Qual é a pertinência de Chico Mendes para nossos dias? Alguém poderia perguntar. Às vésperas do cataclismo climático a que só assistimos, mais se vê reações que ofuscam o problema, seja por um alarmismo desenfreado que paralisa ou por não dar-lhe a preocupação devida. O mesmo poderia ser dito da figura que Chico Mendes se tornou para os nossos dias, – exceto pelo alarmismo, que em verdade, mais parece que Chico se tornou uma peça de decoração – sobretudo após o fecho do dito ciclo progressista cujos efeitos temos visto até os dias de hoje. 

Cabe aqui, então, destrinchar o que vem a ser o “testamento” de Chico Mendes. O livro do qual falamos é um testamento que não era para ser. O texto em questão se trata de uma entrevista organizada por Cândido Grzybowski que a recebeu como encomenda para a produção de um livro sobre movimentos sociais. Realizada pouco antes do assasinato de Chico, aqueles que fizeram parte da entrevista e que também compunham a até então FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) acharam por bem transformá-la em um testamento político. Quanto a esse ponto, mostraremos no decorrer da resenha a maneira a qual essa distorção opera no prefácio de Cândido Grzybowski e é rebatida pela fala escrita de Chico. Poderíamos perguntar: em que pé está e o que podemos fazer com essa alegoria do testamento, haveria algum saldo nesse barracão? O que vem a ser a herança política que Chico, o nosso sangue bom, nos dispõe? 

Diante do desmatamento desenfreado e da ardência das matas em fogo deliberado, o que haveria um seringueiro do Acre a ver com a nossa situação? Que tal usar da fala do nosso então Sr. ministro do meio ambiente1 e perguntar: que diferença faz, quem é Chico Mendes nesse momento? Pelo tom da pergunta, já podemos adiantar que antes de Chico, na verdade somos nós que estamos em frangalhos por não fazermos diferença alguma nesse momento. 

Muita coisa mudou dos dias de Chico Mendes até os nossos, mas se há alguma verdade no slogan recente da “volta de 20 anos em 2″ a que teria passado o Brasil pós golpe, então talvez estejamos mais perto de Chico do que imaginávamos. Talvez, como querem os estudantes, arredondando de 20 para 34 (e conforme os anos forem passando o leitor que se vire para fechar essa conta), daí então teremos o ano 1988, ano do assasínio de Chico, em que, dias antes de sua morte, e já sabendo dela, Chico Mendes nos entrega em formato de entrevista aquilo que fizeram ser seu testamento. 

Nossa situação acaba de piorar. Se começamos com a cínica pergunta do nosso Sr. Ministro, terminamos com um homem da floresta, velado pelos seus companheiros e estes nos dizendo que trouxeram seu testamento. Que haveria de um seringueiro nos deixar? De certo a sua lamparina poronga, com que ilumina a sangria do látex. O que um militante pode nos dar senão os seus problemas – e pior – problemas esses que irremediavelmente são também os nossos? Certamente eles são nossos, mas ainda não sabemos como lidar com essa situação. Para isso então, leitor, o convido para comigo angustiar-se, e com essa lamparina que é essa entrevista de Chico, vermos de perto o que há por trás da derrubada e queima das matas, sua ardência, a sangria dos animais e árvores e como e por quê estamos implicados nisso. 

O que talvez faça a experiência de luta dos povos extrativistas, e aqui leia-se por hora, os seringueiros, junto a Chico Mendes tão particular, seja a maneira da descoberta de que eles estavam lutando pela floresta. Do mesmo modo que aqui temos um testamento atirado às nossas mãos, como dizem os companheiros da FASE, uma verdadeira batata quente, fervendo, ou melhor, queimando em nossas mãos – assim também, narra Chico, que a luta em prol da floresta foi uma descoberta. 

Ora, mas por que diabos um bando de seringueiros haveria de lutar pelas florestas? 

Chico Mendes começa o trabalho como seringueiro em Xapuri aos nove anos de idade, ajudando seu pai. Ao invés de aprender o ABC na escola, diz Chico, ele aprendia a sangrar a seringueira. Não havia escola na região dos seringais pois os patrões não permitiam. A vida do seringueiro era trabalhar o ano todo achando que no final lucraria um saldo, mas no fundo ele estava sempre endividado pelo patrão que aproveitava para enganar os seringueiros sobre os ganhos. 

