O presente trabalho é fruto da leitura feita juntamente com Ruth Corrêa Leite Cardoso, Fernando A. Novais, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Michel Levy, Octavio Ianni e Paulo Singer, tendo sido suas conclusões grandemente influenciadas pelos debates havidos. A todos apresento os meus agradecimentos. O autor.
I — O estudo dos livros de Marx, particularmente de um trabalho tão complexo como “O Capital”, tropeça em dificuldades tão grandes, que não são superadas apenas pelo esforço e pela persistência. Já seu subtítulo, Crítica da Economia Política, nos predispõe a esperar uma grande variedade de assuntos tratados, pois como se sabe, economia não era uma disciplina cujo objeto fosse perfeitamente delimitado, abrangendo, portanto, os temas mais diversos. Além disso, ao analisar o modo de produção da sociedade capitalista, ficam demarcadas as traves mestras que sustentam esta sociedade, e por conseguinte, as condições de vida e de luta dos homens que a constituem. O livro nos conta em suma, a “história” da produção do homem moderno pelo seu próprio trabalho, desde a fabricação das primeiras mercadorias para troca em espécie, até as mais altas criações de seu espírito. Na verdade, tudo aquilo que diz respeito à formação do próprio homem e de sua vida espiritual, é abordado do ponto de vista de suas condições de possibilidades, de sorte que caberia a outros escritos a tarefa de explorar por completo os vários modos de suas manifestações. Mas Marx acreditou ter traçado pelo menos em suas linhas basilares o esboço da práxis moderna.
Se levarmos em conta o extraordinário florescimento atual das ciências do homem, dificilmente cada pessoa seria capaz de dominar de uma forma crítica todos os terrenos explorados por Marx. Tendo isto em vista é que nos reunimos num grupo heterogêneo, que nos permitisse caminhar com certa segurança no interior dessas ciências, mas que nos custou horas a fio de irritantes discussões a fim de chegarmos a um vocabulário comum. Entretanto agora, depois de mais de um ano de seminários quinzenais, todos sentimos que estamos adotando uma nova maneira de compreender Marx e os problemas de nossa sociedade estudados por esse autor, o que sem dúvida deverá produzir seus frutos.
Existe, porém, outro obstáculo ao entendimento do marxismo, paixão e preconceitos políticos e epistemológicos, de cuja desorientadora eficácia estávamos longe de suspeitar. É óbvio que quando uma teoria passa ao domínio público e a atuar assim na sociedade, preparam-se ciladas de toda espécie contra o cientista que pretende examiná-la sem torcer para este ou para aquele lado. Mesmo aceitando todos os compromissos políticos, o intelectual necessita preservar aquela neutralidade que lhe dá acesso a uma doutrina e às suas intenções, pois ainda que se saiba que objetividade em ciência nunca é perfeita, seu abandono como projeto ou norte da prática científica seria tão calamitoso, que destruiria as próprias bases em que se alicerça.
Mas comparando com os preconceitos epistemológicos as paixões políticas são fáceis de controlar. A partir dos meados do século passado, com o extraordinário desenvolvimento das ciências, ocorreu uma espécie de positivização do pensamento em todas as suas direções, particularmente na forma de se encarar as relações entre as coisas e as leis que delas se ocupam. Hoje, correntemente se considera como um dado científico a concepção positivista da lei natural, entendida como expressão de certas uniformidades empíricas fenomênicas, que nada diz a respeito da realidade concreta sotoposta a estas aparições. Deste modo, o arranjo, a ordenação e a hierarquia destas uniformidades constatadas obedecem unicamente ao princípio de eficácia; teórica quando se trata da compatibilidade mútua das leis e suas adequações aos dados experimentais; prática quando encaradas como instrumento de modificação da natureza. É então legítima a coexistência de ordenações diferentes, de modelos operatórios em linguagem mais técnica, que respondendo a interesses práticos diversos, reportam-se à mesma região natural. Além do mais, toda e qualquer preocupação que ultrapasse a da edificação desses modelos é tachada de extracientífica. Não nos cabe no momento discutir o acerto desta concepção da ciência, mas apenas salientar sua oposição ao ponto de vista dialético. Não que Marx não faça uso de modelos, principalmente de modelos econômicos para estudar em pequeno, processos complicados da vida social. São numerosos os exemplos dessa ordem a serem citados. No entanto, seu emprego é subsidiário e eles não devem ser confundidos com os esquemas significativos de natureza profundamente ontológica e não operatória apenas.
