Algo falta: Um diálogo entre Ernst Bloch e Theodor W. Adorno sobre as contradições do desejo utópico
“Something’s Missing” foi uma entrevista feita com Ernst Bloch e Theodor Adorno por Horst Kriger em 1964 e publicada pela primeira vez em alemão em “Gespräche mit Ernst Bloch”, editada por Rainer Traub e publicada em 1975.
Horst Krüger (moderador): Hoje a palavra ‘utopia’ não me soa muito bem. Ela tem sido depreciada e é usada primeiramente em uma conotação negativa para significar “utópica.” Há algo anacrônico sobre nosso tema, assim como no nosso termo.
Theodor W. Adorno: Se me for permitido dizer algo primeiro, mesmo que eu possa não ser a pessoa correta a iniciar, já que meu amigo Ernst Bloch é o principal responsável por restaurar a honra à palavra “utopia’ em seu primeiro trabalho “O Espírito da Utopia” (Geist der Utopie), eu gostaria de nos relembrar agora mesmo que inúmeros supostos sonhos utópicos – por exemplo, a televisão, a possibilidade de viajar a outros planetas, se movimentar mais rapidamente que o som – foram cumpridos. Entretanto, na medida em que estes sonhos se realizaram, todos eles operam como se a melhor coisa sobre eles tenha-se esquecido — não se fica feliz sobre eles. Como eles têm percebido, os próprios sonhos têm assumido uma característica peculiar de sobriedade, do espírito do positivismo, e além disso, de tédio. O que eu quero dizer com isto é que não é simplesmente uma questão de pressupor que o que realmente seja tem limitações oposto ao qual tem possibilidades infinitamente imagináveis. Pelo contrário, quero dizer algo concreto, nomeadamente, aquele que se vê quase sempre derrotado: a realização dos desejos abstrai algo da substância dos desejos, assim como no conto de fadas em que o agricultor recebe três desejos, e, eu creio, ele deseja que sua esposa tenha uma salsicha no nariz e então deve usar o segundo desejo para a retirada da salsicha do nariz dela. Em outras palavras, quero dizer que se pode assistir televisão atualmente, olhar para coisas distantes, mas em vez da imagem – desejo dar acesso à utopia erótica, alguém vê na melhor das circunstâncias um tipo de cantor de pop mais ou menos bonito, que continua a iludir o espectador em relação à sua beleza na medida em que ela canta algum tipo de nonsense/ em vez de mostrar, e esta canção geralmente consiste de reunir “rosas” com “luar” em harmonia. Acima e além de tudo pode-se talvez dizer em geral que a realização da utopia consiste de maneira ampla somente na repetição de continuamente um mesmo “hoje”. Em outras palavras, quando significa para Wilhelm Busch “também é lindo em outro lugar, e aqui estou eu, de qualquer forma”, então esta palavra começa a assumir hoje um significado assustador na realização de utopias tecnológicas, nomeadamente, que “e aqui estou eu de qualquer forma” também toma posse do “outro lugar”, aonde o Grande Senhor Pief! 1 com sua grande luneta desejou estar.
Krüger: Sr. Bloch, você também acredita que a depreciação do termo ‘utopia’ está conectada a – como devo colocar? – a perfeição do mundo tecnológico?’
Ernst Bloch: Sim e Não – tem algo a ver com isto. A perfeição tecnológica não é tão completa e estupenda como se pode pensar. É limitada somente a um número bem seleto de sonhos de desejo. Pode-se ainda acrescentar o próprio desejo de voar. Se me recordo corretamente, Dehmel2 escreveu um poema sobre isto no qual ele disse, “E ser tão livre quanto os pássaros” – o desejo está lá, também. Em outras palavras, há um resíduo. Há muita coisa que não é realizada e banalizada através da realização — independentemente do ponto de vista mais profundo de que cada realização traz consigo uma melancolia de realização. Então, a realização não é real ainda ou imaginável ou postulável sem um resíduo. Mas não é somente isto que traz sobre a depreciação da utopia. Incidentalmente, eu acredito que esta depreciação é bem antiga – o slogan “isto é um mero pensamento utópico” reduzido como depreciação ao “castelo nas nuvens,” para “pensamento positivo” sem qualquer possibilidade para sua realização, para imaginar e sonhar coisas em um sentido banal – esta depreciação é bem antiga, e não é nossa época quem a trouxe. Não tenho certeza, mas pode ser que nossa época pode ter levado consigo uma “atualização” do utópico — só que não é mais chamado assim. É chamada de ‘ficção científica’ na tecnologia; é chamado de água para o moinho na teologia, no qual o “princípio de esperança” que eu tenho lidado com grande ênfase, tem um papel nisto. Começa a desempenhar um papel optativo com o “Se ao menos fosse assim”, que ultrapassa o papel da realidade — algo é realmente assim e nada mais. Tudo isso não é mais chamado de utópico; ou se é chamado de utópico, é associado com as velhas utopias sociais. Mas eu acredito que nós vivemos não muito longe do topos da utopia, no que diz respeito aos conteúdos, e menos longe da utopia. Bem no começo Thomas More designou utopia como um local, uma ilha nos Mares Distantes do Sul. Esta designação passou por mudanças mais tarde para que saísse do espaço e adentrasse no tempo. Certamente, os utópicos, especialmente os dos séculos XVIII e XIX, transpuseram a terra dos desejos mais para o futuro. Em outras palavras, há uma transformação do topos do espaço em tempo. Com Thomas More, um terreno dos desejos estava ainda pronto, em uma ilha distante, mas eu não estou lá. Por outro lado, quando ela é transposta para o futuro, não só eu não estou nela, mas a própria utopia não está em si. A doca desta ilha nem mesmo existe. Mas não é algo como uma bobagem ou um capricho absoluto; pelo contrário, ainda não existe no sentido da possibilidade; que poderia estar lá se pudéssemos fazer algo por ela. Não só se viajarmos para lá, mas ao viajarmos para lá, a utopia da ilha emerge do mar da utopia – possível, mas com novos conteúdos. Eu acredito que neste sentido, a utopia não perdeu de modo algum a sua validade, apesar da terrível banalização sofrida e apesar da tarefa pela qual foi atribuída por uma sociedade – e aqui eu concordaria com meu amigo Adorno – que afirma ser totalmente rica e agora com as classes abolidas.