Foi com a chegada de um estrangeiro, narra Chico, que as coisas no seringal começaram a mudar, ao menos para ele, quando surgiu um homem que, segundo ele, falava de uma maneira diferente e que lhe interessava. Esse homem vinha do movimento revolucionário liderado por Luís Carlos Prestes, refugiado na floresta, haja vista a perseguição e encarceramento de seus membros pela ditadura. A curiosidade de Chico por esse estrangeiro fez com que eles se aproximassem até o ponto no qual esse homem apresentou seu verdadeiro nome. O homem se chamava Luís Fernandes Távora. Para Chico, esse homem lhe foi fundamental por ter-lhe ensinado um pouco de história, mas mais especificamente a ler e a escrever, utilizando, sobretudo os jornais velhos que chegavam com um ou dois meses de atraso em meio a floresta. Com a instrução de Távora, Chico teve contato com a militância e inclusive com o pensamento de Lenin. Da floresta, Chico poderia então ter contato com o que ocorria mundo afora. Távora lhe explicara o que ocorreu em 64 e sobre a encruzilhada em que estavam. Num rádio velho, sintonizava com alguns programas que pegavam em meio a floresta. Diz Chico que numa rádio em português transmitida pela BBC se falava muito bem do ocorrido em 64, enquanto que em outra rádio se ouvia a versão de Moscou condenando a política de

repressão que ocorria no Brasil e denunciando o conluio da CIA no golpe militar. Os ensinamentos de Távola foram cruciais para o ingresso de Chico no movimento sindicalista que ainda era nascente no Acre. Passando por momentos duros da ditadura. Nisso, Távora lhe atribuiu um dever histórico no sentido leninista do termo: disse ele que apesar da derrota em que estavam imersos, o “movimento de libertação” jamais fora eliminado do mundo inteiro, e haveria de surgir de suas raízes que não foram cortadas, assim disse: 

Olhe, onde você vai se firmar é na organização dos primeiros sindicatos que foram criados nesta região. Vão surgir, mais hoje ou mais amanhã, eu não sei, mas é neles que você tem que se firmar. Você não pode deixar de entrar porque eles vão surgir atrelados pelo sistema, pelo Ministério do Trabalho, com todo acompanhamento e fiscalização da ditadura. É lá que você tem que entrar porque, você sabe, Lenin sempre pregou que não se pode deixar de entrar num sindicato porque ele é pelego. 
Você tem que entrar lá para estabelecer suas bases, criar raízes e espalhar sua semente, sua ideologia, para fortalecer o movimento e quem sabe, derrubar aquele esquema, que está ali enraizado. Desta forma, vão surgir os sindicatos totalmente atrelados e é lá que você tem que estar sem se importar com que filosofia, que tipo de política, está orientando aquele sindicato. É claro que são orientações ligadas ao sistema e do qual você tem que saber para estar lá dentro.” 

Tal aconselhamento digno de um verdadeiro revolucionário das antigas, segundo Chico, lhe fora fundamental. Assim Chico Mendes se infiltrou no sindicato tal como um revolucionário a fim de lutar pelos seringueiros. 

Mais tarde ele ocuparia o cargo de vereador em Xapuri pelo MDB, então partido de oposição criado pela ditadura. Ficou patente para ele, no primeiro encontro com a política partidária, aquilo que Tavora lhe dissera: os pelegos, aqueles que eram contra os trabalhadores e sobretudo os seringueiros dividiam cadeiras lado a lado. 

Em 1978, Chico começa a se entrosar com a proposta da esquerda. No PCdoB ele encontrou algumas consonâncias que o fizeram descobrir que ele estava no partido errado, o então MDB. Mais tarde, em 79, com o surgimento do PT, Chico rompe com o PCdoB e passa a aderir ao Partido dos Trabalhadores. Contudo, passou por experiência amarga, disse ele, chegou até a se candidatar para deputado estadual pelo PT, mas perdeu. Chico teve de enfrentar oposições internas, à direita no novo partido. Diz ele que se lembrou das lições de Euclides Távora e, ainda que continuando a militância no PT, passou por foco em sua atuação à frente da direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. 

Mas o que há na atividade de extração da seringueira que poderia possibilitar tal visão de conjunto, a que tinha Chico e os seringueiros, sobre as florestas e a Amazônia? 

