A ausência do rigor de análise deslinda à simples reprodução acadêmica (no sentido de ausentar-se da crítica aos problemas que o capitalismo engendra e repõe), bem como a forma diletante da pesquisa social que preserva o mais do mesmo, cada vez mais se agudiza no abismo entre a crítica teórica e a dimensão prática da vida. Neste pequeno texto, minha ideia tem como a intenção de contribuir com a temática de pensar o Brasil, sob a prisma do marxismo, não rebaixando a teoria à militância política imediata no jogo institucional do capitalismo.[1]Agradecimento ao Eduardo Galeno (UESPI) pela revisão textual. Menciono alguns que, durante algumas conversas, puderam colocar posições e sugestões ao longo da redação do presente texto: Mateus … Continue reading

Pensar a formação do país, política, histórica e economicamente, contudo, foi uma tarefa que se dedicaram a vários intérpretes (no séc. XX, em especial): Caio Prado Jr., Chico Oliveira, Nelson Sodré, José Chasin, Florestan Fernandes etc. A lista não é pequena. No caso do ensaísta, crítico literário e sociólogo Roberto Schwarz, cuja obra é uma das mais lidas na crítica literária, suas contribuições na interpretação brasileira são as de um intelectual atento aos desdobramentos históricos e posicionando-se em torno deles, produzindo inúmeros ensaios, versando diversos temas que vão da crítica literária à formação social, da crise do capitalismo às análises político-conjunturais no Brasil.

Em 1973, enquanto residia em Paris, escreve o ensaio intitulado As ideias fora do lugar, publicado no periódico do Cebrap. Embora escrito há quase 50 anos, marca um ponto de discussão para o entendimento do campo ideológico contemporâneo de nosso país. [2]SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In:  As ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Cia das Letras, p. 47-64, 2014. Consultamos também a versão online não paginada em: … Continue reading Ao que nos interessa, todavia, o crítico literário, ao perceber de modo perspicaz que, se antes olhando as contradições sociais pelas lentes dos “de baixo”, depois passou as ver pelas lentes dos “de cima” — as personagens narradoras, ora observadoras, ora partícipes da “compreensão entre classes”, vê em Machado de Assis — especialmente o de Memórias Póstumas de Brás Cubas — essa “reviravolta” do escritor captando as minúcias, os melindres, das classes dominantes da época do Brasil pós-abolição e caminhando à passagem conservadora da monarquia à república.[3]SCHWARZ, Roberto. A reviravolta machadiana. São Paulo, Novos Estudos, n. 69, p. 15 – 34, 2004.

O objetivo aqui não é trazer alguma novidade sobre o ensaio “As ideias fora de lugar”, mas retomar certos pontos da tese geral do texto– e busco destacá-los. O ensaio, ainda que não tenha como pressuposto a “definição” conceitual dos termos que está discutindo (liberalismo e escravidão, por exemplo), tem a tônica de sua exposição dada pelas suas inserções no debate teórico brasileiro a partir de seus “princípios”. Apesar de não ser extenso, há uma densidade de conteúdo que rendeu a notoriedade (e ainda o tem).

Apresentarei, de modo sucinto, alguns dos pontos mais proeminentes acerca das “ideias fora do lugar”. De início, segundo o autor, a justificativa do ensaio era perceber tais deslocamentos ideológicos na matéria concreta do Brasil de época. Nesse contexto, o percurso do autor era de entender a “colocação” do Brasil na geopolítica que se insere:

Procurei ver na gravitação das ideias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação comum, quase uma sensação de que no Brasil as ideias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e de parasitismo no país, e nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual na Europa, revolucionada pelo capital.[4]Idem. As ideias fora do lugar, 2014, p. 63.

Não apenas uma interpretação social à época de Machado de Assis e na formação republicana brasileira, nem apenas se posicionando diante do quadro de regressão “democrática” no Brasil em meados da década de 60, o ensaio contém o modo dialético da compreensão do atraso e o progresso como faces de uma mesma moeda – o capitalismo dependente. Segundo Schwarz, um “país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo”, mostrava-se a “impropriedade” social à ciência econômica frente à escravidão (o trabalho escravo) e o “trabalho livre” (assalariado) que aqui imperava e convivia com a prerrogativa de um pretenso liberalismo no plano das ideias.[5] SCHWARZ, op. cit. p. 45.

Consequentemente, o que tivemos na tessitura social, segundo a interpretação do autor, era uma situação que, incongruente com os “princípios” do ideário burguês europeu do Iluminismo, ajustava-se ao modo particular brasileiro em sua forma retardatária. Aqui entra o argumento de que o servilismo como condição moral de associação de trabalho, e a maneira do arranjo latifundiário e dos laços de proprietários com as “profissões liberais”, deram o tom mais forte da arquitetura nas relações de trabalho brasileira.

Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o homem livre, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários seu acesso à vida e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande.[6]SCHWARZ, op. cit. p. 50-51.

