“A relevância crescente da tecnologia nas obras de arte não deve instigar a submetê-las ao tipo de razão que suscitou a tecnologia e nela se prolonga.”
Teoria Estética – Theodor Adorno
Se 100 reais fossem dados para cada pensador de origem hegeliana que acerta uma vez ou outra, certamente não estaríamos tão alucinados na busca de uma bolsa de pesquisa para realizar a pós-graduação. Certa vez, Slavoj Žižek1 disse que os videogames, ou a mídia eletrônica interativa, provavelmente será a arte que irá incorporar os elementos de nossa futura sociedade, e renovar nossa subjetividade. Ele pincela a ideia de que existem determinadas formas de obras de arte que encapsulam o zeitgeist de cada época. No século XX, foi o cinema; hoje, ele diz que são as séries de televisão. Para as próximas décadas, será a vez dos videogames. Entretanto, como todo bom relógio parado que acerta de vez em quando, talvez ele tenha perdido a mão no seu alvo: provavelmente, nós já estejamos na era do videogame.
Até mesmo a pessoa mais “desconectada” do mundo dos jogos pode verificar tal situação. Não se percebe mais nenhuma pessoa que não tenha, ao menos, conhecido alguém que já apostou dinheiro online2, ou jogou no “tigrinho” e outros aplicativos do tipo ‘gambling3’ (Jogos de Azar). Desde 2018, quando Temer regulariza4 as apostas deste tipo no Brasil, a crescente presença delas em nosso cotidiano muitas das vezes nos faz esquecer que estamos diante de jogos eletrônicos, e não unicamente de um veículo para lavagem de dinheiro5.
Alargando um pouco este fio, a lógica do mundo dos jogos parece não se render apenas para estes games mais “explícitos”. A lógica do “upgrade”, do “melhoramento”, desde o cogumelo do encanador até a melhor espada do cavaleiro virtual, é frequentemente introduzida nas novas tecnologias. Isso se nota no colega da empresa que fez um curso com algum coach, almejando uma optimização de resultados6; ou mesmo se debruçando sobre as aparentemente infinitas ferramentas de IA7, que cada vez mais se aparecem com “equipamentos” ou “upgrades” das nossas práticas de trabalho antigas8, do que meros aplicativos. Praticamente, todas as áreas do mundo do trabalho já tem alguma ferramenta de IA que “optimiza” seus processos, ou algum “novo curso” para sua área que lhe fora oferecido em um anúncio do Instagram.
O intrigante, na realidade, é que os elementos de entretenimento nestes jogos são curiosamente reorganizados. Não buscam diretamente a prática da ‘diversão’ ou do ganho de ‘prazer’ de forma imediata. Eles também funcionam dentro da dinâmica de trocas na nossa sociedade: oferecendo dinheiro instantâneo, um ganho de performance no trabalho, ou um novo sentido de vitória para o seu time de futebol. Esta reorganização dos desejos, do dinheiro, e da forma de se trabalhar não parece querer apontar apenas para um “Jogo da Vida”, mas que os próprios princípios de design de jogos parecem estar muito mais atrelados à vida social do que se imagina rotineiramente.
O tema da “gamificação” já ganhou seu espaço até mesmo como metodologia educacional9. Seu fundamento não apenas se organiza pelo predicado de tornar a sala de aula “mais interessante” ou “efetiva” com o uso do design de jogos, mas em muitos casos, se formaliza em uma prática onde o próprio jogo é o ensino. Tal princípio já se encontra assustadoramente aplicado no Duolingo10, onde a brincadeira educativa se torna uma pressão para ver números de ofensiva subindo, e a recompensa da colocação no ranking parece mais interessante do que o conhecimento ou aprendizado efetivo da língua.
Nota-se que a lógica dos cursos de coachs e a recente ferramentalização descomunal das “skills” obtidas pelo mundo de aplicativos das IAs, seguem ambas um fio parecido. Estamos mais interessados nas novas ferramentas e os supostos “upgrades” de nossas práticas antigas, que esquecemos de como estas mesmas ferramentas não são elaboradas no vácuo (ou seja: que tais ferramentas não são neutras), mas que elas repercutem problemas sociais explícitos. Esta ausência de neutralidade se torna perceptível ao testar os problemáticos vieses dos bancos de dados das IAs11, ou verificando as contradições dos “cursos de cursos”12.
O fenômeno do “upgrade de habilidades” no mundo do trabalho nos faz relembrar a relação aparentemente “neutra” com ferramentas em jogos eletrônicos, como a do rifle em um jogo de guerra; do jogador de futebol em um simulador, ou da roleta virtual do tigre. As ferramentas virtuais denotam que as escolhas “neutras” dos designs de jogos repetem meticulosamente o ritmo dos nossos valores sociais. Tal aspecto transparece que nos relacionamos com as IAs e os coachs como se fossem um novo personagem desbloqueado ou um novo capítulo no jogo de idiomas. Para além de uma relação causal leviana, esta comparação parece mais sugerir que a lógica de um jogo eletrônico (ou seja, a de ganhar ou perder nele) muito se assemelha com a prática de “sucesso na vida” permeada pelo mundo dos coachs. Soa cada vez mais que nossa relação com as tecnologias repetem, com precisão, a lógica das pessoas que a controlam na indústria13.
