Entrevista por Dennis Schep.
Por que Marx e Lacan?
A questão subjacente é: por que marxismo e psicanálise? Olhando para trás, talvez possamos concluir que a maioria das tentativas anteriores de combinar esses campos de pensamento acabou em fracasso. Depois, houve os anos do pós-modernismo, quando Marx não era mais visto como um pensador econômico central e, em vez disso, se tornou uma curiosidade exótica no pensamento cultural. Freud também não era mais considerado o fundador de uma prática clínica eficiente, e o interesse por seu trabalho limitava-se principalmente a seus escritos culturais. No entanto, não é por acaso que, desde a crise de 2007-2008, ambos voltaram, pois são, essencialmente, pensadores das crises. Eles exploram a ligação causal entre desenvolvimentos críticos na sociedade e a produção do que poderia ser chamado, um tanto inadequadamente, de “vida danificada”.
Marx, por um lado, tematizou o dano subjetivo causado pelo capitalismo de várias maneiras, expondo as consequências devastadoras da precarização, da exploração, da busca pelo lucro, etc. Depois, há a noção político-econômica de homo oeconomicus, que, mais do que uma descrição da natureza humana, é uma ferramenta ideológica para remodelar o sujeito humano de acordo com as fantasias liberais e neoliberais sobre a sociedade, o mercado e o valor. Em um sistema que proclama que “a ganância é boa” – em primeiro lugar, é claro, a ganância do sistema -, o dever de cada indivíduo é constituir-se como um egomaníaco narcisista. Embora essa noção de subjetividade tenha perdido sua eficácia ideológica durante a última crise, o dano que sua aplicação criou permanece.
Freud, por outro lado, parte da subjetividade danificada que chama de neurose, para a qual propôs uma etiologia que não é apenas sexual, como muitas vezes ouvimos, mas também socioeconômica: examina a ligação entre as estruturas sociais e libidinais. Freud raramente falava de capitalismo: em vez disso, ele usava o termo mais neutro “cultura”, mas, ao examinarmos textos como Mal-estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur), podemos facilmente ver que ele fala sobre sociedades capitalistas. Ele entende implicitamente seu trabalho clínico como uma crítica à condição social capitalista. No final das contas, a neurose é um sintoma social.
E Lacan?
Lacan aproximou Marx e Freud de uma forma muito particular, e em um momento crítico, logo após maio de 1968. Sua estratégia ia contra a visão “otimista” de pensadores como Marcuse e Reich, que afirmavam que a psicanálise abriria a porta para a liberação da sexualidade. Em parte, eles tinham razão: certos desenvolvimentos emancipatórios não teriam seguido o curso que seguiram sem a psicanálise. Mas, como muitas outras tentativas de emancipação ou libertação, a revolução sexual falhou. O capitalismo já estava dissolvendo velhas estruturas sociais e relações familiares, substituindo-as por uma nova economia libidinal que, à primeira vista, implicava uma atitude mais liberal em relação à sexualidade. Marcuse estava ciente desse fato quando falou de “dessublimação repressiva”.
Lacan sugeriu algo semelhante, mas não exatamente idêntico, quando descreveu o superego como um imperativo de gozo. A ideia de Lacan era que, no nível do pensamento, mas também em uma estrutura social, há uma conexão estreita entre trabalho e gozo, ou entre gozo e exploração. Isso significa que o sujeito não é tanto aquele que goza, mas, ao contrário, ele é que é “gozado” pelo sistema. Em contraste com a celebração do gozo e da sexualidade, a psicanálise partiu do insight de que as relações de poder são relações sempre libidinais, ou que nossa economia libidinal é um componente essencial de nossa economia social. Isso significa que “nosso” modo subjetivo de gozo nunca é transgressivo ou subversivo em relação ao modo de produção capitalista. A psicanálise registra o caráter insuportável do modo de gozo capitalista.
Assim, pessoas como Freud e Lacan oferecem um corretivo contra certos usos idealizadores da psicanálise, enfatizando que a negatividade já está lá, sempre, e não é algo que limita a pulsão a partir de fora. Marx concorda com esse tipo de argumentação? Ele não acreditava que o capitalismo oprimia as massas e que o comunismo as libertaria?