Adorno: Sim, eu apoio basicamente tudo o que disse, e eu quero usar a objeção que você implicitamente levantou para me retificar um pouco. Não foi minha intenção fazer da tecnologia e da sobriedade que é alegadamente conectada a tecnologia responsável pelo encolhimento estranho da percepção utópica, mas parece que a questão diz respeito a algo muito maior: se refere à oposição das conquistas tecnológicas específicas e as inovações a totalidade – em particular, para a totalidade social. Qualquer utopia que seja, o que quer que possa ser imaginado como utopia, esta é a transformação da totalidade. E a imaginação de tamanha transformação da totalidade é basicamente bem diferente em todas as chamadas realizações utópicas — que, incidentalmente, são todas como você disse: bem modestas, bem limitadas. Me parece que o que as pessoas perderam subjetivamente em relação à consciência é muito simplesmente a capacidade de imaginar a totalidade como algo que possa ser completamente diferente. O fato de as pessoas estarem juradas a este mundo tal como ele é e terem essa consciência bloqueada face às possibilidades, tudo isto tem uma causa muito profunda, na verdade, uma causa que eu pensaria estar muito ligada exatamente à proximidade da utopia, com que você está preocupado. Minha tese sobre isto seria que todos humanos lá no fundo, queiram admitir ou não, sabem que seria possível ou que poderia ser diferente. Não só poderiam viver sem fome e provavelmente sem ansiedade, mas que eles poderiam também viver como seres humanos livres. Ao mesmo tempo, o aparato social endureceu-se contra as pessoas, e logo, tudo o que aparece diante de seus olhos em todo o mundo como possibilidade alcançável, como possibilidade evidente de realização, se apresenta para eles enquanto radicalmente impossível. E quando as pessoas universalmente dizem hoje o que já foi reservado só para filisteus em tempos mais inócuos, “Oh, isto é só utópico; oh, isto só é possível na terra da Cocanha. Basicamente isto não deveria ser assim de jeito algum,” então eu diria que isto é devido a situação que obriga as pessoas a manejar a contradição entre a possibilidade evidente de realização e a igualmente evidente impossibilidade de realização apenas desta forma, obrigando-as a identificar-se com esta impossibilidade e a fazer desta impossibilidade um assunto seu. Em outras palavras, usando Freud, eles “se identificam com o agressor” e dizem que isto não deve existir, por meio do qual eles sentem que é precisamente isso que deveria existir, mas são impedidos de alcançá-lo por um feitiço perverso lançado sobre o mundo.
Krüger: Professor Bloch, eu gostaria de lhe perguntar a seguinte questão: O que é precisamente o conteúdo das utopias? Seria a felicidade? Seria a realização? Seria uma palavra que surgiu em nossa discussão simplesmente a liberdade? O que realmente se espera?
