todas as formas de organização institucionalizadas da oposição, da resistência e da revolução. A prova evidente disso é o destino deformado, no que diz respeito às organizações de massas, do partido leninista de quadros na história natural do movimento operário europeu; enquanto negação abstrata disso, Marcuse ensina a renitência emancipatória do indivíduo que se revoluciona em sua estrutura pulsional e do sujeito individual que revoluciona sua vitalidade carente [bedürftig].

Ad. I-IV. Com esses teoremas, Marcuse formulou o puro princípio da razão da luta pela liberação na civilização capitalista tardia: uma ideia da tomada de poder no centro político que, para além da mera socialização dos meios de produção, que dirá da mera estatização, é uma utopia concreta do comunismo, ou seja, da relação sem dominação dos indivíduos solidários e liberados dos limites naturais da divisão do trabalho primeva [urwüchsig überliefert]. Marcuse é o teórico crítico da emancipação. Emancipação é a negação determinada do conceito distorcido pelo marxismo soviético de socialismo, que o fixou na imagem da produção completa e tecnologicamente funcionalizada, controlada e planejada pelo Estado, e burocraticamente racionalizada. Contra isso se opôs o marxismo crítico ocidental com recurso à teoria da revolução do jovem Marx dos Manuscritos de Paris e da Ideologia Alemã, como sempre também deformado de forma antropológica e teológica pelos ideólogos da classe dominante. Para além da elaboração de um conceito de produção reduzido à tecnologia, a luta pelo poder no Estado e a desapropriação dos detentores dos meios de produção não é tratada como objetivo final, mas como condição da possibilidade de uma associação de seres humanos livres. Isto é, o comunismo trata a socialização dos meios de produção como condição para a organização de uma associação [Verkehr] solidária de indivíduos livres. O conceito de emancipação, que Marcuse desenvolve na tradição do marxismo ocidental de Lukács até Merleau-Ponty, passando por Horkheimer, traz à consciência o que as estratégias do reformismo social-democrata e da ortodoxia soviética marxista recalcaram, a redução do progresso emancipatório ao progresso técnico, da revolução social à revolução industrial. Com base na experiência dos movimentos de libertação social-revolucionários do Terceiro Mundo, abre-se de novo tanto uma perspectiva de política e violência intransigentes, como também uma concepção de libertação que vai além da intensificação industrial dos planos quinquenais. Marcuse, como filósofo crítico da emancipação, desenvolve um conceito de libertação que, por sua vez, não quer sujeitar as pessoas às condições objetivas da matéria morta, ou seja, aos meios de produção, mas que, por meio da filosofia da história,  recoloca a função dos meios de produção na revolução: a classe trabalhadora unida nas metrópoles do capital altamente industrializadas não luta pelo poder de dispor sobre a maquinaria enquanto tal, mas pela posse coletiva dos meios de produção enquanto condição das relações livre de dominação entre os homens.

Marcuse libertou o conceito de emancipação de seu ofuscamento histórico-natural, que ele experimentou no destino dos movimentos operários; emancipação significa mais que uma transformação das relações de propriedade que regulam o metabolismo tecnicamente industrializado entre os homens e a natureza, a emancipação significa uma transformação das relações de propriedade, do poder de disposição dos homens sobre as coisas, para liberar as relações entre os seres humanos. Dito filosoficamente: a social-democracia e o marxismo soviético reduziram o esboço de uma forma de associação socialista a uma transformação das relações industriais de propriedade entre os homens e a natureza. A história colocou na ordem do dia o que Marcuse formulou de forma tão filosófica quanto ingênua: a redução do processo de liberação revolucionário à revolução industrial arrasta consigo a miséria da reificação e submete os indivíduos à servidão impessoal dos meios de produção materiais. Emancipação, pelo contrário, quer que os indivíduos organizem os meios de produção industrial para se associarem [verkehren] de modo feliz. O conceito truncado de emancipação visa somente uma relação de propriedade modificada dos homens com os meios de produção coisais, mas não uma mudança da relação de associação dos indivíduos históricos entre si. Emancipação não é primariamente uma modificação da organização da propriedade industrial, mas uma organização transformada da sociedade. Essa circunstância evidentemente revolucionária foi traída de forma estatal pelo reformismo social-democrata e recalcada tanto pela luta anti-imperialista pelo poder da União Soviética, quanto, por meio das alianças políticas e parlamentares, pelo combate defensivo antifascista dos partidos comunistas. Era necessário para um conceito de revolução nas metrópoles que Marcuse dissesse novamente: emancipação não é a libertação das máquinas técnicas, mas a libertação dos seres humanos sociais.