A psicanálise corrige uma certa visão marxista utópica de uma sociedade sem alienação, onde as relações humanas seriam finalmente autênticas e não corrompidas. Acho que esses elementos são extremamente marginais nos escritos maduros de Marx e aparecem apenas por razões estratégicas. Eles nada têm a ver com o projeto científico de uma crítica da economia política. O Marx maduro não fala mais sobre a abolição da alienação, como fazia em seus manuscritos de 1844. O marxismo e a psicanálise compartilham um insight básico sobre a natureza da subjetividade e das relações humanas: não existem relações sociais sem conflito, contradição, negatividade, luta, etc., assim como não existe pensamento sem o inconsciente. Acho absurdo e ilusório afirmar que o objetivo da política emancipatória é abolir a alienação: não há estado em que o sujeito seja completamente transparente para si mesmo, exceto se formos abolir a linguagem, que não é apenas uma fonte importante de alienação, mas simplesmente é a alienação.
O que procuro é uma noção de alienação que não seja apenas carregada negativamente. Em Marx e Freud, a alienação e o inconsciente funcionam como noções críticas, que comunicam uma lição sobre a natureza do pensamento e das relações humanas. Por exemplo, quando Marx e Engels escrevem que toda a história humana até agora foi uma história de luta de classes, eles não querem dizer que todas as lutas terão fim com a abolição da estrutura de classes da sociedade. Eles apenas dizem que a luta de classes desaparecerá como a luta privilegiada ou abrangente através da qual todos os outros conflitos inter-humanos são canalizados. Algo semelhante pode ser dito sobre a noção psicanalítica de repressão, muitas vezes entendida como uma força estritamente negativa, mas que Freud afirma explicitamente ser uma operação produtiva: ao invés de oprimir algum tipo de sexualidade autêntica, ela constitui e determina uma economia libidinal específica. Para a psicanálise, o objetivo era, de fato, superar a repressão, mas isso não significa que visasse a algum estado autêntico e não corrompido de prazer, sexualidade ou pulsão. Freud deixa claro que a pulsão não é uma força transcendental subsequentemente corrompida por suas várias “vicissitudes”, mas que é inteiramente dependente dessas vicissitudes. Para Freud e Lacan, a sublimação é o processo transformador que muda o objetivo sexual e, assim, transforma um modo de prazer autodestrutivo ou repressivo em um modo mais “suportável”. Mas isso não sugere que, no final do processo, o sujeito esteja em uma relação harmoniosa com o gozo. Se a psicanálise prometesse isso, seria realmente uma farsa.
Podemos extrair esse lado radical da psicanálise, mas em seu livro você também mostra o conservadorismo de Lacan.
Como pessoa, Lacan simpatizava com De Gaulle e, quando se trata de teoria, seu interesse por Marx era certamente limitado. Mas o esforço teórico denotado pelo nome “Lacan” é suscetível a muito mais do que leituras conservadoras. Quando ele disse aos alunos em Vincennes em 1969 que eles eram histéricos ansiando por um novo mestre, podemos descartar suas observações como cinismo, mas acredito que ele queria chamar a atenção para o fato de que esses alunos estavam errados ao pensar a liberação sexual ou o prazer sexual como uma transgressão sistêmica. As relações capitalistas de exploração estão ancoradas em uma economia libidinal estritamente determinada. Lacan propôs a exclamação “Goza!” como a prosopopeia do superego. Seus intérpretes costumam derivar o imperativo do gozo da obra do Marquês de Sade, mas sempre me perguntei se a propaganda da Coca-Cola, essa mercadoria capitalista por excelência, também não desempenhava um papel: “Sade com Coca-Cola” como um suplemento para o ensaio Kant avec Sade. O capitalismo não poderia ter formulado sua própria lição e o impasse de gozo que produz no sujeito de maneira mais eficaz: do lado do sujeito, a busca sem fim por um gozo que nunca está lá, e, do lado do sistema, a extração da mais-valia, esse gozo do sistema, a partir do esforço do sujeito para viver de acordo com o imperativo do gozo.