Ao ler este autor, a toda hora estamos correndo o risco de aplicar ao seu pensamento conceitos de conotação não-marxista, violentando o sentido original de certas passagens, separando cada categoria da constelação que a define, sobrepondo concepções atuais àquelas que se vinculam tão estreitamente à filosofia de Hegel, que isoladas dão origem a delirantes contradições indignas de um pensador pelo menos perspicaz. Em geral, os ensaios sobre o marxismo oscilam entre a vulgarização esquemática e a resenha honesta, mas no fundo incompreensível, porque reproduz ideias fora de seu andamento dialético. Não é corriqueira a tradução dos pensamentos de Marx em termos da ciência moderna? Resta saber, entretanto, se a ciência contemporânea procede dialeticamente no sentido marxista, o que exige o trabalho prévio de se compreender com clareza e nitidez, inserida na constelação de suas intenções, o que seja realmente a dialética. Para este fim, na falta de um escrito metodológico do próprio punho do autor, recorre-se geralmente a textos colhidos ao longo da leitura de suas obras. Mas o que se obtém é por demais fragmentário para explicar e esclarecer o sentido da produção científica do próprio Marx, quanto mais para nos sugerir novos métodos de interpretação. Mas temos em mãos ainda um outro recurso: a análise estrutural do seu trabalho, sem dúvida o mais importante, “O Capital”, a fim de extrairmos da própria obra efetuada os processos metodológicos que levaram à sua realização. Neste sentido o livro é admirável, porque possui uma arquitetura rigorosa e monumental, porque certos capítulos são compostos de tal forma, que ao serem postos a nu os elos de sua articulação, proporcionam-nos conhecimentos sobre o método, muito mais ricos do que todos aqueles explicitamente enunciados pelo autor. Citam-se, por exemplo, os primeiros capítulos dos três volumes, em particular os do segundo.
Pela própria natureza de meu trabalho fora do grupo, fiquei encarregado da parte metodológica. Minha intenção é subordinar o livro à mesma técnica de interpretação dos textos filosóficos, indo pacientemente em busca das intenções que levaram o filósofo a estruturar a obra de uma dada maneira, demarcando com cuidado as variações de sentido dos termos empregados, procurando relacioná-las aos novos contextos em que foram inseridos. Em suma, o livro de Marx exige a mesma conversão ao texto, que reclama toda obra filosófica de importância, sem a qual arriscamos sempre de violentar seu pensamento. Estou praticamente no início de minha exploração e os resultados obtidos, provisórios ainda, não deveriam vir a público se não fosse o desejo de corresponder à calorosa expectativa da turma da “Revista Centro”. Tudo o que eu disser, o digo em nome de todos nós, pois o trabalho é conjunto, vale somente no propósito de abrir um diálogo entre os dois grupos que poderá ser muito proveitoso. A partir de um exemplo analisado de forma sumária, procurei extrair as conclusões mais importantes a que chegamos, ainda que não se façam sentir os elos que as enfeixam. Nada, portanto, tem a intenção de ser probante, o que teremos em seguida é apenas uma série de sugestões.
II — Com o fito de estudar o modo de produção capitalista, parte-se de sua mais saliente aparência: “A riqueza da sociedade em que domina o modo capitalista de produção aparece como um monstruoso acúmulo de mercadorias e a mercadoria individual como sua forma elementar”. [1] Das Kapital I, 1, pág. 39, Dietz Verlag Berlin, 1957. Portanto a mercadoria, na qualidade de objeto que satisfaz às nossas necessidades materiais ou espirituais, na qualidade de coisa culturalmente constituída, é o primeiro objeto submetido à análise. Todo objeto útil apresenta um conjunto de características, que pode ser encarado tanto do ponto de vista qualitativo como do quantitativo. Já pelo simples fato dela ser útil, manifesta um valor de uso histórica e socialmente determinado e que está em estreita dependência das suas propriedades que possam ser desfrutadas. Essas qualidades, por sua vez, devem em geral ser transformadas a fim de se tornarem de mais fácil consumo, o que custa desde logo trabalho humano.
