Por Slavoj Žižek

O Neuralink, que faria com que humanos recebessem implantes cerebrais legíveis por um computador, é a grande ideia mais recente de Elon Musk. Mas o controle digital de nosso pensamento seria um passo na direção errada.

No final de agosto, Elon Musk apresentou a primeira prova viva do sucesso de seu projeto “Neuralink” numa coletiva de imprensa em Los Angeles. Estava sendo apresentado o que ele chamou de “um porco saudável e feliz” com um implante que fez com que seus processos cerebrais fossem legíveis por um computador. Eu ficaria curioso para ouvir como ele sabia que o porco estava feliz…

De qualquer forma, o que nos foi contado foi uma história já conhecida.[1]  Musk enfatizou os benefícios do Neuralink para a saúde (silenciosamente deixando de lado seu potencial para um controle inaudito sobre nossas vidas interiores) e anunciou que agora está procurando voluntários humanos para experimentá-lo.

Usando porcos primeiro, depois homens, faz-se um paralelo sinistro com a terapia de eletrochoque, que foi criada pelo psiquiatra Italiano Ugo Cerletti em 1938. Depois que Cerletti viu choques elétricos sendo aplicados em porco antes do abate, fazendo-os mais dóceis em seus momentos finais, ele se sentiu inspirado a realizar o mesmo tratamento em humanos.

Talvez este seja um golpe baixo contra Musk, pois os extremos devem ser evitados no que concerne ao Neuralink. Não devemos celebrá-lo como uma invenção que abre caminhos para a singularidade (uma autoconsciência coletiva divina), nem teme-lo como um perigo que nos fará perder nossa autonomia individual e nos transformará em engrenagens de uma máquina digital.

O próprio Musk está caindo num sonho ideológico, como visto no título e subtítulo de uma notícia recente no The Independent: “Elon Musk prevê que a linguagem humana se tornará obsoleta em apenas cinco anos: ‘nós ainda poderemos utilizá-la para fins sentimentais.’ O chefe do Neuralink disse firmemente que planeja conectar o dispositivo num cérebro humano em 12 meses …”

Mesmo se ignorarmos a inviabilidade técnica desse sonho, pensemos apenas sobre o que a realidade de nossas mentes compartilhando diretamente experiências– fora do esfera da linguagem – significaria, por exemplo, para o processo de sedução erótica.

Imagine uma cena de sedução entre dois sujeitos cujos cérebros estejam ligados de tal forma que suas linhas de pensamento sejam mutuamente acessíveis um ao outro[2]  Se meu possível parceiro pode experimentar diretamente a minha intenção, o que resta da complexidade dos jogos de sedução? Será que a outra pessoa reagirá com algo como: “OK, eu sei que você quer desesperadamente [3] me f****, então por que você está fica me perguntando todas essas coisas estupidas a respeito dos filmes que eu gosto e do que eu gostaria de jantar? Você não consegue sentir que eu nunca faria sexo com você?” Tudo acabaria num segundo.

Mais fundamentalmente, a distância entre nossa vida interior, nossas linhas de pensamento, e a realidade externa, é a própria base que faz com que nos percebamos como livres. Somos livres em nossos pensamentos precisamente na medida em que eles assumem uma distância da realidade, de tal forma que podemos brincar com eles, conduzir experimentos de pensamento, nos envolver em sonhar, sem consequências diretas na realidade. Ninguém pode nos controlar lá.

Uma vez que nossa vida interior estiver diretamente ligada à realidade, de modo que nossos pensamentos produzirão consequências diretas nela – ou poderão ser regulados diretamente por uma máquina que faz parte da realidade e, neste sentido, não serão mais ‘nossos’ – nós efetivamente entraremos em um estado pós-humano.

O Neuralink deve, portanto, nos fazer levantar questões básicas: não só “Ainda seremos humanos se estivermos imersos num cérebro interconectado?” mas também “o que entendemos por ‘humano’ quando nos levantamos essas questões?”

Lidei com essas questões, inclusive novos e desconhecidos modos de controle social abertos pelo Neuralink, no meu livro ‘Hegel in a Wired Brain’. Não devemos esquecer que, se posso regular diretamente processos na realidade com meus pensamentos – por exemplo, eu apenas penso que minha máquina de café deve preparar um latte macchiato, e isso acontece – o vínculo causal também funciona na direção oposta. Esses que controlam a máquina digital que ‘lê a minha mente’ também podem controlar minha mente e implantar pensamentos nela.

O que é importante para nós hoje, no meio da epidemia de COVID-19, é ver que o distanciamento social – ou talvez, distanciamento corporal – suplementa a visão do Neuralink. Como?

O distanciamento físico como uma defesa contra o contágio leva a uma intensificação da conectividade social, não apenas entre as famílias em quarentena, mas também para com os outros (principalmente por meio da mídia digital). Mas também houve explosões de proximidade física, como raves e festas, como reação a ambos. A rave apresenta não só proximidade corporal, mas também menos controle social e, portanto, mais distância da sociedade em geral.

O que aconteceu com a epidemia não foi apenas uma simples passagem da vida comunal para o distanciamento, mas uma passagem muito mais complexa de uma constelação da proximidade e do distanciamento para uma outra.

O frágil equilíbrio que existia pré-epidemia entre a vida comunal e a esfera privada é substituída por uma nova constelação em que a diminuição do espaço de interação real/corporal – devido às quarentenas, etc. – não leva a mais privacidade, mas dá origem a novas normas de dependência social e controle. Não se esqueça de que mesmo os drones foram usados para nos controlar na quarentena.

E assim, a perspectiva que apresenta o Neuralink se encaixa idealmente na visão de uma nova sociedade, na qual estaremos fisicamente isolados, vivendo em bolhas de proteção e, simultaneamente, compartilhando o mesmo espaço mental. Em nossas vidas psíquicas, estaremos mais próximos uns dos outros do que jamais estivemos, imersos no mesmo espaço.

O que nós precisamos agora não é só de mais proximidade física dos outros, mas também mais distância psíquica dos outros.


Autor: Slavoj Žižek

Publicado:  1 Setembro, 2020

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Tradução: Marcus Apolinário


Revisão: Pedro Naccarato

Arte: Felipe Aiello

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