Na formulação que lhe confere Adorno, a teoria das ideologias da Escola de Frankfurt se inscreve dentro da tradição marxista, mas numa tradição marxista que assume conscientemente o que deve à filosofia clássica alemã. Para Adorno, a crítica das ideologias é, inicialmente, crítica da divisão do trabalho, ou seja, crítica da separação entre o espírito objetivo – a consciência social – e suas condições de produção (tanto materiais como espirituais). Existe falsa consciência, ideologia, porque o espírito humano não domina as condições de sua própria realização, porque pretende se abstrair daquilo que lhe permite se desenvolver e se afirmar tanto diante da natureza quanto na sociedade. A ideologia não é eterna, ela não é uma característica insuperável das relações humanas, mas uma resultante socialmente e historicamente situada nas relações que se estabelecem entre os homens e seu ambiente. A ideologia que conhece seu pleno desabrochar no curso da era burguesa não é propriamente uma mentira, ela é muito mais uma mistura bastante específica do verdadeiro e do falso, de aspirações universalistas e de interesses particularistas, de lucidez e de ofuscamento. Nas afirmações ideológicas, na busca de justificações, há sempre – segundo Adorno – a presença de uma nostalgia do bem, uma espécie de homenagem que o vício presta à virtude. A falsa consciência burguesa não pode prescindir de referências a uma sociedade liberada e renunciar a condenações explícitas da opressão. É por isso que a crítica da ideologia não pode ser inteiramente uma crítica externa, partindo de um ponto de vista totalmente oposto daquele que é colocado em questão, mas deve essencialmente surgir como uma crítica interna, como uma explicação rigorosa da distância que separa o que está posto [postule] do que poderia ser [actualisé], a regra de sua aplicação na prática. A crítica busca o que, no âmago das elaborações da sociedade sobre si mesma e sobre a natureza, corresponde a um uso restritivo da razão, a uma racionalidade que esquece de se interrogar sobre suas próprias implicações e pressupostos. É assim que, aos olhos de Adorno, a crítica do fetichismo da mercadoria que se encontra no livro I do Capital, só se torna significativa se se tornar a pedra angular de uma crítica das trocas de mercadorias como trocas aparentemente iguais, mas substancialmente desiguais. A substituição das coisas às relações sociais na circulação de mercadorias, o trajeto à valorização dos produtos do trabalho só se esclarece verdadeiramente se se relacionar ao universalismo abstrato das normas burguesas e ao particularismo mascarado dos valores os quais se sacrifica no cotidiano. Em outras palavras, a crítica da ideologia não é somente uma crítica dos limites sociais do conhecimento, ela relaciona constantemente os domínios do cognitivo e do normativo para fazer sair as interdependências que os marcam.

Portanto, não é preciso se surpreender se Adorno (depois de Horkheimer) rejeita categoricamente as teorias da ideologia que podem ser encontradas em Weber, Pareto e Mannheim. Na verdade, ele os reprova de pretender a neutralidade axiológica para recair depois no relativismo dos pontos de vista, ignorando com isso a necessária dialética do singular, do particular e do universal, do cognitivo e do normativo. Adorno certamente escreveu em Minima Moralia que o todo é falso e condenou com isso uma certa forma de pensamento da totalidade que, na esteira de Hegel, postula um saber total da sociedade. Mas se ele recusa a hipóstase do saber totalizador, ele não exclui absolutamente uma teoria crítica da sociedade como totalidade negativa, como hipóstase real que se volta contra os indivíduos e os impõe uma universalidade abstrata e bastante reducionista. O pensamento dialético, este que se desprende da ideologia, é precisamente aquele que recusa a se deixar tomar pelas abstrações atemporais e trans-históricas que apenas se limitam a cobrir as relações sociais e ocultam sua especificidade. Decerto, o pensamento dialético não pode fornecer a chave da individualidade ou da sociabilidade e dizer aquilo que é ou o que deve ser no melhor dos mundos, mas ele pode mostrar tudo o que há de intolerável e inaceitável naquilo que parece ser óbvio do ponto de vista das opiniões dominantes. Ele é o pensamento que põe em questão a pretensão da razão em dominar o real por suas próprias virtudes, sem mais se interrogar sobre seus automatismos e sobre seu modo de funcionamento. Ele é o pensamento que não se detém respeitosamente diante da ciência e das metodologias científicas com suas ambições universalistas.