É interessante contrastar a como aparece o superego na obra de Freud e na de Lacan: em Freud, o superego é a sede de exigências proibitivas, a proibição de gozo, mais do que a injunção de gozar. Pode-se explicar esse contraste observando a transformação da sociedade industrial puritana do final do século XIX em capitalismo liberal orientado para o consumidor no século XX. É claro que isso não significa que nos livramos do aspecto proibitivo. O superego proibitivo está novamente em ascensão desde a última crise, e o que ele exige implacavelmente de todos os súditos é o sacrifício incondicional pela perpetuação do sistema. Essa é uma lição possível a tirar da crise da dívida europeia.
Como pessoa, Lacan não era marxista. Marx era um lacaniano?
Ele era tão lacaniano quanto Lacan era marxista. Mas eu acredito que tanto a crítica de Marx à economia política quanto a psicanálise freudo-lacaniana só obtêm plenamente seu alcance crítico sob condições sociais impulsionadas pela crise. Portanto, não é por acaso que hoje existe um interesse renovado na ligação entre a psicanálise e o marxismo. Como indivíduos, Lacan, o burguês francês, e Marx, o proletário, não poderiam estar mais distantes, mas não creio que isso deva nos impedir de pensar na aliança entre suas obras. Ambos expõem a “negatividade compartilhada” – para usar um termo bem pontuado proposto por meus colegas do projeto Klassensprachen – que vincula todos os sujeitos. A “obsessão” psicanalítica com a problemática do gozo é essencial para o projeto de uma crítica da economia política, porque mostra que o sistema nos mantém mais fortes em “nosso” modo de gozo.
Podemos, então, usar Lacan contra certas leituras idealizadoras de Marx, e podemos usar Marx para politizar a psicanálise?
Exatamente. Entre lacanianos, encontramos muitos “reacionários”, provavelmente porque lutam para manter o status privilegiado de que a psicanálise desfrutou no passado, especialmente na França. Mas a psicanálise foi ameaçada ao longo de sua história. Nos Estados Unidos, foi instrumentalizada como uma ferramenta para reintegrar as pessoas à estrutura social existente, mas foi abandonada assim que técnicas mais “eficientes” foram desenvolvidas. Apesar de tudo que deu errado, a psicanálise, pelo menos em seu aspecto freudo-lacaniano, representa um capítulo importante na história da crítica e continua sendo um campo de batalha que precisa ser recuperado repetidamente para fins emancipatórios. Freud desmistificou o papel da cultura, e particularmente do capitalismo, na produção de psicopatologias: depois da psicanálise, não se pode mais fingir que existe uma divisão clara entre as estruturas individuais e sociais (o que certamente não impede que se ignore essa lição). Se existe uma coisa característica dos defensores do capitalismo é sua tendência a “individualizar os problemas”: se você experimenta depressão, pânico ou ansiedade induzida pela precariedade, o problema é seu. Para a psicanálise, ao contrário, não existem problemas privados.
Eu estava esperando que você abordasse essa questão, pois vai direto a um dos temas centrais do seu livro: o do sujeito, que precisamente não é um indivíduo. Você polemiza contra a política de identidade ou qualquer tipo de política que seria baseada em interesses particulares.
Sim, e essa polêmica gira em torno da ilusão de que existe algo como um interesse privado, à qual eu oporia a ideia de “negatividade compartilhada” e o interesse político emancipatório que eu acho que se pode associar a ela. Mesmo Adam Smith, que ainda é celebrado entre liberais e neoliberais como o teórico do interesse privado, mostrou que há uma continuidade direta e altamente problemática entre os interesses aparentemente privados dos indivíduos e os interesses estruturais do sistema capitalista.
Para voltar ao que falamos antes, o capitalismo não inventou a alienação ou o inconsciente, mas inventou uma maneira eficiente de explorá-los. O objetivo da política emancipatória seria a gestão coletiva da alienação, em vez de sua abolição. O objetivo da psicanálise não é aspirar a algum estado ideal fictício, no qual o sujeito se livraria de todos os seus sintomas ou se tornaria o senhor de seu inconsciente. O objetivo é permitir que o analisando trabalhe contra a resistência do sistema e contra os efeitos danosos que essa resistência introduz em nossas vidas. Quando a psicanálise insiste que não há sujeito sem sintoma, ela não está glorificando a doença ou denunciando toda esperança de mudança como ilusória. Há um claro imperativo de cura na psicanálise, mas isso não equivale a algum tipo de normalidade ficcional. Pelo contrário: a psicanálise desconstrói a ideia de “ego normal” e se esforça para criar as condições para que o sujeito exista de uma forma mais ou menos suportável. O capitalismo não faz isso: ele explora a doença e, em última análise, quer que adoeçamos, ao mesmo tempo que nos bombardeia com ficções de normalidade, sendo o homo oeconomicus apenas uma ficção do que a “subjetividade normal” deve ser.