A aparente dissonância ideológica no Brasil, “fora do lugar”, reside na adversativa do autor de que “Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era sua natureza”.[7]SCHWARZ, op. cit. p. 60. Faz-se notório, também, o elemento fundamental que identifica a reprodução das ideias “importadas” constituinte de uma parte indissociável da reprodução de capital, cuja subsunção formal e direta na divisão internacional do trabalho interfere nosso modo de pensar e experenciar a vida social. Nas palavras do autor, na sociedade brasileira ainda persistia uma massa de trabalho escravo, ao passo que o “trabalho livre” também assumia uma forma particular de vínculo “agregado” às famílias do latifúndio, etc. Elemento que, segundo Schwarz, tornaria o liberalismo clássico uma ideologia de “segundo grau”, mas não menos relevante.[8]SCHWARZ, op. cit. “Na Europa, ao atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de sua afirmação histórica a civilização burguesa se postulara a autonomia da pessoa, a … Continue reading

Na argumentação do autor, a investigação do sentido de “formação” brasileira, sobretudo a literatura “já formada” em um país “mal formado”, é tomada como exemplo a partir da obra de Antonio Candido.[9]CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Ouro sobre azul, 2014. Os estudos de Schwarz — ele próprio aluno de Cândido — apontam que a literatura vinculada à obra machadiana permitiu-lhe novas vistas dessa formação e também seus deslocamentos presentes na característica cultural no Brasil. Argumento que, ao observarmos As ideias fora do lugar, esse nexo constitutivo entre “liberalismo” e “escravidão” no Brasil serviu de ponto catalisador às suas pesquisas no âmbito da crítica literária e cultural, sob auspícios da obra de Machado de Assis e as influências da teoria — uspiana — da dependência no Brasil.

De modo que o confronto entre esses princípios tão antagônicos resultava desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia europeia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno.[10]Idem, op. cit. versão online [s/p].

Em suma, no núcleo crítico de Schwarz, referente ao que se tinha, as ideias liberais aparentemente anacrônicas, persistiam suas funcionalidades concomitantes. A defesa do liberalismo no plano das ideias gravitava a exigência da manutenção do privilégio da exploração servil e material. Em outras palavras, a referência da qual a “razão dualista”[11]Ver: OLIVEIRA, Chico. Economia brasileira: crítica da razão dualista. São Paulo: Cebrap, 1972. no Brasil sofria um impasse de sua indeterminação, ainda que essa determinação seria justamente a absorção deste impasse. Era exatamente o debate sobre os sentidos da formação brasileira que, ao compreenderem tal formação, também compreender-se-ia a situação atual de época –a ditadura militar, a derradeira “modernização conservadora” e o subdesenvolvimento perene. Citando Chico de Oliveira, em seu ensaio Crítica da razão dualista, que foi uma fonte de estudos para Schwarz, temos o seguinte:

O “subdesenvolvimento” pareceria a forma própria de ser das economias pré-industriais penetradas pelo capitalismo, em “trânsito”, portanto, para formas mais avançadas e sedimentadas deste; sem embargo, uma tal postulação esquece que o “subdesenvolvimento” é precisamente uma “produção” da expansão do capitalismo.[12]Idem. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2195645/mod_resource/content/0/10%20Cr%C3%ADtica%20a%20Raz%C3%A3o%20Dualista%20a_economia_brasileira.pdf ., p. 8. Acessado em 8 de … Continue reading

Um elemento mais concreto que é importante aqui é o contexto intelectual na época acerca da problemática envolvendo as particularidades da formação econômica no Brasil (e ainda hoje, por exemplo, há aqueles que acreditam no anacronismo desenvolvimentista como suposta tese de “desenvolvimento” no subdesenvolvimento do país). Nesse sentido, a exposição em tela põe ênfase nos principais elementos contidos na tese das “ideias fora do lugar” e a maneira que ela é substrato compreensivo do país. É por isso que o retorno da discussão sobre liberalismo brasileiro se refere a um exercícioque tem como pressuposto reposicionar a própria compreensão do presente, de modo rigoroso, com vistas a direcionar uma práxis consciente de nossos desafios que a materialidade nos coloca.

Outro elemento notável presente no ensaio do autor está vinculado ao pressuposto de que o capitalismo é atroz e solapa quaisquer rupturas sociais progressistas que se efetivem na sua periferia. Em um país em que o coronelismo, os lapsos democráticos redundando-se na “democracia restringida”,[13]MARINI, Rui. O estado de contrainsurgência. Tradução Alex Agra Ramos. Disponível em: https://acervocriticobr.blogspot.com/2018/05/o-estado-de-contrainsurgencia.html . Acessado dia 9 de janeiro de … Continue reading bem como os traços de formação de heranças coloniais vigoraram no Brasil posteriormente, tais como o pessoalismo e o “compadrio” nos negócios privados; a violência policial que agora “substitui” a violência escravagista da vigilância na população periférica e no encarceramento da massa “amorfa” do capitalismo brasileiro (a “vadiagem”); a constituição política do país que manteve toda estrutura jurídica da ditadura; a manutenção das formas precárias e cada vez mais “informais” das “modernas” relações de trabalho (e que dão a “forma” da exploração assalariada), estão a nosso redor e fazem parte do cotidiano consumado.

