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Por Mladen Dolar


Hegel e Freud não têm nada em comum, ao que parece; há tudo para opô-los. Por um lado: o filósofo especulativo do Espírito Absoluto, cujo sistema abrangeu todas as esferas do ser – lógica, natureza, e espírito – e que é considerado como o filósofo mais obscuro e difícil de toda a tradição filosófica; de outro lado: um homem de formação médica, um terapeuta que, em todo seu trabalho, exerceu a prática clínica como sua diretriz e apenas gradualmente expandiu algumas ideias psicológicas nos maiores círculos de cultura, civilização e história. Por um lado: não apenas um filósofo, mas um filósofo par excellence, o exemplo paradigmático de um filósofo que encapsulou em seu sistema todos os temas e conquistas da tradição metafísica; por outro lado: um homem das ciências naturais que se opôs inflexivelmente à filosofia como tal e até viu tentativas de tornar a psicanálise em uma nova corrente filosófica como um dos maiores perigos de sua disciplina. Por um lado: não apenas um alemão, mas aparentemente um alemão par excellence, um modelo do espírito alemão ou mesmo o filósofo do Estado prussiano, como afirma o adágio; de outro lado: um judeu que já em seus dias de juventude experimentou a pressão do antissemitismo e, apesar de sua fama, viveu seus últimos dias em exílio, seus livros foram queimados por um regime que, ironicamente, evocava Hegel. E, finalmente, por um lado, o filósofo que confiou mais que qualquer um na história da filosofia sobre os poderes da razão, conceitos e conhecimento; de outro lado, alguém que mais do que qualquer outro se inspirou em algo que inerentemente escapa desses poderes ou apresenta suas fissuras – essa fissura constitui o próprio objeto da psicanálise, de entidades como o inconsciente e as pulsões.

Nesse último ponto, há algo que estranhamente conecta Hegel e Freud. Ambos sustentam o excesso, de modo que, quando alguém invoca seus nomes a temperatura aumenta, parece que não existe forma de poder falar sobre um ou outro de um ponto de vista neutro, objetivo e imparcial, para apenas os colocar em um lugar na galeria das grandes mentes, como se ambos, embora por razões opostas, representassem algo que o conhecimento estabelecido – o que Lacan chamou economicamente de discurso universitário – não pudesse aceitar. Ambos tendem a produzir seguidores zelosos ou igualmente inimigos zelosos; eles ainda mantêm a capacidade de provocar paixões, embora a natureza de seus excessos seja oposta. Hegel, o derradeiro professor universitário, se é que existia, como um excesso de conhecimento melhor resumido por sua reivindicação do Saber Absoluto – o momento em que uma forma de conhecimento faz uma reivindicação ao Absoluto é um ponto nevrálgico que nenhum discurso universitário pode digerir se é para manter seu comportamento de neutralidade e objetividade. Freud, com uma afirmação oposta para uma verdade errante, sem garantia e sem verificação usual, o que lhe nega credenciais acadêmicas. Em suma, o Saber Absoluto e o inconsciente, dois limites do conhecimento, o mais alto e o mais baixo – de um lado, o conhecimento que se esforça para superar seus limites pela reivindicação do Absoluto; de outro lado, um buraco no conhecimento, um desvio do conhecimento onde desejos, pulsões, sintomas e fantasias começam a se infiltrar. Se o Saber Absoluto e o inconsciente ainda funcionam como excessos insubstituíveis, qual poderia ser o elo entre eles?

Talvez alguém poderia dizer, prima facie, que o que Hegel e Freud têm em comum é que ambos juram pela ciência. Para Hegel, não é preciso procurar muito: ele publicou seu primeiro livro, Fenomenologia do Espírito, como a primeira parte de um trabalho mais geral intitulado O Sistema da Ciência; seu segundo livro chamava-se Ciência da Lógica; seu terceiro livro era Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Então, “ciência” é visivelmente sua palavra mestra. Existe uma tese nisso: qualquer ciência digna desse nome deve ter um fundamento filosófico, e qualquer filosofia digna de seu nome deve erguer a reivindicação da ciência, para que, finalmente, filosofia e ciência coincidam em sinonímia. Para Freud, a ciência que ele procura não deve se tornar filosofia e só será capaz de manter suas alegações científicas se ficar longe de filosofia. Ele se via enfaticamente como um homem da ciência, mas de uma ciência longe da noção que Hegel poderia ter.

