“Le 7, gauche et rouge” 1 – Introdução ao livro “A aposta melancólica [Le pari mélancolique]: metamorfoses da política, política das metamorfoses”, de Daniel Bensaïd, 1997.
“Já estamos inseridos nisso.”2
Pascal
“Todo Pensamento emite um Lance de Dados.”3
Mallarmé
Na virada do século XV, o espaço e o tempo são submetidos a uma grande metamorfose. O mundo fechado de uma terra limitada abre-se ao universo infinito. O tempo vertical e fechado da salvação abre-se ao futuro incerto. As perspectivas espaciais e temporais são construídas em comprimento e largura, ganhando em profundidade, para frente e para trás.
O desenvolvimento da tecnologia relojoeira, as equivalências formais das trocas comerciais e o advento do trabalho intercambiável consagraram a tripla abstração moderna do tempo, da moeda e do trabalho. Com Bacon e Galileu, a ciência não tardou a emancipar-se da teologia. De Maquiavel a Espinosa, a política tornou-se, por sua vez, profana.
Na era das grandes revoluções, “o passado já não ilumina o futuro”. A história já não oferece um repertório de exemplos edificantes. À medida que ela se singulariza, exibe-se como Históŕia [se pare d’une majuscule]4 e pretende seguir um fio condutor universal; torna-se enigmática. Quanto mais proclama a certeza dos seus fins anunciados, mais se realiza nas incertezas do presente. Sem transcendência nem mandamentos celestiais, a política opera agora “no campo contingente da história profana”5.
Quando o mundo se torna mundo, os espaços são recortados, as hierarquias e as dominações são territorializadas. A soberania afirma-se como “o estado político deste mundo profano”. No meio da vertigem e do medo, ela exprime a liberdade recém-descoberta de ter de determinar, sem ajuda divina nem garantias quanto ao resultado desta prova interminável, as regras da vida comum. Ter de as inventar na contingência da ação, dos seus fracassos e dos seus sucessos.
A experiência revolucionária faz parte da abertura desse futuro incerto e do despertar prático de uma época para uma consciência de universalidade. Acontecimento por excelência, ela separa um antes de um depois. Ela parte a ordem do tempo em dois. Solidária da aceleração da história e da era do progresso, ela liga memória e expectativa.
14 de Julho, Outubro de 17, Junho de 36, Maio de 68…
Frequentemente, o acontecimento porta nomes de dias ou meses, fundando-o e inaugurando-o. Muitos movimentos revolucionários deram a si próprios o nome da sua data de nascimento. Deste modo, rememoram a chegada de algo esperado mas ainda desconhecido: a irrupção fugaz do justo na ordem injusta da história. Celebram o “sucesso do acontecimento”, o seu primeiro ou, melhor ainda, o seu “zerésimo aniversário”6, como a “estreia” solene e emocionante de uma peça desconhecida. A sua “entrada no tempo”, na emoção de um primeiro encontro7.
Massada, Waterloo, Guernica…
Hiroshima, Auschwitz, Kolyma…
Vukovar, Srebrenica…
Os desastres, por outro lado, têm nomes de lugares, planícies sombrias [morne plaine]8, campos devastados, terras abandonadas. Lugares de desmoronamento, de esmagamento, de sepultamento, “nessas zonas vagas em que toda a realidade se dissolve”: nesses lugares “da crise memorável onde o acontecimento se realizou […] nada terá acontecido senão o lugar”9.
Há também, é claro, Valmy, Verdun, Stalingrado ou Diên Biên Phu. Ao contrário do período revolucionário inicial, a batalha, ainda que vitoriosa, permanece ambígua, como se os vencedores ficassem com estilhaços de morte no coração.
Essa memória de datas e lugares sublinha até que ponto, em seu esforço de estabilização e de perpetuar a soberania, a política se preocupa com o domínio do tempo e do espaço.
Os seus ritmos e contornos são agora contestados pela desregulamentação da temporalidade e pela geopolítica da mundialização. A mutação em curso de formação está provocando uma grande perturbação, uma experiência renovada da duração e da localização. Da pluralidade e do desalinhamento dos espaços em contraste com a extensão homogênea dos planos geométricos. Da pluralidade e da discordância dos tempos contra o fluxo uniforme do progresso.
Os espaços da economia, do direito, da ecologia e da informação sobrepõem-se e se chocam. Os tempos da produção, da circulação e da reprodução estão emaranhados e se contradizem.
Os pontos de referência familiares desaparecem. A capacidade de antecipação enfraquece. A expectativa cansa-se. A esperança ausenta-se. A vontade orientada para os objetivos resigna-se a um presente sem amanhã.