No seringal, as famílias que iam ocupando as zonas de mata virgem tinham de comprar sua ocupação, as ditas colocações, do patrão, ao menos até o momento que ele simplesmente as quisesse de volta para derrubar a mata e assentar o gado. Nessa situação nasce a prática dos empates, aquelas famílias que tendo de viver do plantio ou da extração a partir da floresta começaram a requerer que tinham direitos sobre a terra. Assim originou-se o primeiro embate do Seringal do Carmen que repercutiu e espalhou-se como um rastilho de pólvora pelos seringais Acre a fora. 

O empate nasceu, primeiramente, num âmbito de reaver a integridade do direito de posse conforme comenta a antropóloga e ambientalista Mary Allegretti: 

Mas é interessante observar que o empate não tinha sido feito para impedir o desmatamento da floresta, mas sim como um meio de garantir o direito de posse. E foi o que conseguiram: pelo acordo, deixaram suas colocações e foram morar em lotes destinados pelo fazendeiro. 2

Somente depois, os empates teriam como mote a defesa da floresta, como medida que aos olhos dos seringueiros significava também de se haver indenizações. Num determinado momento, os habitantes, já estupefatos com os assédios dos peões a mando dos grandes latifundiários que exigia sua saída imediata – e muitas vezes, sem aviso prévio atirava as pessoas na estrada sem clemência -, acabaram por se juntar para ir conversar com esses donos de terra. Eles davam um jeito de segurar os peões que vinham derrubar as árvores com as brocas, pois, também tinham de levar o sustento para as suas famílias como os seringueiros e nisso eles sabiam como os convencer; afinal todos ali estavam lutando no fundo pela mesma coisa. 

Não sem o uso de armas, que teve também seu episódio, mas os empates tinham um caráter de dependência em relação ao diálogo que é expressivo. A presença do sindicato, de representantes do governo e a polícia o atestam. A ideia era sentar à mesa com o dono de terras e chegar a um acordo. Quando não era possível, se lançavam às barricadas, literalmente, barricadas humanas contra o desmonte das casas e a derrubada da mata. 

Chico nos coloca que os episódios dos embates ocorriam com o ajuntamento das famílias indo de encontro às brigadas dos peões da fazenda, quando não da polícia a mando do latifúndio. Configurado de modo a colocar as mulheres com crianças de colo na frente, a fim de causar comoção, as famílias de seringueiros forçavam para que ocorresse um empate. Como se, reconhecendo que estavam num jogo de forças, fosse preciso que ocorresse um contragolpe que imobilizasse o adversário. 

Muitas vezes, cantando o hino nacional, aqueles povos causavam espanto das autoridades policiais que eram forçadas a ceder, uma cena digna de se aproximar dos haitianos negros enseando a marselhesa, se não fosse o suplício e a evocação de um certo reconhecimento mutuo, um sujeito de direito subjacente, que era evocado a ferro e fogo pelos homens da floresta. 

Os empates só podiam ocorrer numa situação onde havia a confluência de fatores endógenos e exógenos, como mostra Allegretti1. Desde o fato de que algumas áreas de reserva não tinham patrão oficial, até elementos econômicos que faziam com que os seringueiros e coletores estivessem vinculados ao circuito econômico mundial por conta da borracha, sem contar a feliz coincidência entre esta atividade extrativista em específico e preservação das florestas. Segundo Allegretti, esses fatores se acentuam com a situação local da população, pobre e sem assistência política ou social. Daí o resultado de seu insistente pleito por direitos, o fomento à criação de sindicatos e órgãos de representação e regulamentação que os contemplasse. 

O poeta Bruno de Menezes resumiu essa condição seringueira em seu poema O Seringueiro. Visto de longe em sua atividade, envolto em fumaça com que defuma o leite da seringa, o seringueiro é como que um bruxo em meio a floresta. Isolado na sua solidão, ele no entanto assina um contrato digno de um Fausto. O enriquecimento fica a cargo de uma promessa, que no entanto o conforma quanto a sua pobreza. O Gênio da Selva ronda o seringueiro na forma do latifundiário, do dono do barracão cujo assombro açoita e rouba a riqueza proveniente da sangria do leite de ouro da seringueira – e por que não também na figura do então governador do estado do Acre, que nos dizeres de Chico é dotado de duas faces. Uma delas é cosmopolita com que se projeta para o exterior e às grandes capitais brasileiras em busca de investimento, ao passo que a arcaica ele guarda para o próprio estado em que se projeta e faz vista grossa aos desígnios dos grandes especuladores e seringalistas. Uma verdadeira tempestade e frenesi. Movimento pendular que nos aguça o faro. Antes do dedo estrangeiro do mercado, mais parece que a coisa vem de dentro. 