Suas atitudes em relação à ciência podem ser ilustradas por dois ditos anedóticos. Hegel notoriamente sustentou que, se os fatos contradizem a teoria, então “um so schlimmer für die Fakten” – tão pior para os fatos. Isso pode ser visto como indicativo de uma suprema arrogância de uma filosofia que não percebe trivialidades como dados empíricos. Mas, para Hegel, os fatos não podem contradizer a teoria por causa de sua natureza humilde, mas porque eles são fatos apenas se apreendidos por um conceito; um fato pode adquirir a dignidade de um fato apenas em virtude de um conceito que o selecionou e o representou como relevante, de forma que não haja um terreno comum onde fatos e conceitos possam se encontrar, sem interação entre os dois e, se hover de fato uma confrontação, será apenas sempre entre conceitos e conceitos. A posição de Freud é sumarizada por uma afirmação de seu mentor em assuntos psiquiátricos, Charcot: “la théorie, c’est bon, mais ça n’empêche pas d’empêche pas d’exister”, ou a teoria está sempre certa, mas ela não impede que algo exista. Portanto, algo existe, a despeito da teoria, obstinadamente diante do conceito; a posição seria: não ceder ao que se apresenta e se reapresenta, apesar das teorias recebidas (incluindo as do próprio Freud, que não tinha escrúpulos em comprometer suas próprias teorias se algo continuasse a existir a despeito delas), sejam tão delicadas quanto um escorregão da língua ou tão intrusivo quanto um trauma e sintomas. E o que é o inconsciente senão algo que se manifesta a despeito de todas as teorias espontâneas que estruturam nosso entendimento? O que é, por exemplo, a pulsão de morte senão um impulso de pura insistência que nunca pode ser presa aos fatos. Mas como alguém pode fazer uma teoria do que existe a despeito da teoria, do que é recalcitrante à teoria? Que tipo de universalidade alguém pode construir sobre as bases dessa frágil e fugidia factualidade, algo que desaparece no momento em que é produzido?

Há uma trajetória oposta a traçar: Hegel aloca-se em um reino da universalidade desde o início, mas essa universalidade inicial pode apenas ser vazia, e tem que imediatamente perder a si mesma, tem que passar por dentro de seu outro se quiser ser universal, precisa esposar e abarcar toda factualidade em seu próprio movimento de tornar-se-outro (Sichanderswerden), e apenas pode ser um conceito se tem a capacidade para abarcar completamente esse outro, ou seja, pelo processo de sua mediação – não há nenhum conceito fora de sua mediação com seu outro. De outro lado, Freud situou a si mesmo nas rachaduras da universalidade, nas peculiaridades, algo que não pode se envolver com nenhum esforço conceitual, porém algo que não está fora do conceito, e sim, ao contrário, está em seu limite interior. É preciso manter a posição da ciência para alcançá-la, mas encore un effort [um esforço considerável] é necessário para ampliar o empreendimento da ciência galileana a pequenas fissuras, como sonhos, lapsos e piadas. Pode haver uma ciência galileana dessas pequenas coisas? Para chegar em uma universalidade a partir dessa posição exige-se um esforço especulativo não menor que o de Hegel.

Hegel e Freud não têm uma medida comum, mas há um ponto de encontro contingente. Existem mais ou menos meia dúzia de extensos retratos de Hegel, que o retratam em várias idades. Todos eles são bem conhecidos e fazem o que retratos devem fazer: apresentam sua imagem pública, nas posturas um pouco rígidas que inevitavelmente se assume quando aos olhos do público. Todos, exceto um, que é uma exceção notável: a litografia de Ludwing Sebbers, que mostrou Hegel em sua casa, sentando à sua mesa, vestindo um roupão e alguma coisa como uma touca de dormir. É uma imagem impactante por causa de sua discrepância irônica, sem dúvida consciente, entre as afirmações massivas desse filósofo do espírito universal do mundo e seu vestuário doméstico.[1] Foi com essa imagem em mente que Heinrich Heine escreveu (ao final de 1820, enquanto Hegel ainda estava vivo) o que são, sem dúvida, os melhores versos devotados a Hegel; não havia muita competição para isso, pois Hegel não inspirou poesia.

 

Life and the world’s too fragmented for me!

A German professor can give me the key.