Os parâmetros da antiga “história-e-geografia” fundavam a possibilidade de uma reflexão prospectiva. Eles são agora perturbados pelo desencadear de uma temporalidade que pulveriza a duração, decompõe as causalidades e faz as sequências passado-presente-futuro chocarem-se. O apagamento ou a recomposição dos territórios, os afundamentos e as ressurgências de um solo em gestação, perturbam o lugar da ação política.
Sobrecarregados por ultimatos urgentes e pelos efeitos imprevisíveis da tecnologia, a deliberação democrática está a ser severamente testada. Arrastada pelo turbilhão das sondagens e das notícias apressadas, estará a política em condições de controlar coletivamente uma temporalidade despojada da sua sagrada eternidade, de dominar espaços organizados em territórios? Será que ela ainda permite que o futuro tome corpo no horizonte de longos engajamentos, de vontades pacientes e de fidelidade obstinada ao acontecimento original?
Questão musical por excelência.
Questão de acordes e de harmonias.
A justa relação entre espaços e tempos desafinados.
Iremos examinar estas metamorfoses, estas mudanças de velocidade e de escala num mundo que excede os seus limites e que se retrai à medida que cresce.
Procuraremos em meio a estas reviravoltas o lugar de retorno da política, que corre o risco de se afundar no deslocamento dos territórios e na dissonância dos tempos. Frente aos desvios da técnica, ela mantém a ambição de agarrar aquilo que nos agarra, de dominar o domínio, de controlar os ritmos e o alcance das decisões. Sem alegar, no entanto, que “tudo é político”. Pelo contrário, esforça-se em circunscrever os limites do seu próprio domínio.
O tom correto. A dimensão correta.
O correto distanciamento10 e a atração correta.
O que dizer, então, da soberania, da representação, da relação entre a política no presente e uma ética do distante, entre a soberania territorial e o início de um direito cosmopolítico?
Seguiremos, em particular, três grandes mutações de uma época que está fora de si: a transformação espaço-temporal das formas de guerra, as figuras do estrangeiro e os enigmas da humanidade europeia.
Interrogamo-nos sobre o modo como esta mudança afeta a própria imagem da Revolução, estritamente associada ao sentido de uma marcha apressada para o futuro, seguindo o percurso em forma de flecha do progresso. Significa o fim dos profetas e dos acontecimentos, ou, simplesmente, uma mudança na ideia de revolução no sentido profano, de uma revolução sem maiúscula [Revolução], sem mitos ou fetiches, o horizonte estratégico necessário para nossa liberdade política?
Ao longo de todo esse percurso, estamos a tratar diretamente da política, suas razões e desrazões, seus desafios lançados aos enigmas do espaço e do tempo, em suma, do elogio da política em um mau tempo.
O que nos traz de volta à inevitabilidade da aposta.O que nos traz de volta à inevitabilidade da aposta.
Uma aposta obrigatória, ainda que incerta, no possível.
Porque todo o pensamento “joga dados”. Também na política e, naturalmente, na revolução, que é o momento crítico de escolha e de bifurcação da política moderna. É um momento em que os tempos mudam, em que os dias valem por anos e as horas valem meses.
Esta aposta é inevitavelmente melancólica, uma vez que os dados são sempre lançados a contratempo, sempre tarde demais, sempre cedo demais, quando o necessário e o possível já não estão ou ainda não estão de acordo entre si. E, no entanto, são lançados com a consciência clara de que o sucesso é improvável, com a aceitação do risco de um número errado e de um empate desastroso.
Não há como escapar a esta obrigação imperiosa de apostar, de apostar tudo no jogo, de apostar com absoluta determinação no incerto contra a certeza implacável do pior, que, apesar de tudo, há que tentar afastar.
Um lance de dados melancólico, sem dúvida, mas daquela “melancolia clássica”, resoluta e perseverante, sem ênfases nem disseminação, que é, como diz Péguy, “a mais sã e profunda”11.
Então vamos apostar, em boa companhia.
Pascal e Mallarmé, Blanqui e Péguy.
Vamos apostar no 7. Um 7 vermelho. O 7 de copas.
Novembro de 1847. Londres. O Congresso da Liga dos Comunistas encarregou Marx e Engels de redigir um Manifesto. Regressados a Bruxelas, eles começam a trabalhar nele “sem demora”: “Um espectro ronda a Europa: é o espectro do comunismo […]. Já é tempo de os comunistas exporem publicamente ao mundo inteiro as suas concepções, os seus objectivos e as suas tendências; de se oporem à lenda do espectro com um manifesto do partido”.
