“(…) para nossos propósitos, pouco importa que pensamentos estranhos ocorram para as pessoas na Albânia ou em Burkina Faso, pois estamos interessados no que poderíamos, em certo sentido, chamar de herança ideológica comum da humanidade”

The End of History? Francis Fukuyama. 

 

Em sua análise da obra Minha vida de Menina,[1]Schwarz, Roberto. Outra Capitu. In Duas Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Roberto Schwarz chama a atenção do público para o curioso materialismo em ação na prosa de Helena Morley. Ao deixar de lado a busca pela originalidade das memórias ali expostas, o crítico trabalha com o material que tem em mãos e neutraliza a questão que vai entre o diário da menina e a intenção madura da autora em rearranjar aquilo que ele chama de anedotário familiar.[2]Idem, p. 46. Isso porque o resultado do livro é tão surpreendente e tão dependente da inocência da menina narradora que, seja como for, o que espanta no livro é seu potencial literário — esse sim indiscutível — em traduzir uma sociedade em funcionamento,[3] Idem, p. 50. no caso a brasileira no fim do século XIX. Central é compreender: como é possível às mãos modestas e despretensiosas de uma criança (ou de uma mulher sufocada pelos imperativos patriarcais de sua época) encontrar a beleza da vida civil e colocá-las com maestria no papel, ainda mais em um livro de estreia capaz de chamar a atenção de grandes autores e críticos? Talvez por isso mesmo. Em Morley há um princípio básico da análise materialista que cabe, com notória seriedade, aos olhos da criança: trata-se, claro, do senso de realidade colado a honestidade genuína que só um narrador infantil, ou aquele que guarde comunhão com a infância,[4]Para Walter Benjamin, essa comunhão está em todos aqueles que não se encaixam de imediato na vida útil do trabalho. “As crianças fazem histórias a partir dos restos da história, o que as … Continue reading pode manejar. Materialismo por ser o meio que acompanha honestamente a vida e a confusão do cotidiano. Simples assim, ou não tão simples, pois é preciso coragem para, depois de crescido, assumir o quanto a realidade espanta e acolhe em suas contradições. 

Coisa parecida ocorreu há pouco tempo na Inglaterra, ao menos aqui vamos assumir o risco dessa semelhança. Livre: Virando adulta no fim da história (2021), livro de estreia da escritora Lea Ypi, chama a atenção já pelo título, afinal sabemos do peso crítico e atualíssimo que o fim tem em nossos tempos. Aliás, para não ser leviana, qual tempo do fim? É isso que o leitor vai descobrir aos poucos, pois não conta com grande informação biográfica de uma autora estreante, albanesa, ainda por cima. Levando a sério o título e sem adentrar a obra, só pode mesmo se tratar de uma afronta. Vá lá, nossa menina, Morley, apenas narra sua singela vida num país que ainda nem se formou: a menina cresce junto de seu solo. Aqui a ideia de romance de formação pode ser levada a cabo, mesmo que a intenção fosse infinitamente menor que essa. Já Ypi eleva sua vida desconhecida ao patamar histórico de saída: não basta resolver narrar suas memórias, ela já é, por si mesma, um encontro com os rumos da humanidade ou, como ela mesma determina, com o fim dessa era geológica onde os homens ainda imaginavam fazer história.[5] A epígrafe do livro não nos deixa mentir, se trata de uma célebre citação de Rosa Luxemburgo “Os seres humanos não fazem história por vontade própria. Mesmo assim o fazem.” O que importa, no entanto, é o acerto do tom repleto de ousadia e graça desafiadora que a narradora consegue atingir.

O capítulo inicial do livro tem título direto e bastante breve: Stálin!, sacada de mestre também na escolha de seu pontapé. O leitor tem entrada nas memórias da autora por uma das figuras mais importantes do século XX, onde começamos a compreender, bem ou mal, porque a vida comum pode ser elevada ao patamar de observação literária, biográfica, de grande relevância ao interesse público. Algo como se fôssemos lembrados que estávamos lá, compartilhando o tempo e o espaço das grandes figuras históricas. Melhor ainda é o gracejo pueril do primeiro parágrafo, onde nos revela que nunca questionou o sentido da palavra liberdade, até abraçar pela primeira vez Stálin, que logo vamos descobrir não se tratar exatamente do líder soviético, mas de uma estátua com a cabeça decepada no centro de Tirana, capital da Albânia, quando essa ainda era uma república socialista. Mas entre o abraço da menina e a revelação de que se trata de uma estátua, vão algumas linhas que poderiam parecer mero excesso descritivo, quando na verdade são períodos muito bem escritos que ganham altura de boa história a ser ouvida. É por ali que ela nos conta que a professora Nora, responsável pela disciplina de Economia política e Materialismo dialético para o primário (!), sempre descreveu Stálin como um homem de grande estatura, tão grande quanto Napoleão, e que o mais importante era que ele sorria com os olhos, demonstrando a segurança e tranquilidade daqueles que estão do lado certo da história. Verdade ou não o ensinado pela admirada professora às crianças, o que espanta a menina e a faz questionar a liberdade é o que um homem tão magnífico e bem intencionado quanto este estaria fazendo sem cabeça em praça pública? Por que ele foi guilhotinado como os traidores da Revolução Francesa, que ela soubera serem reacionários dignos da morte segundo as mesmas aulas? É assim também que descobrimos que o abraço na reprodução do líder só aconteceu porque a garota fugiu assustada de um tumulto popular, que pedia o fim da ditadura do partido de Enver Hoxha (líder que é chamado carinhosamente por Lea e seus colegas de escola de “Tio Enver”) e o início de eleições livres em todo país. O estranhamento é completo.