He puts life in order with skill magisterial,

Builds a rational system for better or worse;

With nightcap and dressing-gown scraps for material

He chinks up the holes in the universe.[2]

 

Heine, dividido entre sua afeição por Hegel e suas fortes críticas a ele, produziu um curto-circuito entre o sistema racional da filosofia hegeliana, reputado como sendo capaz de colocar vida na ordem racional e dar-lhe sentido, e o particular e trivial vestuário privado de Hegel, muito distante dos conceitos, mas cujo material paliativo é, mesmo assim, posto a um uso filosófico; e mais, sua missão secreta é unir o edifício filosófico mediante o preenchimento de suas rachaduras. O ponto principal é que o roupão pode representar a verdade secreta do sistema, ou mesmo que exista uma equação entre os dois, em uma paródia do julgamento infinito: Hegel sustentou a famosa frase que “o espírito é um osso”, justapondo duas entidades à máxima distância sem qualquer medida comum. Pode-se dizer, seguindo Heine, o “espírito é uma touca de dormir.”

Freud estava muito afeiçoado a Heine e não perdeu oportunidade de citar sua linha de raciocínio em sua própria obra. Ele gostava particularmente das últimas duas linhas do mesmo poema, embora nunca as tenha referido a Hegel em particular, mas apenas à filosofia em geral. Em The New Introductory Lectures (1932), quando debate a questão da Weltanschauun, “a visão de mundo”, arguindo que a psicanálise não pode apresentar uma visão de mundo e que a filosofia não pode escapar de ser uma, Freud diz o seguinte:

A [filosofia] se afasta da [ciência] agarrando-se à ilusão do ser capaz de apresentar uma imagem do universo coerente e isento de lacunas […]. Desvia-se de seu método por superestimar o valor epistemológico de nossas operações lógicas […]. E muitas vezes parece que o comentário irônico do poeta não se justifica quando ele diz que o filósofo: “Mit seinen Nachtmützen und Schlafrockfetzen / Stopft er die Lücken des Weltenbaus. [Com sua touca de dormir e os farrapos de seu roupão, ele corrige as lacunas na estrutura do universo.]”[3]

Então, o filósofo – e Hegel, como o filósofo arquetípico, é o alvo, apesar de que Freud não estivesse ciente disso – faz duas coisas que são aparentemente opostas, mas que se apóiam: ele superestima a lógica e a epistemologia, depende das operações da razão e do conhecimento, tem confiança excessiva e autoilusória em seu poder e, por outro lado, remenda as rachaduras desse edifício com os meios disponíveis, com o trivial, o acolhedor, literalmente com os intervalos, os restos paliativos – os objetos parciais? Há uma concorrência do alto e do baixo, de elevadas preocupações lógicas e epistemológicas e a insignificância, o frívolo que deve suplementar seu oposto. A construção epistemológica do universo não pode ter sucesso sem a produção de lacunas, e o filósofo deve então se esforçar para preenche-las com algum meio muito modesto. Para empurrar o paradoxo além, como podemos trazer juntos a reivindicação de Hegel do Saber Absoluto, a touca de dormir e os restos do roupão? O segredo da razão não reside finalmente na incongruente touca de dormir?

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Ludwig Sebbers, Hegel at Age Fifty-Eight, 1828. Lithograph.

Freud usa as mesmas linhas de Heine em A Interpretação dos Sonhos (1900), também, em uma forma muito diferente, mas também de uma forma muito reveladora. A discussão aqui diz respeito a um ponto complexo na teoria dos sonhos, o que Freud chamou die sekundäre Bearbeitung, a revisão secundária. O sonho prossegue de uma forma aleatória, a partir de um elemento para o outro (isso é o que constitui para Freud o processo primário), é tudo uma mistura, mas, à medida que o sonho avança, ele continua se revisando, permanece tentando encaixar os elementos que emergiram em uma narrativa, em uma sequência dotada de alguma lógica e sentido. O paradoxo é que isso acontece enquanto estamos sonhando, como parte integrante do próprio trabalho do sonho, para que nunca sejamos confrontados com um sonho puro e simples, mas com uma versão que “sempre já” foi revisada, submetida a ajustes secundários e modificações dentro do próprio sonho. A interpretação acontece durante o sonho, em uma parte dele, antes de qualquer interpretação consciente. Os sonhos (alguns, não todos) “podem ter sido interpretados uma vez, antes de serem submetidos à interpretação acordada”.[4] É aqui que Freud traz as falas de Heine:

 

Essa função se comporta da maneira que o poeta atribui maliciosamente aos filósofos: preenche as lacunas da estrutura do sonho com fragmentos e remendos. Como resultado de seus esforços, o sonho perde sua aparência de absurdidade e desconexão para o modelo de uma experiência inteligível.[5]

 

