“Não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade, mas há certamente uma que conduz da atiradeira até a bomba atômica.”
Theodor W. Adorno
Há datas que se impõem ao tempo como feridas. O 7 de outubro é uma delas. Não apenas por inaugurar mais um ciclo de destruição em Gaza, mas por revelar, com clareza insuportável, aquilo que há muito já se desenhava: o colapso moral e político de uma era que ainda ousa chamar-se civilização. A história recente parece condensar-se nesse ponto — o instante em que a promessa de humanidade se desfez em poeira, sob o ruído das bombas e o silêncio cúmplice do mundo.
Desde então, o tempo parece ter parado. Não o tempo dos relógios, mas o da experiência humana. A cada nova imagem transmitida em tempo real, repete-se o mesmo espetáculo de ruínas, e a repetição é precisamente o que faz o horror perder seu nome. A catástrofe deixa de ser exceção e se torna o tecido mesmo do presente. Gaza é o espelho dessa época: a racionalidade técnica convertida em mecanismo de extermínio, a política degradada em administração da morte, a comunicação em instrumento de anestesia. O século XXI cumpriu, enfim, o destino que o século XX já anunciara — não o de um progresso ilimitado, mas o de uma barbárie eficiente, planejada e retransmitida.
Dois anos se passaram, e o genocídio segue em curso. O que começou como uma ofensiva militar tornou-se a normalização do inaceitável — a destruição sistemática de um povo inteiro sob o pretexto da segurança. Diante disso, a linguagem vacila. É difícil encontrar palavras que não soem insuficientes, mas é precisamente nesse ponto de impotência que nasce a exigência de dizer. Falar é o mínimo gesto de resistência contra o esquecimento, e lembrar o 7 de outubro é mais que um ato de memória: é recusar o presente como destino, é sustentar o olhar diante daquilo que o mundo inteiro aprendeu a desviar.
É difícil recorrer a palavras e definições conceituais para enunciar um acontecimento cujas imagens nos fazem perder a voz. Ainda assim, é tarefa necessária mobilizar os conceitos para dar forma ao sofrimento — nem que seja apenas para mostrar que eles talvez já não sejam suficientes. É precisamente aí que os conceitos revelam sua força: a de apontar para além de si mesmos, como nos lembra Theodor W. Adorno, para quem “a necessidade de deixar o sofrimento falar é condição de toda verdade”.
A tragédia em Gaza não é um desvio da civilização moderna, mas a sua expressão mais acabada. A mesma racionalidade que constrói satélites e redes de comunicação é a que aperfeiçoa o controle, a vigilância e o extermínio. O que vemos hoje é a fusão total entre técnica e poder — o cálculo a serviço da destruição. O genocídio não é apenas o produto do ódio, mas o resultado lógico de uma máquina social que transforma a vida em dado, e o dado em alvo.
Se antes nos perguntávamos a respeito de eventos catastróficos que ocorreram no passado, como tantas pessoas puderam deixar que eles acontecessem, rapidamente nos foi respondido que a comunicação, à época, não era eficiente como hoje. Era, portanto, mais fácil ocultar a barbárie. Explicação comum, ainda que passível de questionamento. O que dizer, porém, sobre hoje? Como explicar a dessensibilização, o desvio dos olhares diante de Gaza? Os aparatos tecnológicos construídos para prover boa comunicação contribuem para a sua antítese: a desinformação. Algoritmos, narrativas, fake news, propaganda. Ao invés de nos deixarem a par das informações, as redes nos oferecem uma opção mais palatável: podemos apenas escolher não ver; ocultar os posts, reafirmando a impossibilidade de tomada de qualquer ação – seja ela qual for.
Entretanto, não existe a possibilidade de fecharmos os olhos para o sofrimento se não quisermos ser cúmplices da barbárie. Distraídos nos afazeres do dia a dia, é fácil esquecer dos horrores que acometem Gaza; ali, a realidade é desvelada em seus antagonismos. Corpos são contabilizados; o que neles havia de indivíduo desaparece em meio ao barulho dos mísseis. Quando muito, restam reconhecíveis. Crimes de guerra são cometidos sem que haja comoção significativa; do contrário, é sempre possível encontrar tentativas de justificar o injustificável. A gênese social e política do problema se perde em meio à instrumentalização de discursos religiosos e morais, enquanto famílias inteiras têm suas casas bombardeadas. Enquanto houver a transformação de vidas em números, porém, podemos dizer que a ideia de humanidade ainda não se realizou, e a emancipação permanecerá ideologia — falsamente vendida como conquista territorial, acúmulo de riquezas e satisfação imediata dos desejos de consumo.
Por isso, recordar Gaza é também expor a falência de um mundo que naturalizou o sofrimento. A indiferença é o cimento de uma ordem que sobrevive da destruição. Quando a dor do outro deixa de nos interpelar, a civilização já ultrapassou o limiar de sua própria negação. A barbárie não é o contrário da cultura; é a sua sombra permanente, revelando-se sempre que o humano se submete à lógica do lucro, do controle e da dominação. Lembrar é, portanto, mais do que um dever moral: é um gesto político, um ato de insubordinação diante do esquecimento planejado.
Que fazer, então? Enunciar a barbárie, impedir sua normalização, suscitar o estranhamento diante do que jamais deve ser naturalizado. Unir forças em prol da mobilização contra o genocídio. Neste 07 de outubro, que nos lembremos das vítimas não enquanto números; mas enquanto sujeitos com rosto, nome, planos e sonhos; pessoas cujo direito de existir lhes foi tomado, desde o início de mais um capítulo sangrento na história desse conflito. Que nos lembremos de seus familiares, e dos que, malgrado o horror, ainda persistem. Também daqueles que se esforçam para fazer com que a ajuda humanitária chegue em Gaza, e que estão constantemente suscetíveis a ataques. Por fim, que não nos deixemos esquecer do que constitui esse conflito, pois somente a partir de sua gênese histórica, social e política podemos apreendê-lo para, mais uma vez, enunciar a catástrofe e desvelar sua irracionalidade — em todas as suas faces: dos ataques dos mísseis à impassibilidade com que se recebem as denúncias.
Mas lembrar também é começar de novo. Não em sentido da reconciliação, que seria impossível sobre o solo das ruínas, mas na exigência de outra forma de vida, ainda sem nome. Pois se o mundo que produziu Gaza é o mesmo que hoje administra a morte em escala global, é preciso imaginar o impensável: uma humanidade que se reconheça nos escombros e, a partir deles, se recuse a repetir o cálculo que a levou até aqui. Que a memória das vítimas não sirva apenas para acusar o passado, mas para interromper o curso automático do presente. Toda lembrança verdadeira é também promessa — a de que o horror não será o idioma final da história.

Ariane Velasco
Ariane Velasco é mestranda em Filosofia (USP), educadora, tradutora e integrante da Revista Zero à Esquerda.

Gabriel Teles
Gabriel Teles é pós-doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Sociologia pela USP, professor de Sociologia na UnB e integrante da Revista Zero à Esquerda.