25 de outubro de 1917. Petrogrado. Lenin Aos cidadãos da Rússia: “O Governo Provisório é destituído. O poder de Estado passou para as mãos do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado. A causa pela qual o povo lutou: a proposta imediata de uma paz democrática, a abolição do direito de propriedade dos latifundiários, o controle da produção pelos trabalhadores, a criação de um governo de Sovietes, esta causa está assegurada. Viva a revolução dos operários, soldados e camponeses!”
Janeiro de 1937. Moscou. Época dos processos: Bukharin confessa no ano seguinte: “Parece-me provável que cada um de nós, sentados no banco dos réus, tenha uma peculiar consciência dividida, uma fé incompleta em sua ação contra-revolucionária. Não direi que essa consciência era falha, mas estava incompleta. Daí esta espécie de semi-paralisia da vontade, um abrandamento dos reflexos […]. Cria-se uma dupla psicologia […]. Criou-se aquilo a que, na filosofia de Hegel, se chamava uma consciência infeliz […]. Durante três meses, confinei-me nas minhas negações. Depois comprometi-me com a confissão. Porque é que fiz isto? Porque, na prisão, revi todo o meu passado. Porque quando nos perguntamos: ‘Se morreres, por que morrerás?’ – um abismo absolutamente negro aparece de repente, com uma clareza espantosa. Não há nada em nome do qual morrer, se eu quisesse morrer sem admitir os meus erros […]. E foi isso que acabou por me desarmar de vez; que me obrigou a ajoelhar-me diante o Partido e o país.”
Início de 1967. Algures na Bolívia. Ernesto Guevara, conhecido como Che: “Há uma realidade dolorosa: o Vietnã, essa nação que encarna as aspirações e as esperanças de vitória de todo um mundo esquecido, está tragicamente só. Se analisarmos a solidão vietnamita, somos tomados pela angústia deste momento ilógico da humanidade […]. Não importa onde a morte nos surpreenda; ela é bem-vinda desde que o nosso grito de guerra seja ouvido, desde que outra mão se estenda para empunhar as nossas armas, e desde que outros homens se levantem para entoar os cânticos fúnebres entre o crepitar das metralhadoras e os novos gritos de guerra e de vitória”.
Quatro 712, que introduz a esperança e a desilusão.
Há cento e cinquenta anos, o Manifesto do Partido Comunista: o espectro torna-se carne. O sol nascente revela os contornos brumosos de um novo mundo. Há oito décadas, no alto do Palácio de Inverno, o sol de Outubro iluminou o futuro com sua grande promessa. Há sessenta anos, o sangue negro de um sol caído sob o assoalho de Lubianca13. Há trinta anos, morreu um homem solitário, vítima de um “momento ilógico da humanidade” transformado na lógica implacável da derrota.
1997?… O fim de uma época? O fim do jogo? A extinção do Iluminismo? Ou uma ambivalência de signos, um presságio crepuscular de renovação e renascimento.
Na boa lógica – hegeliana -, o início coloca uma questão circular: onde começa uma totalidade se estamos sempre a regressar de maneira implacável ao mesmo ponto de partida? O acontecimento, revolucionário ou amoroso, detém a chave deste enigma do início que se renova sempre.
