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Original:(L) © Getty Images/SOPA Images/LightRocket/Stanton Sharpe; (R) © AFP / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Stephen Maturen


Sejam eles contra o lockdown do Covid-19 ou a brutalidade policial, os protestos que dominam os Estados Unidos decorrem de uma escolha de tipo “dinheiro ou vida”, onde as pessoas são forçadas a escolher o dinheiro. Os pobres são as vítimas, ajudando a encobrir o crime contra eles.

Nosso mundo está gradualmente afundando em loucura: em vez de solidariedade e ações globais coordenadas contra a ameaça do Covid-19, não só os desastres na agricultura proliferam, aumentando a perspectiva de uma fome massiva – gafanhotos estão invadindo regiões desde o leste da África até o Paquistão -, mas a violência política também está explodindo, sendo frequentemente ignorada pela mídia. Quão pouco lemos sobre os conflitos na fronteira militar, com vários feridos, entre Índia e China?

Numa época tão desesperadora, devemos ser desculpados de cair de tempos em tempos numa boa e velha fórmula de séries policiais, como a série britânica-francesa “Death in Paradise”.

Num dos últimos episódios, a motivação do assassino é a brutal humilhação e o tormento que sua vítima o submeteu na escola. Mortalmente ferido, a vítima percebe o sofrimento que ele causou e usa suas últimas forças para alterar a cena do crime, para que pareça que uma terceira pessoa tenha o assassinado, como forma de exonerar o verdadeiro assassino.

Há algo de nobre nesse gesto, um rastro de redenção autêntica. Mas a ideologia encontra um meio para perverter até gestos nobres como esses; ela pode obrigar a vítima, e não o criminoso, a voluntariamente apagar os rastros do crime e apresenta-lo como um ato de sua livre e espontânea vontade. Não é isso que milhares de pessoas comuns que protestam pelo fim do lockdown estão fazendo no paraíso chamado EUA?

“Dinheiro ou vida” não é uma escolha livre

 O rápido retorno à “normalidade”, como advogado por Trump e sua administração, expõe muitas pessoas a mortal ameaça da infecção – contudo, eles, mesmo assim, a exigem; cobrindo, portanto, qualquer vestígio dos crimes de Trump (e do capital).

No começo do século XIX, muitos mineiros no País de Gales rejeitaram capacetes e outros equipamentos de proteção caros, apesar deles reduzirem drasticamente a possibilidade de acidentes fatais que abundavam nas minas de carvão, porque os custos seriam deduzidos de seus salários.

Hoje parecemos regressar ao mesmo cálculo desesperado, que é uma nova e invertida versão da velha escolha forçada “dinheiro ou vida” (onde, claro, escolhe-se vida, mesmo que seja uma vida na miséria). Se hoje você escolher vida contra o dinheiro, você não sobreviverá, já que perderá o dinheiro e a vida. Então você precisa retornar ao trabalho para conseguir dinheiro para sobreviver – mas a vida que conseguirá é reduzida por uma ameaça de infecção e morte. Trump não é culpado de matar os trabalhadores, eles fizeram uma escolha livre – Trump, contudo, é culpado de oferecê-los uma escolha “livre” em que a única forma de sobreviver é arriscar a vida, e ele os humilha ainda mais colocando-os numa situação na qual eles devem lutar por seu “direito” de morrer e por seu local de trabalho.

Devemos contrastar esses protestos contra o lockdown com a explosão de raiva em curso desencadeada por mais uma morte no paraíso americano, a morte de George Floyd em Minneapolis. Embora a raiva dos milhares de negros que protestam contra esse ato de violência policial não esteja diretamente ligada à pandemia, é fácil discernir de seus antecedentes a clara lição das estatísticas de morte do Covid-19: negros e hispânicos tem mais chance de morrer em decorrência do vírus que americanos brancos. O surto apresentou, portanto, as próprias consequências materiais das diferenças de classe nos EUA: não é apenas uma questão de riqueza e pobreza, é também quase literalmente uma questão de vida ou morte, ambas quando lida-se com a polícia e com a pandemia.

Isso nos traz de volta ao nosso ponto de partida em “Death in Paradise”, ao gesto nobre da vítima em ajudar o assassino a apagar todos rastros de seu ato – um ato que foi, se não justificado, pelo menos compreensível como um ato de desespero. Sim, os manifestantes negros são frequentemente violentos, mas deveríamos mostrar à violência deles um pouco da mesma leniência que a vítima em relação ao assassino no episódio de “Death in Paradise”.

 


 

Autor: SLAVOJ ŽIŽEK

Publicado: 30 de maio de 2020

Original: Link aqui


Tradução: Ricardo Menezes


Revisão: Felipe Aiello

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