É por essas linhas que Bruno de Menezes vê o seringueiro, ou esse bruxo, já como um pária, não só devido a seu contrato diabólico no seio da floresta com o fluxo do mercado mundial da borracha, mas sobretudo pela bancarrota da borracha brasileira no mercado mundial que já havia se consolidado desde o fim do primeiro ciclo da borracha3. Desse modo, o seringueiro, pária da floresta, estava relegado a reproduzir em prol da própria sobrevivência um comércio local restrito que por isso já atesta a perda do seu auge. Essa dupla condição fazia do seringueiro um cabra do mato mais ou menos antenado quanto às tendências mundiais via mercado a fora. 

Antes disso, Euclides da Cunha em 1905 já dissera que o seringueiro era “o homem que trabalha para escravizar-se”, sujeito esse em grande parte vindo do nordeste que carregou nos ombros o desenvolvimento da cidade de Manaus. Por pouco a produção do látex não passou a venda do café em 1910 durante a era de ouro da borracha4. Daí caberia frisar que o lado aventureiro do empreendimento da borracha, propriamente fáustico, era esse cuja única mágica era a da contabilidade negativa feita por trás da bancada do barracão, não a dos balões de látex formados por sua abolição, mas a bolha econômica que em curto período inflou, trazendo riqueza e regalias para algumas regiões e logo inflara, dando lugar ao modelo de exploração econômica da especulação de terras e da criação de gado. 

Mas fica o fio solto sobre o porquê um seringueiro que perdeu o bonde do comércio da borracha iria vir a enxergar na seringueira o outro lado do seu ser natural, a natureza e as florestas, como quem diz: árvore boa! 

Ocorre que dado a característica específica desse tipo de extrativismo, cuja exigência é não só a vida mas a condição saudável da árvore a ser colhida, como ocorre também no caso das castanheiras, os coletores e seringueiros de algum modo possuem o que poderíamos chamar a grosso modo de mutualismo com a floresta, a título de exemplo, como se fossem sementeiros, quando da condição de um extrativismo doméstico, e portanto, de subsistência, fora da lógica da monocultura da plantation – vale dizer, que antes de designar tal modalidade de extrativismo como benigno, ecológico ou “verde”, cabe-nos antes remontar ao por quê essas atividades em específico foram capazes de mobilizar lutas sociais em prol da terra e da floresta. Nesses casos, os coletores estão em meio a floresta e percorrem vários hectares da estrada de seringa em sua coleta, o que os fez fiscalizadores do que acontecia ao seu redor. Assim funcionam as colocações, clareiras em meio a floresta, em que o seringueiro ou o coletor, extraia aquilo que era de mando do barracão, mas por outro lado plantavam, colhiam árvores frutíferas, extraiam outros recursos para sua subsistência que não era completamente assegurada. Não à toa, confirma-se com os estudos de Mary Allegretti, esses coletores e extratores começarem sua luta no âmbito do território e de sua posse. 

Os seringueiros, já a certa altura de sua luta e expansão experienciaram, assim, as contradições da luta por terra juntamente com as do estado contra eles. Já tendo seu Conselho Nacional dos Seringueiros consolidado em 1985, eles invocavam as leis vigentes e decretos que inviabilizavam o desmatamento e a derrubada de castanheiras e seringueiras de modo a fazer com que a legislação lutasse em favor da desapropriação de terras. O modelo vigente era de parte da terra para a criação de gado e o restante ficava improdutiva destinada à especulação. Eis que, de repente, ergue-se a voz do seringueiro, que estava calada no frenesi do processo de extração: 

Desafiamos o fazendeiro daquela área e o próprio governador a computar a renda anual de 1ha de terra naquela área, comparando a renda de 1ha da área transformada em pasto com a renda de 1ha da mesma área virgem, com castanheiras, seringueiras e outras árvores. E eles não quiseram aceitar esse desafio porque nós iríamos provar que o lucro de 1ha de floresta daria 20 vezes mais valor anual do que os bois ali dentro. 