Para Adorno, a formalização científica enquanto purificação da linguagem não pode ser considerada inocente. Ela não só estabelece vínculos entre as proposições, mas também é uma relação entre homens e seu ambiente, uma extensão cognitiva da relação social de produção. Portanto, ela não saberia escapar à crítica da ideologia, muito menos servir de critério de demarcação entre o ideológico e o não ideológico. Em verdade, ela é trespassada de ideologia na medida que as diferentes racionalidades regionais que se exprimem nas disciplinas científicas são totalmente unilaterais e, no entanto, elas se negam enquanto tais. As linguagens científicas destacam um absolutismo lógico que privilegia as relações instrumentais e valoriza o ambiente social e natural em detrimento às outras relações reais ou potenciais (lúdicas, estéticas, etc.). A lógica, assim como as ciências, baseiam-se sobre uma concepção restritiva da experiência e se submetem a uma lógica mais geral de dominação e identificação (negação do não-idêntico à conceituação) que, por sua vez, remete para a produção e à troca dos valores das mercadorias. O racionalismo das ciências é um racionalismo estreito, ele próprio ligado a um desenvolvimento incontrolável das forças produtivas e das tecnologias que elas põem em marcha.

Além disso, segundo Adorno, a sociedade é recoberta por uma espécie de véu tecnológico. Os automatismos da técnica, de uma técnica que serve à dominação e à valorização, impõem-se às relações sociais e interindividuais como uma forma de imperativo categórico, jogando com os efeitos de amplificação e aprofundamento que resultam no domínio do mundo ao redor.  A dominação do homem sobre a natureza assim como a dominação do homem sobre o homem se apresenta em suas manifestações mais aparentes e mais quotidianas conforme os desenvolvimentos da lógica tecnológica, como o domínio de uma segunda natureza à qual se deve obedecer a menos que aceitemos enormes regressões na organização da vida e da sociedade. Além do mais, acrescentam-se aos constrangimentos das trocas de mercadorias, constrangimentos de uma administração de planejamento (planende Verwaltung) dos dados da vida social para um capitalismo cada vez mais organizado. A passagem da “livre concorrência” para a concorrência oligopolista e a intervenção extensiva do Estado fizeram pouco a pouco desaparecer as contradições econômicas e também colocaram em inércia a dialética das forças produtivas e das relações de produção. A sociedade parece se fechar sobre si mesma e se tornar cada vez mais onerosa para os indivíduos através de sua exterioridade todo-poderosa. Isso é particularmente sensível no domínio da cultura em que a mercantilização e a monopolização industrial dos meios do saber e da comunicação (cf. a expansão da indústria cultural) transformam os indivíduos em consumidores passivos de uma pseudocultura de massa, enquanto os descartam de suas trocas simbólicas. O social se torna uma alucinação e ao mesmo tempo uma estrutura cega (Verblendungszusammenhang) em que expira a dialética do singular, do particular e do universal. A luta de classes institucionalizada e corporatizada [corporatisée] não tem mais nenhum escopo subversivo, enquanto os indivíduos reduzidos ao estado de reflexão do universal abstrato (a falsa totalidade social) não são mais que exemplares, sombras mutiladas de si próprios. Como se refere Adorno, não há mais sequer uma ideologia no sentido de que a afirmação ideológica contém tradicionalmente uma relação oculta com o bem social, pois o que a faz funcionar hoje é a produção científica do confinamento cultural. A verdade não se encontra mais na efetividade das relações sociais imediatas; ela torna-se esotérica, inacessível e, em suma, a-social. O auge da ideologia se manifesta como negação da ideologia e dos mecanismos complexos, que ela coloca em ação para produzir a ilusão necessária. Não é mais necessário se enganar e se justificar pelos meandros para os quais nos deixamos arrastar, porque a vida cultural não é mais que pura redundância, repetição infinita das estruturas sociais, reviravolta ininterrupta das ocorrências sociais, cujo significado não é mais necessário questionar. A cultura não é mais que pura reprodução da existência e da sociedade tal qual ela é, tal qual ela nega seu ser outro.

É necessário dizer? Esse desaparecimento-relegação, num suposto nada, do não-idêntico é, para Adorno, a demonstração irrefutável da crise da sociedade burguesa.  Ao negar por todos os mecanismos da socialização dependente a individualidade que a trouxe nas fontes batismais, esta última nega-se a si própria, impele ao absurdo a sua própria lógica da equivalência e do nivelamento. Ela torna impossível a ação coletiva ou mais exatamente a transforma em uma série de reações regressivas, de identificações com o poder e mais particularmente com o poder enquanto agressor. A rigor, não há mais práxis, construção social do sentido, superação transindividual da existência, mas sim estagnação prolongada, precipitação cega em um mundo labiríntico, sucessão de movimentos cujas orientações estão em trompe-l’oeil [1]Trata-se de uma técnica artística cujo objetivo é enganar o observador através de uma ilusão ótica. . A massificação da sociedade torna derrisória toda tentativa coletiva para sair do quadro da reprodução social compulsiva: os indivíduos só se reúnem e se encontram de forma gregária no que tem de mutilado, de redutível aos modos sociais e aos entusiasmos mais destrutivos. No limite, não há prática mais autêntica senão como prática teórica, isolada, até mesmo desesperadamente solitária. Como afirma paradoxalmente Adorno, o indivíduo só se retira da água pelos cabelos renunciando a tudo o que aparentemente lhe fornece um ponto de apoio na sociedade, repudiando obstinadamente qualquer busca social de salvação. O sujeito tornou-se uma mentira, mas o indivíduo sobrevive em tudo o que faz que não coincida com o que é e acredita ser, com suas próprias representações como com os papeis que ele assume, no que é decalagem, distância em relação ao excesso, a positividade do mundo e da ação. A crítica da ideologia, no sentido tradicional do termo, com todas as suas preocupações descobertas de um bem subjacente, deve de fato dar lugar a teorização negativa, a desconstrução de tudo que subjaz teoricamente aos arranjos sociais e aos questionamentos de todos os dispositivos de uma razão satisfeita com ela mesma.