Bloch: Por um longo tempo utopias apareceram exclusivamente enquanto utopias sociais: sonhos de uma vida melhor. O título do livro de Thomas Moore é De optimo statu rei publicae deque nova insula Utopia, ou Sobre o Melhor Tipo de Estado e a Nova Utopia Insular. A “optima res publica” – o melhor estado – está definido por Thomas More como uma meta. Em outras palavras, há uma transformação do mundo para maior realização possível de felicidade, de felicidade social. Nem é verdade que as utopias não tivessem um “itinerário” ou “cronograma”. No que diz respeito ao seu conteúdo, utopias são dependentes de condições sociais. Thomas More, que viveu durante o período de início do imperialismo britânico, durante o período elisabetano, estabeleceu condições liberais para o sentimento entre seus ilhéus. Cem anos mais tarde, durante o tempo de Filipe II e da dominação espanhola da Itália, durante a atmosfera do Julgamento de Galileu 3, Campanella concebeu um contra modelo para a liberdade no seu Estado Solar. Ele disse que todas as condições só poderiam ser ordenadas se reinasse a maior ordem possível, se tudo fosse “consertado”, como a expressão extremamente sensível e conhecida coloca. Mas o objetivo de More e Campanella sempre foi o domínio do sonho consciente, que é mais ou menos objetivamente fundado, ou pelo menos fundado no sonho, e não o reino completamente insensato do devaneio de uma vida melhor. Ademais, as utopias tecnológicas deixaram sua primeira impressão no trabalho de Campanella e logo de modo mais claro na Nova Atlântida de Bacon. Seu ‘Tempo de Salomão’ é a antecipação de uma Universidade Técnica graduada, na qual há invenções monstruosas, um programa completo de invenções. Ainda assim, ainda existe um nível muito mais antigo de utopias que não deveríamos esquecer, que muito menos não deveríamos esquecer — o conto de fadas. O conto de fala não somente é repleto de utopia social, em outras palavras, com a utopia de uma vida melhor e justiça, mas também é repleto de utopia tecnológica, acima de tudo nos contos de fada orientais. No conto de fadas “O Cavalo Mágico”, das Noites Árabes, há ainda uma alavanca que controla o alto e baixo do cavalo mágico – isto é um “helicóptero”. Alguém pode ler as Noites Árabes em muitos lugares como um manual de invenções. Bacon abordou isso e então se afastou do conto de fadas dizendo que o que ele quis dizer, a verdadeira magia, se relaciona com as mais antigas imagens de desejo do conto de fadas, assim como os feitos de Alexandre se relacionam com os feitos da Távola Redonda do Rei Arthur. Assim, o conteúdo da utopia muda de acordo com a situação social. No século XIX, a ligação com a sociedade da época pode ser vista claramente, mais claramente nas obras de Saint-Simon e Fourier, que foi um grande, exato e sóbrio analista. Ele profetizou a chegada do monopólio já em 1808 em seu livro Théorie des quatre mouvements (Teoria dos Quatro Movimentos). Por outras palavras, neste caso é uma utopia negativa que também existe. O conteúdo muda, mas existe uma invariante de direção, psicologicamente expressa, por assim dizer, como anseio, completamente sem consideração pelo conteúdo — um anseio que é a qualidade penetrante e, acima de tudo, única e honesta de todos os seres humanos. Agora, porém, começam as perguntas e as qualificações: O que desejo como ideal? Aqui é preciso “sair” da “base” (Stammhaus) das utopias, nomeadamente das utopias sociais, por conta da totalidade, como você diz, para ver as outras regiões da utopia que não têm o nome “tecnologia.” Há arquitetura que nunca foi construída, mas que foi projetada, desejando uma arquitetura de grande estilo. Há a arquitetura do teatro, que era montada de maneira barata com papelão e não custava muito quando faltava dinheiro e a tecnologia não estava muito avançada. Na Idade Barroca, sobretudo no Teatro Barroco Vienense, havia edifícios enormes que nunca poderiam ser habitados porque foram construídos em papelão e ilusão, mas mesmo assim apareceram. Existem utopias médicas, que contêm nada menos do que a eliminação da morte — um objetivo remoto completamente tolo. Mas então há algo sóbrio, como a eliminação e o alívio da dor. Agora, isso é na verdade muito mais fácil e foi conseguido com a invenção da anestesia. A meta não é a de cura de uma doença, mas isto, também, há de ser conquistado – que pessoas são mais sadias após uma operação do que estavam antes. Em outras palavras, há uma reconstrução do organismo no exato mesmo modo como há uma reconstrução do estado. Acima de tudo, existe, como eu disse no início, o utópico na religião. Este é de fato o reino divino, aquele que aparece no final, ou aquele que anuncia, aquilo que o Messias, que Cristo/ traz – imagens- desejo distantes, com tremendo conteúdo e grande profundidade, que aparecem aqui, de modo que, acredito, é preciso também olhar para as utopias sociais e para o que nelas ressoa e é posto em movimento por essas imagens de desejo. Contudo, estes tipos de imagens de desejo podem ser discutidos individualmente, de acordo com o grau em que as condições presentes permitem a sua realização – em outras palavras, no espaço, no topos de uma possibilidade objetiva – real. A possibilidade não é tratada tão mal quanto uma ‘enteada’ dentre as categorias por nada e também não claramente nomeado – a possibilidade…
Adorno: …até Hegel lidou com isso desleixadamente.
Bloch: Sim, até Hegel lidou com isso desleixadamente. Ele teve que tratá-la de modo porco na conta desta velha noção: Não há nada possível que não seja real. Se não fosse real, não seria possível. Em outras palavras, a possibilidade é absolutamente uma categoria subjetiva-reflexiva nos escritos de Hegel 4.
Adorno: Por isso, ele toma uma “bofetada.”
Bloch: Sim, e ele toma uma “bofetada.” Mas quando o oceano de possibilidade é muito maior do que nossa terra costumeira de realidade, na qual poderíamos nomear de tecnificação das mãos (Zurhandenheit) 5 sem apontar as associações – Se me permite…
Adorno: Fique à vontade, por favor!
Bloch: … Sem colocar uma pressão na “autenticidade” (Eigentlichkeit) 6, então nós podemos ver que a possibilidade teve uma má imprensa. Há um interesse bem claro que tem prevenido o mundo de ter sido mudado no possível, e foi maltratado e, como foi mencionado, foi insuficientemente trazido para o âmbito filosófico, para não mencionar os insultos que recebeu, que correram paralelamente aos insultos dirigidos ao utópico.