Somente sob o pano de fundo desse princípio de razão evidente pode se tornar visível para as massas dependentes de salário o momento intolerável de opressão nas garantias de segurança pseudo-sociais do Estado autoritário e nas crises do sistema econômico monopolista, keynesianamente reduzidas a recessões. Marcuse exige uma imagem mais clara das possibilidades objetivas de uma sociedade futura: na medida em que é possível abolir o trabalho por meio da automação e se a opressão se tornou supérflua, como mostram a indústria e a democracia do capitalismo tardio, então a negação determinada do sistema explorador, que funciona sem atritos, deve ganhar em determinidade: se os homens não passam fome de forma imediata, então eles têm que poder saber por que eles devem colocar a vida deles em jogo na revolução e por que eles têm mais a perder que seus grilhões. Entretanto, a teoria de Marcuse não cumpre essa exigência de negação determinada, seu chamado à Grande Recusa permanece abstrato, incapaz de desenvolver um princípio de realidade político de regras táticas, máximas estratégicas e imperativos organizativos. Ao mesmo tempo, a Grande Recusa é mais que o lema romanticamente animado da primeira hora; ela é a consequência necessária de um conceito de emancipação que descobre o irresistível poder da ofuscação tecnocrática em todos os traços do espírito objetivo das administrações e das instituições, das burocracias e dos meios de comunicação, das concepções de parceria empresarial e das reformas universitárias autoritárias.

Por outro lado, Marcuse partilha da miséria da teoria crítica e da consciência de si a-histórica dos movimentos revolucionários emergentes; ele é incapaz de formular os critérios de uma Realpolitik revolucionária, de compromissos políticos de alianças, de estabilizações práticas de organização dos movimentos de protesto estudantis e de análises nos termos da teoria das classes. A confusão, que foi também necessária no início, da demonstração abstrata do princípio puro de emancipação com seu desdobramento concreto é parte das doenças infantis do radicalismo de esquerda dos movimentos revolucionários emergentes. Marcuse, como teórico da primeira aparição deste princípio de razão revolucionário, compartilha com os movimentos estudantis libertários [freiheitsbewussten] das metrópoles suas doenças infantis em todos os estágios da formulação de sua teoria. Sua crítica da ideologia da unidimensionalidade deixou os intelectuais indignados na incerteza se a integração da classe trabalhadora seria um destino irrefutável ou uma ilusão superável [aufhebbarer Schein]. Mas quando o SDS [Sozialistischer Deutscher Studentenbund] alemão havia experimentado o isolamento em si mesmo dos movimentos políticos de intelectuais e buscado renovar na prática os princípios da luta de classes proletária, ele entrou em uma contradição que até hoje não está resolvida e que decidirá sobre seu desenvolvimento revolucionário: com sua crítica aos princípios da Grande Recusa, rígidos em termos de emancipação, e vinculados aos grupos marginais, isto é, com a tentativa de introduzir um princípio de realidade político na negação emancipatória do sistema e de levar em conta o antagonismo de classes nas metrópoles, que continua a existir ainda que essencialmente modificado, o SDS correu o risco de se enredar cegamente em uma ortodoxia escamoteada e de recair inconscientemente em uma tradição da luta de classes distorcida. A virada necessária do movimento estudantil em direção ao proletariado, com a tentativa de articular a revolução com as categorias tradicionais da luta de classes, ameaçou ao mesmo tempo asfixiar os princípios da emancipação revolucionária. Dito de outro modo, o movimento estudantil está diante do dilema objetivo: por um lado, seu princípio de razão da emancipação historicamente novo abre mão de critérios específicos de classe e da Realpolitik, por outro, a substância tradicional da luta de classes proletária é cega face aos novos princípios da libertação intransigente. O destino decisivo que o protesto revolucionário nas metrópoles deve conscientemente evitar é que ele asfixie o ímpeto intransigente da negação revolucionária com a introdução de categorias tradicionais da luta de classes e de princípios de realidade táticos, e que ele, por meio da Realpolitik com consciência de classe, esqueça a revolução. A consciência necessariamente anacrônica do movimento de protesto da Alemanha ocidental, no presente estágio, é o revestimento do novo princípio de razão com a velha roupa das categorias tradicionalistas da luta de classes. O conceito de luta de classes, com o qual o movimento lida tão pragmática quanto dogmaticamente, não corresponde nem à realidade das classes nem à necessidade [Notwendigkeit] de emancipação das metrópoles capitalistas altamente industrializadas.


Hans-Jürgen Krahl

foi estudante de filosofia e ativista político alemão. Destacou-se como participante do movimento de protesto estudantil de 1968 como líder. Foi doutorando de Theodor W. Adorno.

Felipe Catalani

Doutorando em Filosofia na USP. É autor de diversos artigos na área de teoria crítica, pensamento social brasileiro e filosofia alemã moderna e contemporânea.

Tradutor

References
1 Fonte:  Konstitution und Klassenkampf, Verlag Neue Kritik, p. 298.

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