Portanto, qualquer luta anticapitalista não deve estar enraizada no interesse individual, e sim em uma noção do sujeito que não é individual.
Precisamente. O paradoxo é que quanto mais vazio, mais impessoal, mais “abstrato” o assunto parece, mais ele expõe a negatividade que diz respeito a todos. Quanto mais Marx descreve a lógica do modo de produção capitalista, mais ele expõe as contradições e condições de exploração a que todos estão sujeitos. Inversamente, quanto mais ele se concentra nas condições empíricas da classe trabalhadora, mais ele suscita o equívoco de que toda luta de classes se reduz a um confronto entre 99% e 1%. Claro que essa é a aparência concreta da luta de classes, mas a luta de classes também nomeia as contradições estruturais e impasses do capitalismo que atravessam e dividem todos os sujeitos. Embotamos a teoria de Marx se a restringirmos à descrição crítica das condições empíricas. O capital começa com a análise das condições lógicas e estruturais do modo de produção capitalista, nível em que não há diferença entre um banqueiro e um trabalhador. É claro que, na estrutura social concreta, eles estão em mundos à parte, uma vez que o primeiro é a personificação do capital, e o segundo, a personificação da força de trabalho. Mas, considerados como sujeitos do capitalismo, estão sujeitos à mesma exploração e às mesmas mistificações. Para Marx, não há nada inerentemente bom ou revolucionário no trabalhador e nada inerentemente mau ou reacionário no banqueiro.
No capítulo final, você argumenta que a política não está em sincronia com a modernidade. Você poderia explicar o que quis dizer com isso?
Adotei a tese de Jean-Claude Milner e tentei vinculá-la aos debates em andamento sobre a política comunista. Acho que esta última poderia estar associada ao que Freud chamou de “elaboração”, ou seja, trabalhar contra a resistência do sistema econômico estabelecido, seja libidinal ou social. Embora o capitalismo se apresente como a modernidade como tal, ele perpetua, em sua essência, estruturas pré-modernas de dominação e exploração. Quando Lacan descreveu o capitalismo como a forma moderna ou a perversão do “discurso do mestre”, ele quis dizer que ele se reduz à exploração da alienação. Marx aponta na mesma direção, quando diz que o senhor feudal se transformou no capitalista moderno e o servo no proletário moderno. A questão é saber se a modernidade é apenas pré-modernidade pervertida ou se ela acarreta um antagonismo político que não mais se define em relação à dupla “exploração da alienação – fantasia de desalienação.”
A ciência moderna não tem o problema de que algo antigo persista. Se existe uma revolução verdadeiramente realizada na história humana, é a científica. Claro, isso não significa que a ciência moderna não tenha antagonismos epistêmicos, e seu papel central na sustentação das condições sociais capitalistas faz dela um dos principais campos de batalha políticos. A razão pela qual a ciência moderna foi importante para Lacan foi que ela criou as condições epistêmicas para a descoberta freudiana do sujeito do inconsciente. Lacan insistiu abertamente na necessidade de a política partir desse assunto. Em vez disso, a política oferecida pelo capitalismo parte de ficções de subjetividade desalienada, ocultando assim o vínculo entre alienação e exploração. As tentativas de revolução comunista falharam em produzir uma política que não fosse definida por esse vínculo, em parte porque também fantasiaram sobre subjetividade desalienada e relações humanas autênticas. Em contraposição a esses cenários, uma “política totalmente moderna” consistiria em um esforço coletivo de gestão da alienação, assim como Lacan falou do fim da análise em termos de “gestão do sintoma” (savoir-y-faire avec son symptôme).
11 de dezembro, 2017.
Tradução: Moisés João Rech
Revisão: Maria Betânia F. Champagne
Original: https://literaturwissenschaft-berlin.de/the-politics-of-psychoanalysis-samo-tomsic/