Há um filósofo inconsciente à espreita no meio do sonho, o filósofo sonhador repousa no processo primário, tornando o primário em secundário – e, para ser breve, não existe processo primário sem o processo secundário. O inconsciente puro, o inconsciente virgem, nunca se apresenta como tal, “em pessoa”, suas lacunas e inconsistências são sempre parcialmente preenchidas e feitas de forma apresentável. O filósofo inconsciente é um mau filósofo que não esconde seus vestígios, ele sempre deixa o gato, ao menos parte do gato, fora da bolsa. A revisão secundária não pode cobrir as marcas e os vestígios do processo primário – e se, em alguns casos muito raros isso acontecer, se ela manejar para vir com uma narrativa “perfeitamente lógica e razoável”, então Freud nos afirma que esses são casos mais difíceis de interpretar:

 

Sonhos desse tipo foram submetidos a uma revisão de longo alcance, por essa função psíquica que é semelhante ao pensamento de vigília; eles parecem tem um significado, mas esse significado é o mais distante possível de seu real significado.[6]

 

Existem sonhos que aparecem para fazer sentido porque foram completamente modelados e interpretados por uma instância que faz sentido no próprio sonho, mas é por isso que o seu aparente sentido é tão enganoso. Eles parecem não estar precisando de nenhuma interpretação, mas requerem esforço máximo da parte do intérprete para desmascarar o que está escondido por trás da fachada do sonho (de modo que a maior ilusão pertence ao que evidentemente faz sentido e aparentemente não necessita de interpretação). Se o filósofo inconsciente for minucioso e não deixar vestígios, então essa é a maior miragem, a aparente transparência é a maior opacidade. Pode-se considerar a filosofia como um sonho desse tipo: um sonho totalmente revisado e bem-sucedido, que supostamente conseguiu encobrir todos os vestígios, preenchendo todas a rachaduras, e, portanto, apresenta a noz mais difícil de quebrar para a interpretação analítica.

Em poucas palavras, para seguir a imagem de Freud, o inconsciente é uma lacuna, e o significado é seu preenchimento. O significado fornece uma narrativa, que já inicia no trabalho do “filósofo inconsciente”; o trabalho do significado é uma contraparte do funcionamento do inconsciente. O inconsciente e o filósofo são uma dupla em uma divisão estranha do trabalho: um faz os buracos, e o outro os preenche. Se houver um diagnóstico do esforço filosófico como tal, então a questão da filosofia já começa no inconsciente – o filósofo tem um cúmplice no inconsciente, que começa e acaba com as lacunas mesmo antes de a filosofia começar a preenchê-las. O inconsciente é apagado ao mesmo tempo que é produzido, e quem o apaga é o filósofo inconsciente lutando para fazer sentido e providenciar uma narrativa livre de lacunas. A ilusão filosófica é estrutural, ela tem sua base no próprio inconsciente como suprimido.

Freud nunca se envolveu realmente com Hegel, nunca considerou usar alguns de seus conceitos, como fez com muitos outros filósofos, para melhor ou pior. Ainda, há uma cena inesperada de confronto involuntário, mediante o viés de Heine, onde o que está em jogo não é apenas Hegel, mas a natureza do esforço filosófico, Hegel funcionando mais uma vez como o modelo de filósofo. O diagnóstico: há um ponto cego na filosofia, a saber, sua incapacidade de lidar com o inconsciente, sendo vítima de uma fantasia que não pode desistir enquanto permanecer filosofia. Mas esse movimento não é algo que acontece nos altos reinos do Espírito; ao contrário, já está funcionando no inconsciente, que apenas pode prosseguir pela obliteração de si mesmo e que não pode ajudar, mas sim, fazer sentido. A divisão já é a divisão interna do inconsciente, a fantasia filosófica intervém no meio do sonho, na divisão entre o primário e o secundário; a busca por intervalos disponíveis desde sempre já começou.

Essa imagem da touca de dormir e das lacunas na estrutura do universo, pitoresca e divertida como é, é sem dúvida ingênua e dependente de uma visão indiscriminada da filosofia como um todo, mas também de Hegel em particular. Estou usando isso não para confirmar, mas porque isso nos conduz a algo essencial. Perseguindo essa imagem, pode-se dizer que a grande conquista de Hegel reside em apresentar o exato oposto dessa imagem da filosofia, não em concertar as rachaduras do universo, mas em assumir as próprias fissuras como os princípios reais do universo, se eu puder adotar esse tipo de linguagem. Se há algo desconcertante e interessante em Hegel, reside em seu grandioso esforço para procurar a rachaduras não como uma falha, uma disfunção, mas como um princípio possibilitador, para assumi-lo como a produtividade do negativo. Ele viu sua tarefa não como preencher as fissuras, mas como produzir cisões onde parecia não haver nenhuma, uma cisão que possibilita qualquer entidade positiva. Mas aqui está um limite: estão Hegel e Freud falando da mesma rachadura? Se há uma cisão, então ela está entre o que?[7]