Relendo o ensaio, uma derradeira questão me sobreveio e aqui exponho em condição do fechamento das linhas que chegaram até o momento. Além da composição histórica na crítica e na interpretação cultural em nosso país, a dimensão estética na obra de Machado de Assis aparece em evidência na significação cultural do Brasil, aderente ao modelo crítico do autor. Por isso, penso que não basta um escritor ou um artista (de modo geral) apenas se “posicionar” ao lado da causa dos trabalhadores e dos oprimidos, na contraofensiva diante da catástrofe do capital.[14]“Lastreado pelo infinito de dureza e degradação que esconjurava, ou seja, a escravidão, de que as duas partes beneficiam e timbram em se diferençar este reconhecimento é de uma conivência sem … Continue reading

Por outro lado, caberia ao escritor, no entanto, fazer de sua produção uma elevação no impulso crítico, sua situação diante do modo produtivo, reaver o estado de coisas na liberdade criativa ligada à literatura — neste caso, da crônica social e na forma satírica da realidade —,  fazendo-o engrandecer e dar forma à sua matéria literária, não à propaganda pura e simples, mas de mostrar a especificidade dela diante da realidade e como ambos são aliados ao proletariado na derrubada revolucionária da forma-capital.

De certo modo, a tese, contida e primeiramente exposta no ensaio de W. Benjamin – O autor como produtor –, que traz consigo uma boa indicação do problema e que foi trabalhada por Schwarz ao se referir aos escritos de Machado de Assis: “Quanto mais ele [o artista ou escritor] for capaz de adequar sua atividade em relação a essa tarefa, mais correta estará a tendência, maior também será, necessariamente, a qualidade técnica de seu trabalho”[15]BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Ensaios sobre Brecht. Tradução Claudia Abeling. 1° edição. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 99.. Nesse feitio, Schwarz comenta que, dado conteúdo social que o escritor possa trabalhar, a partir disso é possível verificar a profundidade crítica expressada no conteúdo literário.[16]SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar, 2014, p. 62.

Assim, para concluir, temos para nós, de algum modo, para as responsabilidades de um filósofo, um cientista social (historiador, sociólogo, etc.), quais sejam, captarmos tais elementos. Em consequência, o ensaio datado do período da ditadura militar, pelo qual direciona-se ao modo como a investigação de Schwarz auxilia, além disso, a captar a especificidade das ideologias no Brasil, seus deslocamentos e entraves no nosso tempo presente. E, portanto, o ensaio de Schwarz sobre a problemática ainda tem seu lugar na análise social brasileira.



References
1 Agradecimento ao Eduardo Galeno (UESPI) pela revisão textual. Menciono alguns que, durante algumas conversas, puderam colocar posições e sugestões ao longo da redação do presente texto: Mateus Dardeau (UFRJ) e José Eduardo Duarte (UESC).
2 SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In:  As ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Cia das Letras, p. 47-64, 2014. Consultamos também a versão online não paginada em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1969951/mod_resource/content/0/Roberto%20Schwarz%20-%20As%20Id%E2%80%9Aias%20Fora%20do%20Lugar.pdf. Acesso em 8 de janeiro de 2022.
3 SCHWARZ, Roberto. A reviravolta machadiana. São Paulo, Novos Estudos, n. 69, p. 15 – 34, 2004.
4 Idem. As ideias fora do lugar, 2014, p. 63.
5 SCHWARZ, op. cit. p. 45.
6 SCHWARZ, op. cit. p. 50-51.
7 SCHWARZ, op. cit. p. 60.
8 SCHWARZ, op. cit. “Na Europa, ao atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de sua afirmação histórica a civilização burguesa se postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho, etc”, p. 52.
9 CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Ouro sobre azul, 2014.
10 Idem, op. cit. versão online [s/p].
11 Ver: OLIVEIRA, Chico. Economia brasileira: crítica da razão dualista. São Paulo: Cebrap, 1972.
12 Idem. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2195645/mod_resource/content/0/10%20Cr%C3%ADtica%20a%20Raz%C3%A3o%20Dualista%20a_economia_brasileira.pdf ., p. 8. Acessado em 8 de janeiro de 2022.
13 MARINI, Rui. O estado de contrainsurgência. Tradução Alex Agra Ramos. Disponível em: https://acervocriticobr.blogspot.com/2018/05/o-estado-de-contrainsurgencia.html . Acessado dia 9 de janeiro de 2022.
14 “Lastreado pelo infinito de dureza e degradação que esconjurava, ou seja, a escravidão, de que as duas partes beneficiam e timbram em se diferençar este reconhecimento é de uma conivência sem fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabulário burguês da igualdade, do mérito, do trabalho, da razão. Machado de Assis será mestre nestes meandros”, [s/p].
15 BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Ensaios sobre Brecht. Tradução Claudia Abeling. 1° edição. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 99.
16 SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar, 2014, p. 62.

Similar Posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *