Estou longe de ter qualquer admiração por Trump, mas as palavras de Joe Biden sobre o “assassino Putin” e sua suposta falta de alma fazem-me quase nostálgico de alguns aspectos dos anos com Trump.
Quando perguntaram a Biden se ele acredita que Putin é um assassino, ele respondeu: “acredito”. Ele também falou sobre como em 2011, enquanto servia como vice-presidente dos Estados Unidos, disse pessoalmente a Putin que Putin não “tem alma”.
“Eu não estava sendo um cara esperto, estava sozinho com ele em seu escritório ”, disse Biden. (O que isso significa? Isso deveria implicar em bravura por ficar sozinho com o “assassino sem alma” Putin?) “Foi assim que aconteceu. Foi quando o presidente [George W.] Bush disse: ‘Eu olhei em seus olhos e vi sua alma.’”
“Eu disse, olhei nos seus olhos e não acho que você tenha uma alma. E ele olhou para trás e disse: ‘nós nos entendemos.’” (O que diabos isso queria dizer? A admissão de Putin de que ele não tem alma? Que nenhum dos dois tem? Ou simplesmente que eles realmente se desprezam?)
A rápida resposta de Putin foi magistral, desejando boa saúde a Biden e convidando-o para um debate público sobre grandes questões existenciais e éticas no Zoom.
As palavras fortes de Biden contrastam fortemente com Trump que, em 2017, quando o apresentador da Fox News Bill O’Reilly chamou Putin de “assassino”, sugeriu que a conduta da América era tão ruim quanto.
“Existem muitos assassinos, nós temos muitos assassinos”, disse Trump. “Você acha que nosso país é tão inocente?” Trump mostrou uma dose de realismo honesto aqui – assim como mostrou moderação a propósito de algumas outras questões de política internacional (ele demitiu John Bolton, que queria uma abordagem mais agressiva ao Irã e à Coreia do Norte – ele claramente queria evitar a guerra). Não se deve ter medo de ir ainda mais longe aqui e argumentar que havia um cerne racional na guerra comercial de Trump contra a China: o grande capital dos EUA tinha um pacto silencioso com a China – sua força de trabalho barata não apenas baixou o preço das commodities nos EUA, também ajudou o grande capital a exercer pressão sobre os trabalhadores estadunidenses, mantendo seus salários baixos e aumentando o desemprego.
A presidência de Biden sinaliza uma política internacional mais intervencionista, uma ameaça maior à paz mundial. As medidas progressivas de Biden (uma postura muito mais forte sobre a pandemia Covid-19, mais ajuda financeira para aqueles que sofrem suas consequências) não devem nos cegar para esse aspecto mais sombrio de sua administração.
Mas retornemos à afirmação de Biden sobre Putin não ter alma. Ela é simplesmente uma projeção. Assassinos monstruosos não são aqueles sem ‘alma’, porque é preciso uma ‘alma’, uma rica vida interior, para produzir fantasias que de alguma forma justificam seus atos terríveis – fantasias como a de inimigos não terem ‘alma’, ou da ‘alma’ deles estar de alguma forma errada. Por trás de todo grande crime político existe um poeta ou um mito religioso. Por exemplo, não há limpeza étnica sem poesia. Por quê? Porque vivemos em uma época que se vê como pós-ideológica. Visto que as grandes causas públicas não têm mais força para mobilizar as pessoas para a violência em massa, uma Causa sagrada mais ampla é necessária, o que faz com que as mesquinhas preocupações individuais sobre matar pareçam triviais. Religião, pertença étnica ou qualidade da “alma” se encaixam perfeitamente neste papel. Claro, existem casos de ateus patológicos que conseguem cometer assassinatos em massa apenas por prazer, mas são raras exceções – a maioria precisa ser anestesiada contra sua sensibilidade elementar ao sofrimento do outro, e para isso, uma Causa sagrada é necessária. Os ideólogos religiosos geralmente afirmam que, sendo verdadeira ou não, a religião leva algumas pessoas más a fazerem algumas coisas boas; a partir da experiência de hoje, devemos nos ater à afirmação de Steve Weinberg de que, embora sem religião, pessoas boas estariam fazendo coisas boas e pessoas ruins coisas ruins, apenas a religião pode fazer pessoas boas fazerem coisas ruins.
Negar que seu inimigo político tem alma é nada menos do que uma regressão ao racismo vulgar que rima com algumas das gafes de Biden – por exemplo, em apoio a Barack Obama, ele disse: “Quer dizer, você tem o primeiro afro-americano mainstream que é articulado, brilhante, limpo e é um cara boa-pinta. Quer dizer, é como num livro de histórias, cara. ” O que isso significa é que, se a presidência de Biden for melhor do que a de Trump, não será por causa de sua alma. Quanto menos ele confiar em sua alma, melhor para todos nós.
Slavoj Žižek
Tradução: Marcus Apolinário
Revisão: Sofia Russi e Clarice Filgueiras
Original: https://www.rt.com/op-ed/519507-slavoj-zizek-biden-putin/