Esses processos de autodestruição das ilusões da ratio não garantem nada por si mesmos, eles somente abrem o caminho para o reconhecimento do objetivo (o que não pode ser reduzido pelo pensamento), em respeito ao não-idêntico, do que ultrapassa um mundo de representações fixas e relações ossificadas. Nesse sentido, não é possível produzir imagens de um outro mundo com os materiais que manipulam comumente os homens e que se trata precisamente de decompor ou de dissolver. Toda possibilidade de uma negação determinada do estado de coisas existente, para retomar a terminologia hegeliana, não é, no entanto, descartada. Na prática artística, o homem mal socializado de hoje (ou o individuo inadaptado) pode encontrar os meios de retornar contra a sociedade o que ela coloca à sua disposição, indo além do mero protesto. Ultrapassando sua própria subjetividade para se submeter as leis imanentes de uma obra de arte que escapa da reprodução social, desfazendo pelo seu próprio fazer o que se faz sem ver o mal, o artista utiliza o surgimento das forças produtivas para fins que transcendem todas as finalidades, socialmente legitimas ou lícitas. A obra de arte, quando renuncia ser a criação de um demiurgo, isto é, uma aquisição mítica, inverte as relações entre natureza e cultura, mais precisamente ela liberta a natureza de uma cultura dominadora, bem como afrouxa o domínio de uma segunda natureza tecnológica que reflete a primeira tão maltratada sobre a cultura.  A abertura da arte, sem dúvida, não está assegurada, a cada passo ladeia o precipício, ou seja, recai na fabricação, nos automatismos das relações sociais de produção e de troca, mas basta que ali tenha virtualidades de (des)fetichização do mundo para que a atividade estética seja justificada. A arte está ameaçada de morte em seus modos de produção e de recepção, mas é nesta ameaça que retira sua força subversiva, sua tensão desesperada para o que não é o dado ou um outro mundo domesticado. Há inegavelmente um elitismo na arte, uma dependência desta em relação às desigualdades sociais e a repartição desigual das oportunidades para escapar da indústria cultural; há também uma impossibilidade em querer considerar sua difusão massiva em uma perspectiva pedagógica. Isto não impede que seu objetivo não seja o gozo aristocrático, a satisfação e o deleite de poucos: a arte autêntica não aceita nada do que existe, nem relações sociais, nem relações com o meio sociocultural, nem opressão e exploração, nem a dilapidação-absorção da natureza.

A teoria de Adorno sobre a ideologia, ou melhor, sobre o confinamento na ideologia-duplicadora das relações sociais conduz, como se vê, à aporias. Parece que é fácil sacudir o peso morto da ideologia, uma vez que esta renunciou qualquer pretensão em dizer a verdade (para decifrar os possíveis significados do mundo) e isto apesar de suas proclamações mais estrondosas, para se agarrar nas relações abertamente funcionais com a existência social. Mas ao mesmo tempo, o poder da ideologia se encontra multiplicado ao infinito na medida em que ele não é mais confrontado com o desejo lancinante do bem e da verdade nos estratos decisivos da sociedade. Bastaria um gesto para levantar o véu tecno-ideológico, mas a mão que poderia o fazer está paralisada como se não tivesse vontade. Os homens são dominados em rede por uma mitologia da eficiência e, fascinados pelos automatismos que produziram e que, por sua vez, os produzem. Tudo o que resta então, é esperar sem esperança, aguardar sem justificativa o dia indeterminado no qual a humanidade se despertará de seu sono hipnótico. Resta dizer que o pior não é sempre certo e que o confinamento definitivo na razão mistificada é uma utopia negativa que há poucas hipóteses de nunca se realizar totalmente. É sem dúvidas o que autoriza o discurso adorniano a se refugiar no presente em uma filosofia da história como regressão, mas a chamar para uma inesperada autocrítica da razão. Para a teoria das ideologias abandona o domínio da sociologia para entrar no da dialética negativa e talvez no da teologia negativa, ou seja, de uma reflexão sobre o caráter inaceitável do sofrimento humano.


Tradução: André Luiz B. Silva
Texto original: http://jeanmarievincent.free.fr/spip.php?article58
arte: Guayasamin- Las Manos de la Protesta, 1968


References
1 Trata-se de uma técnica artística cujo objetivo é enganar o observador através de uma ilusão ótica.

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