Vemos que, se incute ao estado a prerrogativa de legislar sobre a terra, seja em favor do latifundiário ou do seringueiro. Com vistas inclusive para o lucro maior quando da posse de uma de suas partes. Os seringueiros sem dúvida possuíam uma proposta para produzir, mas como subjugados por um poder estranho, a tentativa de diálogo por parte dos seringueiros foi frustrada – o que não fez com que o movimento perdesse forças, muito pelo contrário. Inclusive dada escalada do movimento, os latifundiários tiveram de se organizar, gerando a UDR (União dos Ruralistas), que viria a tomar corpo político no chamado até hoje “centrão”, convém ver nela a primeira expressão de deputados militantes quanto a questão do latifúndio. Segundo Chico, com o lançamento da UDR começaram a ser derramadas as primeiras gotas de sangue em Xapuri. 

E assim a regulamentação da posse e do direito ao extrativismo doméstico se apresenta, na história da produção capitalista local, como uma luta em torno dos limites da posse e direito sobre a terra – uma luta entre o conjunto dos latifundiários e o conjunto dos seringueiros, coletores e indígenas. 

Ainda apoiados sobre o mouro Marx poderíamos convir que “tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca das mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força”5. De um lado o direito daqueles que tem por ideal colher o fruto e derrubar a árvore – “desfrutarem e a deixarem destruída” -, o outro quer colher o fruto e precisa da árvore em pé junto do restante da floresta. 

Se aqui cabe uma digressão quanto a nomeação dos que estão em embate, Machado Coelho constatou que até o ano de 1965, não havia ainda sido registrada a palavra “seringalista”6. Tal situação parece um gracejo que alia o latifundiário ao seringueiro, como se o seringueiro estivesse a um passo de chamar o dono de terras por “tio”, um dos traços de nossa cordialidade que afaga a dominação de classe. Ocorre que, Chico nos mostra, longe disso, que a nomeação era lastreada no intento do senhorio direto, os seringueiros entendiam o latifundiário como patrão, o dono, o dententor da mágica que ocorria por trás do defume da seringa. Se é preciso remontar a esse suposto embate entre nomes, cabe recordar e frisar em verdade a falta de interesse na distinção pelos seringalistas que no mais é índice de um lapso daqueles por trás dos barões da borracha, que não obstante o desleixo quanto a nomeação do próprio ofício, pareciam preferir a titulação de senhores, e como fator de distinção de classe, o crivo das obras de arte e da arquitetura barroca com que a título de exemplo, foram construídos o teatro de Manaus como símbolo da riqueza fomentada pela borracha nos idos do século XIX. 

Feita a digressão, voltemos ao embate às vésperas de empatar. Com o fortalecimento da UDR, e o começo do derramamento de sangue, Chico nos recorda das condições dos anos 1976 cujo ambiente sindical aclimatou o terreno para a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros. Antes, era a experiência do sindicato de Brasiléia que contava, sobretudo sob a liderança de Wilson Pinheiro. Chico nos conta do episódio onde Wilson organizou um grupo de 300 seringueiros e trabalhadores com nada mais que facões nas mãos para expulsar pistoleiros e posseiros que ameaçavam a região de Brasiléia. Foi desse movimento que surgiram os empates. Com sucesso, eles tomaram vários rifles desses mesmos jagunços e ao contrário de constituir luta armada, foram entregar as armas ao comando do exército, que ao vê-los agindo assim, o comando esbravejou e os questionou se eles “queriam transformar isto numa nova Cuba”7. Wilson, segundo Chico, teria dito: “não, nós estamos querendo evitar que isso aqui se transforme numa Cuba”. 

A repercussão do acontecimento foi tamanha que os latifundiários se reuniram, até que decidiram mandar matar Wilson Pinheiro. Em junho, os latifundiários disseram, segundo Chico: “nós matamos Wilson Pinheiro e Chico Mendes e acabamos com todo o movimento do Acre”8. Na noite do dia 21 de julho de 1980 Wilson foi morto por pistoleiros na sede do sindicato de Brasiléia. Eis que os trabalhadores, em desespero, segundo diz Chico, deram um prazo de 7 dias para que a justiça fosse feita, do contrário os seringueiros a fariam9. No sétimo dia, os seringueiros foram até a fazenda de um dos mandantes do assassinato de Wilson Pinheiro. Eles percorreram 80 km partindo de Brasiléia. Emboscaram o fazendeiro e o submeteram a um julgamento sumário cuja decisão foi a de que ele seria fuzilado, de fato o foi, com mais de 30 tiros. 