Adorno: Sim, e aqui eu gostaria de retornar à questão colocada pelo Sr. Krüger sobre o conteúdo da utopia. Acredito, Ernst, que você desenrolou toda uma série de — como devo colocar — tipos muito diferentes de consciência utópica. Isso tem muito a ver com o tema porque não há nada como um conteúdo utópico único e solucionável. Quando falei sobre a “totalidade”, não limitei de forma alguma o meu pensamento ao sistema de relações humanas, mas pensei mais sobre o fato de todas as categorias podem mudar de acordo com a sua própria constituição. Assim, eu diria que o essencial do conceito de utopia é que ele não consiste numa categoria determinada, única e selecionada, que se transforma e a partir da qual tudo se constitui, por exemplo, nisso se supõe que a categoria da felicidade sozinha é a chave para a utopia.
Krüger:… nem mesmo a categoria da liberdade?
Adorno: Nem mesmo a categoria da liberdade pode ser isolada. Se tudo dependesse de examinar a categoria de liberdade sozinha como a chave para a utopia, então o conteúdo do idealismo significaria realmente o mesmo que utopia, pois o idealismo não procura outra coisa senão a realização da liberdade sem realmente incluir a realização da felicidade no processo. É, portanto, inserido em um contexto que todas essas categorias aparecem e estão conectadas. A categoria da felicidade sempre tem algo de miserável como categoria isolada e parece enganosa para as outras categorias. Ela mudaria a si mesma, assim como, por outro lado, também a categoria da liberdade, que não seria mais um fim em si e um fim em si da subjetividade (Innerlichkeit), mas teria que se realizar. Para ser claro, eu creio – e isso me comoveu bastante, Ernst, que você foi quem tocou nisso, pois meu próprio pensamento tem circulado em volta deste ponto recentemente — que a questão sobre a eliminação da morte certamente é o ponto crucial. Este é o cerne da questão. Pode ser verificado com muita facilidade; você só precisa falar sobre a eliminação da morte algum dia com uma pessoa dita bem-intencionada — tomo emprestada esta expressão de Ulrich Sonnennmann, que a cunhou e introduziu. Então você terá uma reação imediata, da mesma forma que um policial viria logo atrás de você se você atirasse uma pedra em uma delegacia. Sim, se a morte fosse eliminada, se as pessoas não morressem mais, isso seria a coisa mais terrível e horrível. Eu diria que é precisamente esta forma de reação que na verdade se opõe à consciência utópica na maior parte das vezes. A identificação com a morte é aquela que vai além da identificação das pessoas com as condições sociais existentes e nas quais elas se estendem. Consciência utópica significa uma consciência para a qual a possibilidade de as pessoas não terem mais que morrer não tem nada de horrível, mas é, pelo contrário, aquilo que realmente é desejado. Além disso, é muito surpreendente — você falou sobre a tecnificação manual (Zurhandenheit) antes — é muito surpreendente que Heidegger, até certo ponto, já tenha lançado calúnia sobre a questão da possibilidade de uma existência sem a morte como um mera questão que diz respeito ao fim da existência (Daseinsende), e ele era da opinião de que a morte, por assim dizer, manteria sua dignidade absoluta, ontológica e, portanto, essencial, apenas se a morte desaparecesse onticamente (isto é, no reino do existente) — que esta santificação da morte ou tornar a morte um absoluto na filosofia contemporânea, que de qualquer forma considero a anti utopia absoluta, é também a categoria chave. Assim, eu diria que não existe uma categoria única pela qual a utopia se permita ser nomeada. Mas se alguém quiser ver como todo este assunto se resolve, então esta questão é realmente a mais importante.
Krüger: Sr. Bloch, aceitaria o que foi elaborado até agora, que, até certo ponto, é na verdade o medo que as pessoas têm da morte, o medo de que tenham de morrer, que é a raiz mais profunda e também a mais legítima do seu pensamento utópico?