Lembrei-me vagamente de algo chamado protesto do Muro de Berlim no ano anterior. Havíamos conversado sobre isso na escola, e a professora Nora explicou que estava relacionado à luta entre imperialismo e revisionismo, e que cada um segurava um espelho para o outro, mas ambos os espelhos estavam quebrados. Nada disso nos dizia respeito. Nossos inimigos tentavam periodicamente derrubar nosso governo, mas fracassavam com a mesma regularidade. No final dos anos 1940, nos separamos da Iugoslávia quando esta rompeu com Stálin. Na década de 1960, quando Khrushchov desonrou o legado de Stálin e nos acusou de “desvio nacionalista de esquerda”, interrompemos as relações diplomáticas com a União Soviética. No final dos anos 1970, abandonamos nossa aliança com a China quando esta decidiu enriquecer e trair a Revolução Cultural. Não importava. Apesar de cercados por inimigos poderosos, sabíamos que estávamos do lado certo da história.

(YPI. 2021, p.22)

Agora sabemos que se trata de 1990, precisamente dezembro, que a narradora tinha onze anos e que levava uma vida pacata, convicta de sua formação para o comunismo, até que a “liberdade” veio perturbar sua paz. Formação subjetiva e levante objetivo passam a desestabilizar a tranquilidade das pequenas certezas de uma garota muito atenta. Interessante é notar como um possível resquício de diário foi reelaborado por Ypi com datas precisas, informações de época coesas, sem abandonar o assombro que os eventos lhe causaram no passado, como se a memória da autora, através do tom irônico e inocente da narradora, fosse capaz de atualizar aqueles dias conturbados da história da Albânia e se materializar diante de nós. É desde cedo que nos enxergamos na obra, plenamente imersos de maneira cômica e lúdica com problemas políticos sérios, que ainda rondam os debates teóricos de esquerda. 

E é aqui que encontramos a curiosa função literária da criança e sua capacidade inesperada de pautar a verdade política de uma era. Lea Ypi, além de estreante na prosa, é professora de teoria política na London School of Economics e formada em Filosofia e Literatura pela Universidade de Roma, La Sapienza. Por se tratar de gênero autobiográfico, poderíamos questionar mais uma vez os motivos que levam a autora a renegar o ensaio, a análise de conjuntura, o artigo ou os tratados filosóficos como a forma escrita da sua história a partir da Albânia. Certamente porque o impacto literário não seria o mesmo e tampouco chegaria a profundidade que Livre chegou. É como se, para acessar a verdade do mundo, a professora marxista não pudesse repetir os jargões ideológicos de Nora. A vida é ainda mais delicada que todas as notas teóricas elaboradas na universidade ou, para voltar à análise de Schwarz, o livro funciona também como prova robusta de que a beleza existe e é desse mundo. Diferente de Morley, aqui não há muita dúvida de que, se os diários existiram em algum momento, eles foram reescritos pelas mãos maduras da professora. Do título ao epílogo, a erudição do conjunto destoa da ironia jovem e inexperiente da narradora que vai mobilizando sua formação pessoal para contar uma anedota íntima. Curioso também é notar que mesmo no fim do livro, fora os agradecimentos que não sei se podemos incluir ou não como parte da autobiografia, a parte adulta de seus dados biográficos não entra na conta narrativa. O público para ali, na sua escolha pela faculdade de Filosofia, através da premissa marxista da Tese Onze contra Feurbach: ocupar-se de mudar o mundo, como todos sabemos. O que a autora não nos conta, mas o livro entrega, é uma espécie de formulação pedagógica da formação dos sujeitos em tempos históricos degradantes. E isso ela não faz filosofando. É a descida da consciência (já consciente de si) ao vale dos comuns que elabora e constrói a espontaneidade da narradora, muito diferente de Morley aliás, pois importa sim demonstrar o erudito amadurecimento, mas com as mãos leves e a voz emprestada de sua vida de menina. A seriedade não carece de grandes pretensões, ao que tudo indica. 