É, porém, da própria natureza da mercadoria não se dar como uma coisa consumível pelo próprio produtor, mas desfrutável por outras pessoas, que, trabalhando parceladamente, trocam entre si o produto de seu trabalho. Ganha assim além do já mencionado valor de uso, um valor de troca, que se manifesta desde logo “como uma relação quantitativa, como a proporção na qual o valor de uso de uma espécie se troca com o valor de uso da outra, relação que está constantemente mudando com o lugar e com o tempo”. [2]Idem pág. 40. Enquanto que o valor de uso se apresenta como uma propriedade da mercadoria isolada, propriedade de uma coisa consumível e que por isso desperta em nós uma dada estimativa: da mesma mercadoria ao se integrar num sistema de trocas emerge uma nova forma de valor, não ligada à coisa como uma de suas propriedades, mas pelo contrário que se reflete em outras mercadorias, as quais expressam destarte tantos valores de troca quanto forem as mercadorias trocáveis em proporções determináveis. São múltiplos valores que em proporções diferentes se identificam. “Daí se segue que: 1) — o legítimo valor de troca se exprime na qualidade de um igual (ein Gleiches); 2) — mas o valor de troca só pode ser em geral o modo de expressão, a forma fenomênica (Erscheinungsform) de um conteúdo que dele se distingue”. [3]Idem pág. 41. Quando se igualam os dois valores de troca de uma porção de ferro e outra diferente de cereal, fica patente pela simples igualdade estabelecida, que uma mesma grandeza existe em duas coisas distintas sem se confundirem com o conteúdo. Algo idêntico manifesta-se, toma diversas aparências em cada mercadoria sob sinais quantitativos diferentes. O problema consiste então em se saber o que é esta substância (social), que emerge na relação de troca como algo diferente de seus múltiplos modos de expressão.
Retomemos o mesmo caminho para indicar o processo de constituição e de emancipação [4] Verselbständigung é a palavra usada no segundo volume, cap. 4, pág. 101 dos fenômenos. A mercadoria se apresenta à primeira vista como um valor de utilidade, como um conjunto de propriedades desfrutáveis. Em virtude de sua serventia social, entra um jogo de trocas, adquirindo deste modo novas propriedades e uma nova forma de valor, cuja aparência quantitativa nada tem a ver com o valor de uso originário. É somente por causa deste último que a mercadoria recebe a propriedade de numa dada proporção, ser permutável com as outras mercadorias, mas estabelecida da relação de troca, não mais se considera determinantes as qualidades dos corpos que os transformam em utilidades. O originário é negado no fenômeno constituído por ele. Por sua vez, os múltiplos valores de troca de uma dada mercadoria, somente existem como tais, possíveis de igualação recíproca, porque são manifestações diversas de uma mesma entidade. Essa substância, chamada valor, não é nada em si mesma, mas é pelo contrário constituída pela própria relação de troca como um ser autônomo, que nega enfim a diversidade ilimitada de suas aparências. Em suma, parte-se da aparência sensível para, numa série de negações das etapas anteriores, atingir uma entidade que em si mesma não possui nenhuma das propriedades das qualidades dos momentos constitutivos.
Se o valor é o resultado da constituição, da negação e da emancipação anteriormente descritas, em vez de ir buscá-lo no fim do percurso, podemos diretamente alcançar seu germe material pelo despojamento das qualidades da mercadoria que deram origem ao processo. Isto é, se abstrairmos todas as qualidades desfrutáveis que atribuem à coisa valor de uso, sobra-nos um resíduo, cuja negação (valor de uso) da negação (valor de troca) é o valor, na sua forma primeira, positiva, antes de sofrer o processo negador. Sem todas essas qualidades a coisa não é mais mesa nem casa, não é fio nem tecido, não pode nem mesmo ser considerada uma coisa útil. Mas permanece ainda um corpo que passou pelas mãos do homem, resultado portanto do nosso trabalho. Mas que trabalho estranho é este! Não resulta nem da ação do marceneiro, nem do pedreiro, nem do fiador, nem do tecelão, pois cada uma dessas ações produz uma obra específica, cujas propriedades foram negadas. É, portanto, um trabalho abstrato e por permear todas as relações de troca também é social. Definir o valor como a quantidade de trabalho socialmente necessário incorporado à coisa, é unir as duas pontas da cadeia, de tal modo que todos os momentos do processo adquirem um sentido funcional impossível de ser isolado.