Apesar da queda do movimento, foi a partir desse acontecimento que iniciou a organização em Xapuri que antes mesmo do assassinato de Wilson, já contava com um plano de educação para os seringueiros, coisa que Chico despende bastante empenho em relatar. Tendo esse caldo engrossado, os seringueiros começaram então a se mobilizar fortemente nos empates, como estavamos tratando anteriormente. A origem do empate e seu desenrolar atesta: a questão da violência não saiu de cena, a certa altura da entrevista, Chico nos confessa: 

Minha preocupação hoje é que eles mataram algumas pessoas, mas ainda não atacaram as nossas lideranças. O objetivo deles é começar pelos trabalhadores para depois, nós estamos sabendo, atingir outras lideranças. […] 

Não quero que isso aconteça, que morra alguém. Não interessa que eu morra ou um dos outros companheiros, porque acho que cadáver não resolve nada e porque eu sei que vai virar um inferno, sem dúvida alguma. Eles sabem muito bem disso. Nós não queremos que isso aconteça, vamos lutar para que isto não aconteça, mas se for preciso, tenho certeza, nós temos 100, 150 ou 200 companheiros que podem partir para uma luta organizada e eliminar de uma vez. Mas aí vamos criar um banho de sangue nesse município, chamar a atenção da repressão e uma série de coisas. Não queremos que isso aconteça. Queremos combater a coisa da forma pacífica como estamos fazendo. Conseguimos desbaratar os grupos de assassinos com ordem de prisão. Basta agora que a Justiça assuma os seus compromissos, o seu papel de executar a lei.10

Tanto o ocorrido em Brasiléia em 1976 quanto em 1985 data que remete à fala de Chico quanto ao fortalecimento e consolidação da UDR o atestam: os empates nunca deixaram de ter a violência em seu horizonte, ela estava ali à espreita. Ela era, na verdade, sublimada pelo movimento. Tinha-se conhecimento de estar numa luta de vida ou morte, mas a crença na justiça e na lei estatal faziam com que se deixasse de recorrer a uma outra. Não é à toa que Chico convivia com a ameaça de morte. Tal convivência aparece, em sua entrevista, junto a possibilidade de que sua morte poderia levar a bancarrota do movimento dos seringueiros e de preservação das florestas. 

A um só passo, o diagnóstico de Chico sobre a caterva dos latifundiários permanece atual pelo seguinte: o latifúndio que enxerga na expansão de terras e no açoite dos povos ali residentes como a derradeira maneira de produzir e organizar a riqueza vê na Amazônia seu Gólgota. Daí o seu arrimo para a noção de progresso. O progresso passa a ser a marcha em direção a floresta. Ocorre que, poderíamos pensar, a despeito da noção de progresso que definitivamente não se encontra entre nós, qual concepção mobiliza o avanço vertiginoso em direção à floresta? 

Nisso se junta ao que Chico via sobre os militares e seu desejo de exploração da floresta. Essa luta de morte que persiste até os nossos dias é reflexo desses fantasmas que retornam em novos personagens, como que rindo de nossa suposta existência atual. Eles sabem e querem ver realizado o lugar que nos cabe nesse latifúndio. 

Essa onipresença da morte fez com que o movimento de seringueiros se organizasse em torno de vários quadros e lideranças, repartindo a labareda que desde antes vinha e que a Chico lhe fora entregue. Por isso, diz ele, nem não temer mais a própria morte. Viver é muito perigoso. 

A luta por terra no seringal se transfigurou na luta contra a derrubada da floresta. Com a derrubada das matas e o avanço do latifúndio, os seringueiros perderiam o sustento de suas famílias e os povos indígenas a sua morada. O que fez com que se aliassem. Os povos indígenas que até então tinham conflitos intensos com os extrativistas, – o que certamente caberia um estudo à parte – passam a observar e atuar ativamente junto à movimentação dos seringueiros e castanheiros. Algo diferente estava acontecendo. Chico nos diz de um episódio onde índios e seringueiros sentaram juntos no gabinete do Ministro da Agricultura, espantado ele perguntou: “Como pode acontecer? Os índios e os seringueiros brigam, brigam desde o século passado. Como é que chegam agora juntos?”11 

Com o avanço do movimento dos seringueiros, os indígenas passaram a ter com eles uma troca de concepções profícua. Os seringueiros possuem uma proposta para produzir análoga à dos índios, uma cultura de subsistência? Ailton Krenak disse em entrevista que Chico uma vez lhe perguntou como os povos indígenas tinham propriedade da terra. Krenak disse a ele que como os índios viviam desde antes da colônia naquele território, eles conseguiam barrar os contratos de gaveta feitos em tentativa de roubar a terra. Disso, Chico tirou a ideia das reservas extrativistas. Para além do mero direito à posse de terras, algo que o estado atentava oferecer às famílias de seringueiros de modo a dividi-los em lotes, eles queriam uma terra comum, tal como a dos índios, para que pudessem percorrê-la, tirar o seu sustento e protegê-la. O que significa um avanço, desde os debates quanto à condição de reserva ambiental intocável. Pois era preciso que se protegesse as matas, e os seringueiros assim como os índios, o faziam. Trata-se de reconhecer a condição dinâmica que envolve a floresta que está a todo tempo sendo transformada pelos animais, plantas, protozoários e o humano não é diferente disso. 