Bloch: Sim. A preocupação com a morte aparece em duas áreas: num caso, na medicina, onde é prática, empírica ou vocacional, por assim dizer; no outro, na religião. O Cristianismo triunfou nos primeiros séculos com o chamado: “Eu sou a ressurreição e a vida!” Triunfou com o Sermão do Monte e com a escatologia. De fato, a morte representa a contra-utopia mais difícil. Pregar o caixão põe, no mínimo, fim a todas as nossas séries individuais de ações. Ou seja, também deprecia o antes. E quando agora não há mais nada? Há uma imagem de desespero de Voltaire — o desespero total de um náufrago que nada nas ondas e luta e se contorce pela vida quando recebe a mensagem de que este oceano em que se encontra não tem costa, mas sim a morte. está completamente no agora em que se encontra o náufrago. É por isso que o esforço do nadador não levará a nada, pois ele nunca pousará. Sempre permanecerá o mesmo. É certo que esta contra-utopia mais forte existe, e isso deve ser dito para tornar as coisas mais difíceis. Caso contrário, não existiria de forma alguma aquela “criatura” heideggeriana (Wesen), se não houvesse algo aqui na realidade que é inevitável e não tem história até agora e nenhuma mudança no processo real — portanto, se esta própria realidade não se protegeu tão extraordinariamente do caso de teste. E aqui tocamos na área da sensação de liberdade. Está relacionado com os “sonhos de uma vida melhor”, que retrata as utopias sociais, mas também se distingue delas. Nas utopias sociais, em particular, as melhores condições de vida comunitária possíveis são determinadas através da liberdade ou da ordem. A liberdade aqui é uma variável ou auxiliar para a melhor vida possível. A liberdade como sentimento não aparece na utopia, mas na lei natural e, certamente, na lei natural liberal do século XVIII, em conexão com o andar ereto, em conexão com a dignidade humana, que só é garantida pela liberdade. William Tell e os dramas de Alfieri estão repletos de grandes figuras da liberdade, que se posicionam de forma independente e gritam: “Nos tiranos!” Aqui se encontra a lei natural, e ela também está dentro do domínio da possibilidade objetiva e real, mas não é o mesmo que utopia social. Em outras palavras, há duas partes utópicas: as utopias sociais como construções de uma condição em que não há pessoas trabalhadoras e sobrecarregadas; e o direito natural, em que não há pessoas humilhadas e insultadas. É o segundo que tentei retratar no meu livro Direito Natural e Dignidade Humana. Agora também há um terceiro. Contudo, não é o milagre, mas a morte, que é o filho mais querido da fé e é a melhor forma de o expressar. Ainda assim, é necessário um milagre para tirar a morte de vista. Isto significa, então, a ressurreição de Cristo, isto é, fé, ou “Quem me salvará das garras da morte?” como dito na Bíblia, no Novo Testamento. Isto é transcendental. Isto é algo que não podemos fazer. Portanto, precisamos da ajuda do batismo, da morte e da ressurreição de Cristo. No processo, o utópico é transcendido na escolha dos seus meios possíveis. E, no entanto, pertence à utopia.
Adorno: Sim, eu creio nisto, também. De fato, a questão aqui não diz respeito a conceber a eliminação da morte como um processo científico de tal forma que se cruza o limiar entre a vida orgânica e a inorgânica através de novas descobertas. Na verdade, acredito que sem a noção de uma vida livre, livre da morte, a ideia de utopia, a ideia de utopia, não pode sequer ser pensada. Por outro lado, há algo que você se referia sobre a morte que eu diria que foi muito correto. Há algo profundamente contraditório em toda utopia, a saber, que ela não pode ser concebida sem a eliminação da morte; isso é inerente ao próprio pensamento. O que quero dizer é o peso da morte e tudo o que está ligado a ela. Onde quer que isto não seja incluído, onde o limiar da morte não seja considerado ao mesmo tempo, não pode realmente haver utopia. E parece-me que isto tem consequências muito pesadas para a teoria do conhecimento sobre a utopia — se posso dizer de forma grosseira: não se pode traçar uma imagem da utopia de uma forma positiva. Toda tentativa de descrever ou retratar a utopia de forma simples, isto é: seria deste modo, seria uma tentativa de evitar a antinomia da morte e de falar da eliminação da morte como se a morte não existisse. Essa é talvez a razão mais profunda, a razão metafísica, pela qual só se pode realmente falar de utopia de uma forma negativa, como é demonstrado nas grandes obras filosóficas de Hegel e, ainda mais enfaticamente, de Marx.
Bloch: “Negativo” não significa “depreciando…”
Adorno: Não, não “na depreciação da utopia”, mas apenas na negação determinada daquilo que, porque essa é a única forma em que a morte também está incluída, pois a morte nada mais é do que o poder do qual é apenas como, por outro lado, é também a tentativa de ir além dele. E é por isso que acredito — tudo isso agora é muito provisório — no mandamento de não “retratar a utopia”. ou o mandamento de não conceber certas utopias em detalhes como Hegel e Marx fizeram…
Bloch: Hegel?
Adorno: Hegel fez isso na medida em que depreciou o reformador mundial em princípio e colocou em oposição a ideia da tendência objetiva — isto é o que Marx adotou diretamente dele — e a realização do absoluto. Em outras palavras, aquilo que se poderia chamar de utopia nas obras de Hegel, ou que se deve chamar de utopia em sua juventude, surgiu neste exato momento. O que se quer dizer aqui é a proibição de retratar uma imagem de utopia, na verdade por causa da utopia, e isso tem uma conexão profunda com o mandamento: “Não farás uma imagem esculpida!” Esta foi também a defesa que realmente se pretendia contra a utopia barata, a falsa utopia, a utopia que pode ser comprada.