Este método de definição de uma categoria repete-se mutatis mutandis no início dos três livros e orienta todas as análises posteriores. O ponto, uma totalidade, de partida é sempre um esquema de significações, definindo categorias reflexas e não é um conceito típico qualquer ou a descrição minuciosa da aparência para se chegar a uma invariância. Este esquema é abstrato, mas não formal, isto é, não considera todas as condições concretas de sua realização, que no nosso exemplo são as condições de produção da mercadoria e de sua troca, sem, contudo, esvaziar os conteúdos significativos para obter um modelo matemático, isto é, vazio na medida em que se refere a um objeto qualquer. Sendo ele dado, parte-se na direção do concreto através da análise “lógica” das significações empregadas, revelando-se suas compatibilidades e suas contradições, de sorte que, quanto mais o estudo se prolonga, tanto mais se aproxima da situação real do fenômeno. Confirma-se a declaração da “Crítica da Economia Política”, quando Marx afirma que seu método segue o caminho do abstrato para o concreto, entendido este último em segundo grau, como o conjunto de determinações abstratas. Assim é que depois do valor; examinam-se os modos de sua mensuração, a dupla forma de trabalho expresso na mercadoria, os vários modos de existência (Existenzweise) do valor etc. Mesmo quando se permanece no plano mais abstrato possível, isto é, logo no início do trabalho, em vista do esquema ser um sistema de sentidos, não pode ser considerado um modelo operatório, diferente conforme responde a interesses práticos diversos. A definição de valor não enuncia uma das possíveis formas de encarar a questão, mas a própria natureza da substância social em referência aos seus múltiplos modos de aparecer. Marx se ocupa de coisas e das categorias que são as formas de consciência científica.
III — As significações empregadas, ou melhor, as categorias ou as essências, são funcionalmente definidas e possuem sentido pelo lugar que ocupam no sistema de correlações e de oposições. O próprio esquema inicial sofrerá, portanto, alterações consideráveis no decurso da análise, enriquecendo-se quanto mais ele se aproxima das situações concretas, com novas significações que reclamam uma redefinição do todo. Este enriquecimento progressivo não se faz, porém, linear e cumulativamente, de modo que seria possível encontrar inalterada no fim do processo, a propriedade apontada logo no início. Ao ramificarem-se as categorias, todo o sistema é redefinido em vista das novas correlações e oposições. É então uma ingenuidade grosseira o procedimento classificatório utilizado por certos autores, que procuram definir um conceito marxista recolhendo das invariâncias apresentadas pela noção em seus vários empregos. Vejamos um exemplo: o dinheiro acumulado surge primeiramente como tesouro, dinheiro furtado à circulação, causando por isso uma ruptura em seu percurso, por alguém que não compreende a verdadeira natureza da produção capitalista, acredita que ganhará mais poupando do que investindo. É, pois, uma forma pré-capitalista de dinheiro e se liga a uma forma de personalidade: o entesourador.[5] K, I, 3, pág. 135. No entanto, a mesma acumulação de dinheiro desempenha no processo de circulação, quer a importante tarefa de prover as falhas adventícias (fundo de reserva), quer de ampliar o sistema de produção (fundo de acumulação). [6]K, II, 2, pág. 78 e 80. Do ponto de vista empirista teríamos sempre manifestações diversas do mesmo fato. Para Marx, contudo, em virtude de o dinheiro desempenhar funções diferentes e até mesmo opostas, trata-se de categorias distintas, cujas únicas propriedades comuns são aquelas inerentes à forma dinheiro.