 É a composição literária o que sustenta as contradições de ordem social, como por exemplo quando, sob o olhar da narradora, podemos relembrar que o socialismo real estruturava a vida daquelas pessoas e, tanto por isso, mobilizava o imaginário, a moral, a solidariedade, a educação e a relação com as mercadorias; por outro lado, é só através da voz narrativa que ganham os familiares, bem como suas descobertas de menina, que nos faz acessar os inúmeros problemas de uma sociedade burocratizada, vinculada aos trâmites ideológicos de um partido em frangalhos, colocada à prova diante da economia global, e mentindo à população quando diz ser possível segurar a revolução comunista num único país. O livro nos humaniza ao ponto de deixar claro que o jogo inescrupuloso das potências econômicas e militares durante a Guerra Fria não se importava com nenhuma necessidade ou desejo dos povos, mas ao contrário, o massacrava sempre em nome de uma boa e mais completa ordem. Tudo somado, o resultado é apresentado com toque de gênio pela criança que amadurece e amarga seu olhar diante da guerra civil que foi oferecida enquanto destino a ela e aos seus compatriotas em 1997. Para usar uma expressão de Adorno e Horkheimer, a partir da narrativa é possível encontrar “as etapas onde a esperança se imobilizou”,[6] Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, p. 211tanto com o socialismo de Tio Enver quanto com as promessas da democracia liberal. O mundo soviético colapsado passa a revelar para a jovem ,enclausurada em casa com a avó Nini, ao som de tiros e confusão nas ruas, que a solução possível prometida pela liberdade não se concretizou, que não havia espaço para a palavra exercer seu movimento dentro de um processo histórico fantasmagoricamente duplo, que agora se revelará único.[7]É como se a prosa dessa criança pudesse revelar pela força da rememoração a tese de um dos livros mais audaciosos da década de 1990, a saber, O colapso da modernização, de Robert Kurz. O beco … Continue readingA apresentação dos fatos como a grande malha de corrupção que assola o país a partir das eleições livres lembram também os processos brasileiros da Era Collor, quando nos anos 90, prontos para celebrar a chegada da democracia, vimos o mundo ruir, fazendo brotar a constante sensação de insegurança econômica, gangsterização e desemprego. O fim dos chamados totalitarismos, para engendrar alguma cacofonia com a renegada Hannah Arendt, demonstrava o cunho ideológico da paz global: as ditaduras vencidas, a guerra fria encerrada, o que sobrou? De algum modo, era como se a disputa pela liberdade fosse um horizonte político comum, onde a experiência, no sentido forte do termo, pode juntar elementos da formação individual com uma instância coletiva. Esse era o fim de uma era histórica e Lea comenta;

Era como estar de volta a 1990. Havia o mesmo caos, a mesma sensação de incerteza, o mesmo colapso de Estado, o mesmo desastre econômico. Mas com uma diferença. Em 1990, não tínhamos nada além de esperança. Em 1997 a perdemos também. O futuro parecia sombrio. E, no entanto, tive de agir como se ainda houvesse um futuro, e tive que tomar decisões me imaginando nele.

(Ypi, 2021, p. 291)

Nunca houve tanto fim, como também anunciou Schwarz em Fim de Século e, apesar deles, seguimos imaginando que o futuro ainda era possível. O brilhante na obra dessa criança narradora é que ela não nos deixa esquecer tudo aquilo que ficou para trás, mas o faz de forma a atualizar o que ainda se desenvolve no interior dos sonhos coletivos enquanto expectativa política, ainda que muito apequenada. Também é a forma de dizer o que eleva o nível do debate: quem fala é uma criança que amou o comunismo, que viveu a transição caótica para o liberalismo e presenciou o abandono do ocidente às antigas regiões da União Soviética. E que também descobriu os horrores dos campos de trabalho e as perseguições políticas aos seus familiares e amigos dentro de um regime que se dizia popular. A descoberta final é que os adultos — essa gente grande que parece Stálin ou Napoleão — não vão oferecer uma saída aos miúdos. As crianças e seus companheiros que não partilham do pedantismo ou das certezas inabaláveis seguem brincando e narrando aos montes, como quem sabe que essa não é a sua guerra. Mas uma luta justa pela redistribuição dos biscoitos entre os pequenos que não tem só fome, mas desejo; uma luta que pode ser encampada imediatamente em ação direta pelo “bandinho” do bairro: essa sim, ainda vale o risco.


Nathalia Colli

É mestranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo e formada em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.

References
1 Schwarz, Roberto. Outra Capitu. In Duas Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
2 Idem, p. 46.
3  Idem, p. 50.
4 Para Walter Benjamin, essa comunhão está em todos aqueles que não se encaixam de imediato na vida útil do trabalho. “As crianças fazem histórias a partir dos restos da história, o que as aproxima dos inúteis, dos inadaptados e dos marginalizados”. Reflexões: O brinquedo, a criança, a educação. São Paulo: Summus, 1984. p. 14
5 A epígrafe do livro não nos deixa mentir, se trata de uma célebre citação de Rosa Luxemburgo “Os seres humanos não fazem história por vontade própria. Mesmo assim o fazem.” 
6 Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, p. 211
7 É como se a prosa dessa criança pudesse revelar pela força da rememoração a tese de um dos livros mais audaciosos da década de 1990, a saber, O colapso da modernização, de Robert Kurz. O beco sem saída revelado pelo esgotamento da acumulação prevista pelos critérios da modernização leva todos os paradigmas políticos para a beira do abismo. Em Ypi podemos ver a vida ruir em todas suas perspectivas com privilégio particular.

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