Bloch: Eu concordo com você completamente. Isto nos leva de volta à primeira questão real, por assim dizer, e ao estado real de coisas onde a utopia se difunde, na medida em que a retrato como sendo (ser) ou na medida em que o retrato como alcançado, mesmo que isso seja apenas em parcelas. A parcela de ter sido alcançada já está incluída quando posso retratá-la em um livro. Aqui pelo menos já se tornou real e, como você disse, “transformado em imagem”. A pessoa está assim enganada. Difunde-se e há uma reificação de tendências efêmeras ou não efêmeras, como se já fosse mais do que ser-em-tendência, como se o dia já estivesse aí. Assim, a rebelião iconoclasta contra tal reificação é agora completamente correta neste contexto. E o descontentamento deve manter-se em guarda, para o qual a morte certamente fornece uma motivação contínua. Na verdade, a morte não é “Agora ele deve partir”, como disse o velho Schopenhauer; pelo contrário, perturba-nos constantemente, de modo que não podemos ficar satisfeitos, por maior que seja a satisfação e por mais milagres econômicos e estados de bem-estar social que existam. Mas isso continua a existir, um ‘não deveria ser’ do utópico, do anseio por uma ‘entrada em ordem’ ou um ’em geral’, onde estaria a liberdade, onde tudo estaria certo ou juntos num sentido muito mais profundo, num sentido mais abrangente do que a utopia social o retrata. Esse anseio está presente, e existe — de voltar à morte — o medo humano da morte, que é totalmente diferente do medo animal da morte. Em outras palavras, existe esse medo da morte que é realmente retratado em uma imagem e é baseado na rica experiência que os humanos tiveram e na sensação de que múltiplos objetivos se desfazem. Pois não existe utopia sem objetivos múltiplos. Num mundo não teleológico não existe tal coisa. O materialismo mecânico não pode ter utopia. Tudo está presente nele, mecanicamente presente. Assim, o facto de existir uma tal sensibilidade em relação a um “deveria ser” demonstra que também existe utopia nesta área onde ela tem mais dificuldade, e acredito, Teddy, que estamos certamente de acordo aqui: o A função essencial da utopia é uma crítica do que está presente. Se já não tivéssemos ultrapassado as barreiras, não poderíamos sequer percebê-las como barreiras.
Adorno: Sim, de qualquer forma, a utopia está essencialmente na negação determinada, na negação determinada daquilo que apenas é, e ao concretizar-se como algo falso, aponta sempre ao mesmo tempo para o que deveria ser. Ontem você citou Espinosa em nossa discussão com a passagem “Verum index sui et falsi” 7. Eu cometi uma variação levemente disso no sentido do princípio dialético da negação determinada e disse: Falsum — a coisa falsa – index sui et veri 8. Isso significa que a coisa verdadeira se determina através da coisa falsa, ou através daquilo que se faz falsamente conhecido. E na medida em que não nos é permitido traçar o quadro da utopia, na medida em que não sabemos o que seria a coisa correta, sabemos exatamente, com certeza, o que é a coisa falsa. Na verdade, essa é a única forma sob a qual a utopia nos é dada. Mas o que quero dizer aqui — e talvez devêssemos falar sobre isso, Ernst — este assunto também tem um aspecto muito confuso, pois algo terrível acontece devido ao fato de estarmos proibidos de conceber uma figura. Para ser mais preciso, entre aquilo que deveria ser definido, imagina-se que ele seja inicialmente menos definido, na medida em que é afirmado apenas como algo negativo. Mas então — e isto é provavelmente ainda mais assustador — o mandamento contra uma expressão concreta da utopia tende a difamar a consciência utópica e a engoli-la. O que é realmente importante, porém, é a vontade de que seja diferente. E é definitivamente verdade que o horror que vivemos hoje no Oriente está parcialmente ligado ao fato de que, como resultado do que Marx criticou no seu próprio tempo sobre os utópicos franceses e Owen, a ideia de utopia na verdade desapareceu completamente da concepção de socialismo. Assim, o aparato, o como, os meios de uma sociedade socialista têm precedência sobre qualquer conteúdo possível, pois não é permitido dizer nada sobre o conteúdo possível. Assim, a teoria do socialismo que é decididamente hostil à utopia tende agora realmente a tornar-se uma nova ideologia preocupada com a dominação da humanidade. Acredito que me lembro da época em que você teve conflitos em Leipzig, quando Ulbricht — não quero citar isso porque não tenho certeza se minha memória está correta — fez uma declaração contra você naquela época: Tal utopia não pode de forma alguma ser realizada. Ora, esta foi exatamente uma frase filisteu, isto é, que não queremos de forma alguma que se realize. Em contraste com tudo isto, devemos ter uma coisa em mente. Se for verdade que uma vida em liberdade e felicidade seria possível hoje em dia, então esta única coisa assumiria uma das formas teóricas de utopia para a qual certamente não estou devidamente qualificado e, tanto quanto posso ver, você também não. Isto é, nenhum de nós pode dizer o que seria possível dada a situação atual das forças de produção — isto pode ser dito concretamente, e isto pode ser dito sem traçar uma imagem do mesmo, e isto pode ser dito sem arbitrariedade. Se isto não for dito, se esta imagem não puder — quase gostaria de dizer — aparecer ao nosso alcance, então basicamente não saberemos qual é a verdadeira razão da totalidade, por que todo o aparelho foi posto em movimento. Desculpem-me se assumi o inesperado papel de advogado do positivismo, mas acredito que, sem este elemento, nada se poderia fazer numa fenomenologia da consciência utópica.
Krüger: Sr. Bloch, posso lhe perguntar novamente: Você aceitaria o que o sr. Adorno disse sobre o elemento utópico ter desaparecido completamente do socialismo que governa o mundo oriental hoje?
Bloch: Com o adendo de que também desapareceu no Ocidente e que existem tendências semelhantes que reproduzem a unidade da época apesar de contrastes tão grandes.
Adorno: D’accord.