Observa-se uma interessantíssima oposição entre sincronia e diacronia, que se for estudada com carinho pode nos levar a conclusões importantes sobre os vários tempos empregados pelo método dialético. Do ponto de vista lógico, dá-se início ao trabalho por uma análise tipicamente sincrônica, a troca originária é ao mesmo tempo compra e venda. Todavia, intercalam-se outros fatores conforme o desenrolar da análise, por exemplo aparece o dinheiro como forma intermediária, aumentando o intervalo de troca, até ocorrer o que poderíamos chamar a clivagem do processo. Obtêm-se então vários planos, ou melhor, vários circuitos porque cada um deles exige um tempo mínimo socialmente determinado para ser percorrido. Assim é que a mera troca ao se converter no processo de circulação do capital, dá-se em três círculos sobrepostos: o círculo do capital dinheiro, o círculo do capital produtivo e o círculo do capital mercadoria. Os três circuitos, porém, são concomitantes na medida em que são aspectos de um mesmo processo, havendo, pois, uma sincronia entre os momentos de cada um. A simultaneidade dos três círculos não impede, entretanto, que se estabeleça entre eles uma ordem de complexidade, o primeiro sendo muito mais simples do que o segundo e este mais simples do que o terceiro, de sorte que o terceiro lida ipso facto com muito mais fatores históricos do que o primeiro.
IV — O valor, o conteúdo abstrato inicial e final definido no primeiro esquema, percorre as mais variadas posições no jogo da produção e da circulação de mercadorias, adotando os disfarces mais inesperados, assumindo aqui a aparência de uma estimativa de desfruto, ali a de dinheiro, acolá a de capital investível. No entanto, ao indicar a nova constelação de significações que redefine a categoria, isto é, as novas formas constitutivas da essência, efetuamos concomitantemente o desmascaramento da aparência sob a qual se apresenta o antigo conteúdo, descobrindo então o elo constitutivo que vincula fenômenos tão diversos. Não é desmascaramento a redução do fenômeno à sua forma mais simples, mas sua inserção no esquema que lhe dá sentido. E o que ocorre por exemplo, durante o exame do fetichismo da mercadoria e do dinheiro, ou na redução do lucro, da renda etc… a manifestações diversas da mais-valia.
Ao mesmo tempo, porém, que se desmascaram os modos de aparência de uma dada substância, criticam-se aquelas doutrinas que, reconhecendo apenas uma etapa do processo, ou melhor, encarando somente um dos modos de sua existência, passam a tomar a parte pelo todo. Esta recusa interessada de abranger a totalidade do processo dá origem a uma ideologia, que assume o fenômeno sem reduzi-lo aos seus componentes lógico-históricos. Cumpre-se, destarte, o projeto de Marx de escrever uma crítica da economia política. Durante todo seu trabalho, cada passo na completação do sistema corresponde a uma possível crítica a uma doutrina que o tenha hipostasiado num todo. O exame de todas as possíveis manifestações de uma dada substância poderá dar margem a uma visão panorâmica das ideologias mais elementares que origina, não de todas porque são inúmeras as possibilidades de combinação, mas pelo menos de muitas delas que ainda até hoje talvez não tenham sido elaboradas. É óbvio que ninguém vai se consagrar ao jogo fútil de criar fantasmas teóricos, mas a simples possibilidade desta tarefa nos indica a incrível versatilidade do marxismo no que concerne à crítica das doutrinas contrárias. Além do mais, sugere-nos um primeiro critério de objetividade: a teoria há de ser capaz de atribuir um sentido a todas as manifestações da coisa, assim como de elucidar todas as suas formas de consciência. De outra parte, se o desmascaramento é por um lado negativo, pois reduz as pretensões absolutistas de uma doutrina adversária; é por outro positivo, na medida em que análises particulares podem ser recuperadas se forem capazes de adquirir um sentido propriamente dialético. Foi o que se deu, por exemplo, com a noção de mais-valia elaborada por Ricardo, que somente dentro da obra de Marx tornou-se uma categoria, conforme testemunho do próprio Engels no prefácio ao segundo volume.V — Várias são as considerações a propósito da relação entre o método dialético e a história efetiva, que poderíamos propor. Ao se tomar um esquema como ponto de partida, na maioria das vezes sob forma de equação, dá-se por pressuposta uma certa situação histórica concreta, que somente ao término de seu desenvolvimento é capaz de o realizar. E neste sentido apenas, por investigar o processo histórico real em sua forma desenvolvida, que convém chamar de