- O título refere-se ao jogo de azar de roleta [roulette], inspirado na figura histórica e supersticiosa da “Roda da Fortuna”. A roleta é dividida composta pelos números de 0 a 36 e alternados pelas cores preto e vermelho; o número 7 – que tem a fama de ser um número divino – é marcado no jogo pela cor vermelha, cor que também identifica a esquerda política pelo menos desde a Revolução Francesa, os ímpares. Curiosamente, deve-se a ideia de adicionar números em uma roleta ao filósofo Blaise Pascal, que teorizou sobre o conceito de “aposta” no problema clássico da história da filosofia sobre a existência de Deus e é dele a epígrafe que abre essa introdução de Bensaïd (Nota do Tradutor). ↩︎
- “Sim, mas é preciso apostar. É inevitável, estais embarcados nessa.”, ver PASCAL, Blaise. Pensamentos. Edição, apresentação e notas de Louis Lafuma; tradução de Mário Laranjeira; revisão técnica de Franklin Leopoldo e Silva; revisão da tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar; introdução da edição brasileira Franklin Leopoldo e Silva. – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.160. (N.T.) ↩︎
- MALLARMÉ, Stéphane. Um lance de dados. Introdução, organização e tradução de Álvaro Faleiros. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013, p.103 (N.T.). ↩︎
- Aqui Bensaïd quer dizer que há uma pretensão na história (escrita em letra minúscula) em tornar-se História (escrita em letra maiúscula). O termo pare traz o sentido de aparência, como “vestir-se” ou “adornar-se” e o termo majuscule significa “capitalizada”, que é como chamamos a primeira letra de uma palavra que fica “maiúscula”, mas evitamos o termo para não correr o risco de relacionarmos isso a algum movimento do Capital. Optamos pelo “exibir” para não ocorrer o equívoco de significar o tempo no sentido de “aparente” ou “ilusório” (N.T.). ↩︎
- MAIRET, Gérard. Le principe de souveraineté, Histoires et fondements du pouvoir moderne. Paris, Gallimard, coll. “Folio essais”, 1996, p.204. ↩︎
- Em francês, “zéro” (zero) e “héros” (herói) têm uma pronúncia semelhante. Aqui, Bensaïd provavelmente utiliza essa derivação “zéroième” para referir-se ao ano zero de acontecimento que torna-se, em seu aniverśario, a rememoração de seu heroísmo, algo como um neologismo próximo de “zeroísmo” (heroísmo) ou “zerésimo aniversário”. Costuma-se exemplificar esse adjetivo através de Charles Péguy, citado pelo autor em seguida: “A tomada da Bastilha, diz a História, foi verdadeiramente uma celebração, foi (…) já, por assim dizer, o primeiro aniversário da tomada da Bastilha. Ou finalmente o zerésimo aniversário” (PÉGUY. Clio, 1914, p.114). A relação entre zéro e héros vem desde, pelo menos, Arthur Rimbaud que, em seu poema elegíaco das experiências de barricadas na Comuna de Paris – “Canto de guerra parisiense” -, chama as figuras de Thiers e Picard de “dois Éros” (des Eros), brincando com a pronúncia semelhante (des héros ou des zéros), o que levou João Rocha a traduzir o trecho como “heróis zero à esquerda”, in: Caderno de Leituras n.108, Série Rama, Edições Chão da Feira. Belo Horizonte, julho de 2020 (N.T.). ↩︎
- PÉGUY, Charles. Clio. Paris, Gallimard, coll. “Folio essais”, 1996, p.204. ↩︎
- Referência ao verso do poema “A expiação“, de Victor Hugo, que reconstitui as etapas da queda de Napoleão Bonaparte após o Golpe de Estado de 18 Brumário: “Waterloo! Waterloo! Planície sombria!”, disponível em: https://www.poetica.fr/poeme-7187/victor-hugo-expiation/. Morne tem o sentido de “ estado de tristeza”, “aborrecimento”, “sombrio”, “abatido” – talvez pudéssemos aproximar seu sentido do significado de “melancólico” (N.T.). ↩︎
- MALLARMÉ, Stéphane. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Paris, Gallimard, coll. “Poésie”, 1976. ↩︎
- Provavelmente, Bensaïd tem como inspiração o conceito de crítica [kritik] desenvolvida por Walter Benjamin a partir do idealismo alemão, definida por Immanuel Kant como uma delimitação dos limites do conhecimento (cf. KANT, I. Prefácio à primeira edição IN: Crítica da razão pura. Tradução e notas de Fernando Costa Mattos. 4. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.) – segundo a etimologia grega do verbo krinein, há na palavra os sentidos de “separar”, “distinguir” e “delimitar”, o que dará origem aos termos “critério” e “crise” (cf. GAGNEBIN in: BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin; tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. – São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, p.121). A partir disso, para Benjamin, são “loucos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento” (BENJAMIN, W. Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa; revisão técnica de Márcio Selligman-Silva – 6a ed. revista – São Paulo: Brasiliense, 2012, p.56, grifo nosso) (N.T.). ↩︎
- PÉGUY, Charles. Clio. Op. cit., p. 111. ↩︎
- Provavelmente, Bensaïd refere-se a um tipo de aposta específica na roleta, na qual tem-se a aposta de quatro [quatre] fichas para cobrir apenas 7 números, sendo uma aposta arriscada que tem o nome de “Zero”. ↩︎
- Lubianca é o nome popular para a sede da KGB (Komitet Gosudarstveno Bezopasnosti) – o serviço secreto da época da União Soviética – em Moscou (N.T.). ↩︎
Leonardo Silvério
Tradutor, artista, ensaísta e mestrando em Filosofia na USP na área de Estética e Filosofia da Arte. Mais um zero à esquerda.
Ubiratã Tubis
Revisor e mestrando em Estudos do Texto e do Discurso na Unesp de São José do Rio Preto.