Bloch: Oeste e Leste estão de acordo. Eles estão sentados no mesmo barco miserável em relação a este ponto: nada de utópico deveria ser permitido existir. Mas agora há uma diferença entre o mandamento contra a projeção de um filme e a advertência ou ordem para adiar a realização disso. O mandato, ou melhor dizendo, o princípio do trabalho, que era necessário para Marx, para não dizer muito mais sobre o utópico — este princípio só deveria ser polêmico por algum período de tempo, curto ou longo; foi dirigido contra os utópicos abstratos, que foram os precursores e que acreditavam que bastava falar à consciência dos ricos e eles começariam a serrar o galho em que estavam sentados. Marx opôs-se à superestimação do intelecto do povo, uma superestimação que era característica dos socialistas utópicos. Em outras palavras, o interesse desempenhou aqui um papel, assim como a visão hegeliana (Blick) pela concretude. Isto era certamente necessário como remédio contra o pensamento especulativo desenfreado, contra o espírito especulativo desenfreado da época. Sem ele, Das Kapital (O Capital) provavelmente nunca teria sido escrito e talvez não pudesse ter sido escrito. A virada contra a utopia que foi condicionada pelos tempos teve certamente efeitos terríveis. Muitos dos terríveis efeitos que surgiram devem-se ao fato de Marx ter apresentado muito pouco do retrato, por exemplo, na literatura, na arte, em todos os possíveis assuntos deste tipo. Apenas aparece o nome de Balzac; caso contrário, há principalmente espaço vazio em vez de iniciativas marxistas para alcançar uma cultura superior que teria sido possível. Considero esta uma condição que pode ser explicada histórica e cientificamente, e que no momento em que esta situação histórico-científica não estiver mais diante de nós, quando não sofrermos mais de uma superabundância de utopismo, ela se tornará desprovida de sentido. As consequências que daí decorreram foram terríveis, pois pessoas numa situação completamente diferente simplesmente regurgitam as declarações de Marx num sentido literal. Do ponto de vista marxista, é definitivamente necessário agir como um detetive e rastrear e descobrir do que se trata cada caso – sem algum tipo de positivismo. Fazendo isso, pode-se acertar as coisas, mas não se pode esquecer aquela outra coisa – utópica. Pois o propósito do exercício não é o tecnocrático…
Krüger: Qual seria o propósito do exercício?
Bloch: Nós conversamos antes sobre a totalidade da qual tudo depende. Por que alguém se levanta de manhã? Como surgiu uma situação tão especialmente marcante, já em meados do século XIX, que permitiu a Wilhelm Raabe escrever a seguinte frase: Quando me levanto de manhã, a minha oração diária é, conceda-me hoje a minha ilusão, a minha ilusão diária. Devido ao fato de que as ilusões são necessárias, tornaram-se necessárias para a vida em um mundo completamente desprovido de consciência utópica e pressentimento utópico…
Adorno: O mesmo tema também está presente no trabalho de Baudelaire onde ele exalta a mentira de modo bem similar, e ainda assim, há bem poucos outros paralelos entre Baudelaire e Raabe.
Bloch: Não teria existido uma Revolução Francesa, como Marx declarou, sem as ilusões heroicas que a lei natural engendra. É claro, elas não se tornaram realidade, e o que se tornou real para eles, o mercado livre da burguesia, não é de forma alguma aquilo que foi sonhado, embora desejado, esperado, exigido, como utopia. Assim, agora, se surgisse um mundo que é impedido por razões aparentes, mas que é inteiramente possível, poder-se-ia dizer, é surpreendente que não o seja — se um mundo em que a fome e as necessidades imediatas fossem eliminadas, inteiramente em contraste até a morte, se este mundo finalmente “pudesse respirar” e seria liberado, não haveria apenas banalidades que surgiriam no final e prosa cinzenta e uma completa falta de perspectivas e perspectivas em relação à existência aqui e ali, mas também haveria liberdade da conquista em vez da liberdade para ganhar, e isso proporcionaria algum espaço para dúvidas tão ricamente prospectivas e o incentivo decisivo para a utopia que é o significado da curta frase de Brecht, “Algo falta”. Esta frase, que está em Mahagonny, é uma das frases mais profundas que Brecht já escreveu, e está em duas palavras. O que é esse “algo”? Se não for permitido que seja representado num quadro, então irei retratá-lo como se estivesse em processo de ser (seiend). Mas não se deveria permitir eliminá-la como se realmente não existisse, para que se pudesse dizer o seguinte sobre ela: “É sobre a salsicha.” Portanto, se tudo isso estiver correto, acredito que a utopia não pode ser removida do mundo Apesar de tudo, e mesmo a tecnologia, que deverá emergir definitivamente e estará no grande reino da utopia, formará apenas pequenos setores. Essa é uma imagem geométrica, que não tem lugar aqui, mas outra imagem pode ser encontrada no velho ditado camponês, não há dança antes da refeição. As pessoas devem primeiro forrar o estômago e depois podem dançar. Essa é uma conditio sine qua non por poder falar sinceramente do outro sem que isso seja usado para o engano. Somente quando todos os convidados se sentarem à mesa, o Messias, Cristo pode vir. Por isto, Marxismo em sua totalidade, mesmo quando apresentado em sua forma mais esclarecedora e antecipado em toda a sua realização, é somente uma condição para a vida em liberdade, vida na felicidade, vida na possível realização, vida com conteúdo.