Ailton Krenak disse uma vez: “Chico Mendes nasceu na floresta, era branco, mas pensava igual índio”. Os seringueiros e castanheiros tendo perdido o ciclo da borracha não tinham senão o intento de minimamente garantir a segurança do sustento e de viver em conluio com a floresta, uma florestania, como se diz. 

Por toda a entrevista, Chico nos assopra uma fórmula assombrosa, talvez por precisarem as coisas que se dizem necessárias, sobretudo as lutas, de um elemento contingente intrínseco. Segundo Chico, a luta pela floresta foi uma descoberta, assim como algo “tirado da cabeça”, podemos condensar esse movimento em sua célebre frase:

No começo pensei estar lutando para salvar seringueiras. Depois pensei estar lutando para salvar a floresta amazônica. Agora percebo que estou lutando pela humanidade

Chico MENDES

, a que humanidade o nosso sangue bom estaria se referindo? Quem sabe o clube da humanidade, como diz Krenak, em que poucos participam e os demais estão fadados à condição de sub-humanos e humanos zumbis. Poderíamos nos perguntar, afinal, para alguém que a conheceu sob as piores situações, através das balas dos peões do latifúndio, as serras elétricas, quiçá a melhor delas foi a do estranho regressado do Partido Comunista junto de seu rádio e jornais velhos. 

A fim de extrair o sentido desse suposto universalismo à brasileira, temos de nos ater à perspectiva de um seringueiro no meio da floresta. A humanidade, portanto, lhe vem pelo rádio, assim como na forma das serras elétricas e as balas dos peões do latifúndio ou com a chegada de um membro do partido comunista exilado – mas a questão da humanidade a que ele se refere é outra – mais precisamente – por que a humanidade já não pode ser mais assim? 

Se este texto fez com que uma história fosse contada e aberta a novos pensamentos, então temos nosso regresso. Pois quanto ao testamento, sabemos que nada consta de acúmulo, quanto menos saldo nesse barracão. Há de se ver e buscar estudar a história por trás do resultado que vemos hoje onde as reservas extrativistas se mostram em grande parte desmatadas. Isso que Chico talvez soubesse desde sempre que é a possibilidade iminente das lutas e suas conquistas, ou seja, elas se desvanecem. Contudo, fica patente sua experiência e seu percurso que escancara limites e nos coloca a entrever a nossa condição atual. 

Quanto a disputa com relação ao gênero da entrevista feita passar por testamento – o mote deste texto que possibilita o contar história – é um contentamento dizer que o texto feito testamento talvez possa mobilizar, não a sociedade civil, para o qual a forma de luta que ele exprime é materialmente diferente, algo que talvez passou despercebido pelo editor Cândido Grzybowski em seu prefácio. O empate, segundo Cândido, poderia ser estendido para toda sociedade12. Diz ele que “o empate é nossa arma”, retirando o empate das matas de terra firme e transpondo-o para as selvas de pedra, as grandes cidades. Pensando poder substituir a posição da árvore, conforme a lógica do empate e encaixando no seu lugar os direitos civis a serem defendidos, a reforma agrária, se pensa que o solo em que a sociedade se assenta seja o mesmo das matas de terra firme, ao contrário, o da sociedade às vezes se mexe, por vezes se abala, fazendo-nos perder em que pé estamos. 


Referências: 

ALLEGRETTI, Mary. Reservas extrativistas: uma proposta de desenvolvimento para a floresta amazônica. Janeiro, São Paulo em Perspectiva. 1989. 

GAMA, Amariles. Carta ao jovem do futuro: que diferença faz quem é Chico Mendes nesse momento? Manaus, faculdade Boas Novas, 2020. 

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. ed. Boitempo, 2014. CANETTIERI, Thiago. A condição periférica. editora Consequência, 2020. Coelho, Machado. Seringalista, palavra nova. H. Barra, Belém, 1965. 