típico o método empregado. Típico é todo o processo e típica é a constelação significativa de categorias que o define, nunca uma categoria em si mesma. Mas a conjuntura histórica pressuposta não intervém absolutamente na análise significativa do esquema. Em outros termos, constituído a partir de uma análise fenomenológica (sentido hegeliano), sua exploração se processa exclusivamente no plano do logos, isto é, no plano das significações. Na verdade, faz-se apelo ao dado histórico ao se incorporarem novas categorias, mas estas nascem em resposta aos problemas desenvolvidos dentro do próprio esquema; de sorte que o fato histórico indica somente quais são os modos possíveis de sua realização. No interior do círculo do capital dinheiro por exemplo, quando o capital se converte em duas espécies de mercadorias: meios de produção e força de trabalho, supõe-se que a força de trabalho tenha sido separada de seus meios de produção, o que equivale a supor antagonismo de classe entre o capitalista e o operário, enfim, todo o mundo capitalista. Para efeito de estudo, todavia, nada mais se assume do que estas duas formas possíveis de mercadoria funcionalmente definidas dentro do processo. Como já indicamos, a análise parte do abstrato, mas a formulação deste abstrato pressupõe uma situação histórica cujos momentos fundamentais já foram realizados pelo próprio homem. Da aparência vai-se à ideia e desta volta-se outra vez para uma aparência explicada. Por isso Marx pode dizer que até mesmo aquelas categorias tão abstratas do início do primeiro livro trazem consigo traços históricos (geschichtliche Spur). [7] K. I, 4, pág. 177.
Quanto mais abstrata é uma categoria, isto é, quanto mais pobre é a constelação de significações que a define, tanto será menor a possibilidade de se realizar historicamente em toda sua pureza. Sob este aspecto deparamos com o mesmo tipo de explicação das ciências naturais: as leis físicas mais gerais nunca se dão na natureza se não forem acompanhadas por circunstâncias perturbadoras. Há mesmo certas categorias que podem se aplicar a diferentes épocas históricas e a diversos modos de produção. Por exemplo, o dinheiro. Não se confundam, porém, as propriedades do dinheiro como tal, com aquelas que ele adquire por ter sido integrado no sistema capitalista. Na maioria das vezes, o valor teórico dessas categorias é apenas negativo.
Em suma, é preciso distinguir dois tipos de análise: 1) – aquela propriamente científica e dialética; 2) – daquela elucidativa que descreve como os esquemas lógicos, nascidos do próprio jogo de forças objetivas, adquirem concretividade histórica. A primeira vai do abstrato ao concreto e envereda por rumos diferentes do processo evolutivo real. “As reflexões sobre as formas da vida humana do mesmo modo que sua análise científica, tomam um caminho diretamente oposto ao seu desenvolvimento real. Iniciam-se post festum e por isso com os resultados já prontos de processo evolutivo”. A segunda análise, porém, na qualidade de elucidação, mostra como o processo evolutivo desabrocha de acordo com as travações de sentido por ele mesmo constituídas e apanhadas pela análise científica. Capítulos inteiros são dedicados a este tipo de estudo, em geral todas as partes propriamente históricas como “Maquinaria e Grande Indústria”, “A Assim Chamada Acumulação Primitiva”, etc…
VI — São estes os temas que gostaríamos de propor à consideração dos leitores. O rápido inventário dos procedimentos metodológicos de “O Capital” basta para indicar em que estrita medida Marx trabalhava na dependência da lógica hegeliana. Seria o livro apenas uma de suas aplicações? Quais são as alterações substanciais que sofreu por causa da famosa inversão do método dialético? Sem uma cuidadosa comparação de Marx e de Hegel, o exame da razão dialética não poderá ir a diante. Isto posto, será postulado marxista de que a ciência, por sua própria natureza, é dialética no sentido de possível então retornar ao estudo das ciências contemporâneas e verificar o até agora Marx. E se por acaso isso não se averiguar, então de duas uma: ou o método dialético é uma forma filosófica e superada do conhecimento científico, ou sendo imprescindível a unidade do saber que o método postula, está ocorrendo uma crise tal na ciência contemporânea, que ela desconhece até mesmo seu próprio sentido.
GIANNOTTI, José Arthur. Notas para uma análise metodológica de “O capital”. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 29, p. 60-72, 1960.

José Arthur Giannotti
José Arthur Giannotti foi professor do Departamento de Filosofia da USP. Autor de uma certa herança marxista