Se discutir como jogos eletrônicos podem ser uma forma de arte ou não já se tornou fora de moda, estamos diante da comprovação de como perdemos o fio da discussão. Pensar em jogos mais como um tipo singular de arte interativa14 parece também fora de cogitação, diante de fenômenos tão impactantes e particularmente mercadológicos como os jogos de azar e as apostas online. Se nos perguntarmos como jogos eletrônicos podem ser formativos, artísticos ou até mesmo implementados nas nossas formas de sociedade parece ser uma indagação inocente ou utópica, a motivação se dá exatamente pela forma de desenvolvimento absolutamente mercantilizada do que é um jogo em nossa sociedade. Não iria demorar muito para aparecer um “organizador de rotina” 100% operacionado como um jogo de RPG medieval15. Os jogos não necessitam ser “implementados” na nossa vida social, eles já são testemunhas terríveis da integração meticulosa que nós e eles já fazemos parte. Portanto, todo jogo eletrônico já é terrivelmente social.
O que amplifica esta questão é que, de fato, jogos são quase sempre sobre “ganhar” ou “perder”. A nossa forma de ver e pensar “o que é um jogo” acaba, infelizmente, sempre caindo na ideia de que a maioria dos jogos disponíveis se baseia em competição16. Seja em um cenário medieval ou de guerra moderna; num jogo esportivo ou musical; em um cassino virtual ou na contagem de escanteios para a bet do Brasileirão, o que se pede em cada jogo contemporâneo é a performance bem executada. É mais fácil encontrar um jogo sobre luta ou conflito do que um jogo sobre sentimentos17. A cooperação pode até existir em jogos, mas sempre na medida de competir juntos ou competir contra o outro. A nossa dificuldade de elaborar um jogo que não seja sobre competição, combate ou disputa, está diretamente atrelada à nossa impossibilidade de vê-los como algo além de uma mera reprodução dos piores aspectos do nosso sistema social e econômico.
Não tivemos muito tempo para ver a “internet aberta”18 dos anos 90, pois rapidamente ela já fora explorada como mero recurso mercantilizável. Talvez, também não tivemos muito tempo para ver os jogos eletrônicos serem trabalhados para outras possibilidades de condução sem a sua cooptação imediata ao mercado, fazendo com que a ideia de um “jogo arte” permaneça, assim como nos anos 90, “um sonho”19. Ou pior: a própria forma “não cooptada” da internet e dos jogos eletrônicos pode sequer ter existido. Isso explicaria o motivo de não conseguirmos pensar em um jogo que expresse algo além de conflito. Desde o primeiro registro20 de jogo eletrônico lançado, sua tarefa era extremamente simples: criar um aparelho que competisse com a TV, e fosse interativo. A alternativa encontrada para a “interação” inovadora era a de simular uma partida de tênis.
Não se trata, claro, de crucificar os jogos. Eles nunca foram os responsáveis por uma cultura violenta como ficaram acusados no passado (ou certas vezes, acusados até no presente21). Trata-se muito mais de perceber como os próprios fundamentos de nossas práticas sociais se encontram cada vez mais presentes no mundo dos jogos. Dessa forma, se por algum motivo a realidade virtual se parece muito mais hoje em dia como a virtualidade da realidade, onde o dinheiro, as formas de diversão, e a própria imersão em mais de 50 imagens algoritmicamente orientadas por minuto se tornam parte de uma vida virtualizada, talvez a gamificação se torne mais uma metáfora útil de como a sociedade se tornou tão rápida, que nem sequer sabemos mais o que fazer diante da tela do celular, ou mesmo, da já esquecida crítica da sociedade. Uma hipervelocidade que vira pseudo-atividade diante dos gestos motores do scroll da tela. Uma coisa é certa: se você não possui algum aspecto “gamificado” em suas atividades diárias, alguém bem próximo de você certamente tem.

Victor Hugo Amaro
Graduado em Filosofia pela UFPA e mestre em Filosofia pela mesma instituição. É doutorando em Filosofia pela UFPE. Tem experiência na área de Teoria Crítica, com ênfase em estética, filosofia da psicanálise e crítica cultural em Theodor W. Adorno.
- Slavoj Žižek on Video Games ↩︎
- Antagonismo Midiático contra os Jogos de Apostas no Brasil: Uma Perspectiva Crítica ↩︎
- O que é GAMBLING e por que os Game Developers Brasileiros precisam começar a falar sobre isso ↩︎
- Apostas esportivas são oficialmente legalizadas por Michel Temer ↩︎
- Caso Deolane Bezerra: como bets podem ser usadas para lavagem de dinheiro ↩︎
- Otimização ↩︎
- https://ia-tools.com/ ↩︎
- TCS Global Trend Study – Overview for Marketing & Communications ↩︎
- Gamificação como estratégia de aprendizagem ativa no ensino de Física ↩︎
- O que é filosofia da tecnologia? ↩︎
- Pele negra, alucinações brancas: capitalismo, IA e racialização ↩︎
- Milionário amanhã? Gurus da internet faturam com cursos de criar curso ↩︎
- IA, Machine Learning e games: um mundo para lá de bilionário ↩︎
- Video Games Are Art; They’re Just Bad at It ↩︎
- Habitica – Gamify your life ↩︎
- Non-Combat Gaming – How to Make Social Mechanics Fun – Extra Credits ↩︎
- Loneliness ↩︎
- A social history of the internet ↩︎
- Chris Crawford’s “The Dragon Speech” (STFR) ↩︎
- The tennis for two simulator (tets) ↩︎
- Lula critica jogos de tiro em discurso: “Resulta nessa violência” ↩︎