CRZYBOWSKI, Cândido orgs.O testamento do homem da floresta: Chico Mendes por ele mesmo. FASE, Rio de Janeiro, 1989. 

GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. ed. L&PM, 2010. HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. ed. Companhia das letras, São Paulo, 2015. 

SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. editora Companhia das letras, São Paulo, 2014. WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. Edusp, 1993.

  1. A fala do então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles ocorreu na segunda-feira (11/02/2019) no programa Roda Viva, da TV Cultura. em https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/02/13/roda-viva-chico-mendes-ricardo-salles-irrelevante.htm?cmpid=copiaecola ↩︎
  2. ALLEGRETTI, Mary. A construção social de políticas ambientais: Chico Mendes e o Movimento dos Seringueiros. p. 33 ↩︎
  3. Alguns fatores cruciais propiciaram esse fim para o mercado brasileiro da borracha. Os nacionalistas culpavam a biopirataria de Henry A. Wickman que fugiu para a Inglaterra com milhares das melhores sementes da seringa, o que garantiu o mercado para os ingleses anos depois. Se não fosse só este caso, competem os problemas de ordem ecológica apontados por Warren Dean, tais como o clima que propiciava o fungo da folha da árvore que inviabilizou a organização da seringa no modo da plantation. Ressaltamos, no entanto, as lutas e revoltas por parte da população Acreana que desde seus primórdios esteve em conflitos enérgicos no que diz respeito ao território que seria comprado da Bolívia quanto das que se davam à contrapelo da tentativa de instituir um centro de extração de recursos na região. Citamos por exemplo as lutas que inviabilizavam a construção da Fordlândia, fruto das tentativas frustradas de Henri Ford de racionalizar o trabalho e a produção da seringa. ↩︎
  4. Galeano. As Veias Abertas da América Latina, p. 82. ↩︎
  5. O Capital, livro I. Editora Boitempo, p. 309. ↩︎
  6. No entanto, diz Machado Coelho, ela era “velha na origem”. Até a época de ouro da borracha, seringalista se referia tanto ao dono de seringal quanto a quem sangrava o látex. Mesmo a palavra seringueiro poderia ser referida ao dono de seringal, que também era conhecido como aviador, mas quem a ele servia, em geral, o tomava como patrão. Problema que teria acometido até mesmo a dita literatura proletária da época, na figura de Lauro Palhano, que em sua obra Marupiara fala de um “seringueiro-patrão”. Para Machado Coelho, a palavra deve remontar aos idos de 1930. O primeiro registro na literatura, de sua devida ocorrência e separação se dá no livro de Araújo Lima “Amazônia, a Terra e o Homem” de 1932.  ↩︎
  7. O testamento do homem da floresta: Chico Mendes por ele mesmo. FASE, Rio de Janeiro, 1989 p. 19. ↩︎
  8. ibid. p. 44. ↩︎
  9. No dia 29 de julho de 1980, após o assassinato de Wilson Pinheiro, fora feito um ato em Brasileia, onde participaram várias lideranças sindicais que logo foram enquadradas na Lei de Segurança Nacional, contudo foram absolvidas. Diz-se que um líder sindical, Luís Inácio Lula da Silva, teria dito na ocasião do ato: “Está na hora da onça beber agua”.  ↩︎
  10. O testamento do homem da floresta: Chico Mendes por ele mesmo. FASE, Rio de Janeiro, 1989 p. 39. ↩︎
  11. ibid. p. 26. ↩︎
  12. Cândido Grzybowski nos diz: “nossa tarefa, como nos ensinam os seringueiros liderados por Chico Mendes, é construir uma alternativa, uma proposta capaz de superar esta “transição” da Nova República que nos conduz ao nada (p.15)”. Não obstante, Grzybowski vê no empate uma limitação, por isso reitera que “O Brasil depende de um salto em nossa luta, capaz de desbloquear a situação de empate em que vivemos”. A um só passo, o empate feito modelo de luta para a sociedade brasileira em geral, é posto como a própria limitação da situação brasileira em geral. Essa transposição e, portanto, distorção do sentido dos empates, como se o empate fosse um jogo de forças, daí a correlação com uma guerra de posição a lá Gramsci, escancara os limites do pensamento progressista, que em nossos tempos presenciamos seu descarrilhar. É nesse movimento que o pensamento progressista gira em falso e por inércia é conduzido ao nada. ↩︎

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