Adorno: Posso acrescentar algo? Chegamos estranhamente perto de uma prova ontológica de Deus, Ernst…
Bloch: Isso me surpreendeu!
Adorno: Tudo isso vem do que você disse quando usou a frase emprestada de Brecht — algo está faltando — uma frase que na verdade não poderíamos ter se as sementes ou o fermento do que esta frase denota não fossem possíveis. Na verdade, eu pensaria que, a menos que não haja nenhum tipo de vestígio da verdade na prova ontológica de Deus, isto é, a menos que o elemento da sua realidade também já esteja transmitido no poder do próprio conceito, não só poderia não haver utopia, mas também não poderia haver nenhum pensamento.
Krüger: Na verdade, esse é o conceito que gostaria de apresentar para concluir nossa discussão. Já tocamos nisso, professor Adorno. Já havíamos dito que utopia refere-se ao que falta. Portanto, a questão a colocar no final é: até que ponto os seres humanos realizam a utopia? E na verdade aqui a palavra “esperança” é devida. Aqui poderíamos usar uma explicação sobre o que a esperança realmente é e o que não é.
Bloch: Na esperança, o assunto diz respeito à perfeição e, nessa medida, diz respeito à prova ontológica de Deus. Mas a criatura mais perfeita é posta por Anselmo como algo fixo que inclui ao mesmo tempo o mais real. Tal princípio não é defensivo. Mas o que é verdade é que toda e qualquer crítica à imperfeição, à incompletude, à intolerância e à impaciência já pressupõe, sem dúvida, a concepção e o desejo de uma perfeição possível. Caso contrário, não haveria imperfeição se não houvesse no processo algo que não deveria existir, se a imperfeição não circulasse no processo, em particular, como elemento crítico. Uma coisa certamente é contra, e uma vez resolvidos alguns mal-entendidos, estaremos de acordo aqui: esperança é o oposto de segurança. É o oposto de otimismo ingênuo. A categoria de perigo é sempre interna a ela. Esta esperança não é confiança…
Krüger: A esperança pode ser desapontada.
Bloch: A esperança não é confiança. Se não pudesse se desapontar, não seria esperança. É parte dela. Caso contrário, seria colocada em um filme. Ela poderia ser negociada. Ele capitularia e diria: era isso que eu esperava. Assim, a esperança é crítica e pode diminuir, na medida em que o declínio não é aceito, mesmo quando este declínio ainda é muito forte. Esperança não é confiança. Esperança é cercada por perigos, e é a consciência do perigo e ao mesmo tempo a negação determinada do que continuamente faz o oposto objeto de esperança possível. A possibilidade não é um patriotismo festivo. O oposto também é no possível. O elemento de entrave é também no possível. O entrave é implicado na esperança além da capacidade para ser bem sucedido. Mas eu emprego a palavra ‘processo,’ no qual tem vários sentidos – químico, médico, legal e religioso. Não haveria processo algum se não houvesse algo que não deveria ser assim. Para concluir, gostaria de citar a frase, uma bem simples, estranhamente suficiente de Oscar Wilde: “Um mapa do mundo que não inclua Utopia não vale a pena nem olhar de relance.”
Gabriel Henrique
Gabriel Henrique é psicanalista e graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Membro do grupo de traduções Menos Um e menos um na multidão que interessa na trinca Hegel-Marx- Psicanalise.
- O Grande Sr. Pief é um personagem de um livro de Wilhelm Busch: Plisch und Plum (1882). Busch escreveu o seguinte poema sobre ele: Zugercist in diese Gegend/ Noch vie! mchr als schr vermiigend/ In der Hand das Perspektiv/ Kam ein Mister namens Pief/ “Warum soil ich nicht beim Gehen”/ Sprach er, “in die Ferne sehen?/ Schin ist es anderswo/ Und hier bin ich sowicso.” (Acabei de chegar nessa região/ Muito mais que muito rico/ em sua mão um telescópio/ Veio um senhor de nome Pief/ “Por que não deveria olhar,”/ Ele disse, “para longe enquanto caminho?/ Também é lindo em outro lugar/ E aqui estou eu, de qualquer forma.”) ↩︎
- Richard Dehmel (1863–1920) foi um importante precursor do expressionismo na Alemanha. ↩︎
- Os julgamentos de Galileu aconteceram em Roma em 1615/16 e em 1633. ↩︎
- A Categoria subjetiva- reflexiva denota a reflexão de um sujeito em contraste a uma categoria (matéria) que é presente no “objeto” na realidade em si. ↩︎
- Zuhandenheit (tecnificação das mãos) é um termo desenvolvido por Heidegger para descrever as coisas nas quais as pessoas lidam no seu cotidiano, por exemplo, instrumentos. ↩︎
- Bloch está se referindo aqui ao livro de Adorno O Jargão da Autenticidade (Jargon der Eigentlichkeit, 1964), no qual ele, de modo muito afiado, contesta a linguagem de Heidegger e a ideologia do existencialismo. ↩︎
- A verdade é o signo de si mesma e o falso. ↩︎
- O falso é o signo de si e o correto. ↩︎