Deixe-me prosseguir com uma citação. No Prefácio da Fenomenologia, Hegel pecou, pela primeira vez, contra seu próprio princípio de que qualquer princípio fundamental da filosofia é defeituoso no exato sentido de ser um princípio fundamental. O mérito de uma filosofia não pode ser medido em nenhuma afirmação ou proposição fundamental; um princípio pode provar seu mérito apenas através de sua mediação, deixando para trás e, então, negando o momento fundacional através de um desenvolvimento, um desdobramento, uma produção, que por si só pode decifrar o que o princípio deveria ser. Contudo, pela primeira vez, Hegel propôs o adágio fundamental de que tudo depende de uma única afirmação, a saber, de que a verdade não pode ser compreendida como uma substância, mas como sujeito – ou seja, substância é sujeito. Isso opera como um meta-princípio que desqualifica e torna inoperante todos os princípios fundamentais. Não vou insistir em uma interpretação disso aqui – volumes já foram escritos sobre essa única sentença – (em particular por Slavoj Žižek) – vou assumir alguns deles aqui. Tentarei esclarecer as questões por um ângulo específico, a citação que tenho em mente, que segue a seguir:

A disparidade que ocorre na consciência entre o eu e a substância, que é seu objeto, é sua distinção, o próprio negativo. Pode ser visto como uma falta [Mangel] dos dois, mas é própria alma deles, ou seja, é o que os move. Esse é o motivo porque certas concepções antigas de vazio [das Leere] como o que move coisas [das Bewegende], uma vez que conceberam o que move as coisas como o negativo, mas ainda não entenderam esse negativo como o si [das Selbst].[8]

Então, o que mantém unidos os dois termos dessa notória proposição, a substância e o sujeito? A substância como suposto princípio unitário subjacente ao ser à subjetividade? A afirmação de Hegel afirma que ambos os termos são afetados por uma falta, um vazio, uma negatividade. A alma de cada um é a falta, a alma de cada um é a falta, e cada alma é uma falta na alma que os move. Substância e sujeito se sobrepõem à falta como o único ponto que têm em comum – mas como entender isso? Hegel, a fim de ilustrar isso e dar a essa posição uma longa linhagem que remonta ao início da história da filosofia, a vincula ao atomismo antigo. Hegel, o arque-idealista, sempre vê no atomismo uma virada especulativa crucial. Ele escreve em sua Lógica,

 

 O princípio atomístico, com seus primeiros pensadores, não permaneceu na exterioridade, mas, além de sua abstração, continha uma determinação especulativa de que o vazio foi reconhecido como a fonte do movimento. Isso implica uma relação completamente diferente entre átomos e o vazio que o mero um-ao-lado-do-outro [Nebeneinander] e indiferença mútua entre os dois. […] A visão que a causa do movimento reside no vazio contém aquele profundo pensamento de que a causa do devir pertence ao negativo.[9]

 

A grandeza do atomismo, para Hegel, reside no que ele introduziu como objeto do pensamento, na forma como o elemento mínimo é sempre dividido em si mesmo e em um vazio. A atomização é uma forma simples e radical de submeter a matéria para contar, reduzindo-a em elementos indivisíveis e contáveis (que pode ser contado como um), mas no mesmo movimento esse elemento atômico, essa partícula elementar, introduz o vazio, em os átomos se movem e que são de fato o princípio real de seu movimento, das Bewegende. Um elemento e o vazio não existem simplesmente um ao lado do outro, eles juntos pertencem ao ponto de formação de uma entidade singular redobrada, composta pelo átomo e pelo vazio, um e a falta. Entretanto, por mais que se procure um elemento mínimo, nunca chegamos a um mínimo e indivisível, mas à divisão como irredutível. O elemento mínimo é a própria divisão, não qualquer entidade positiva. O vazio é, por assim dizer, a meia-falta platônica do elemento como um, e responde essa descrição pelo fato de estar realmente ausente. O átomo de Hegel, sua partícula elementar, é, portanto, o próprio átomo no seu exato sentido: o que não pode ser divido é a divisão, a divisão sobre a qual a unidade é a premissa.

Mas Hegel persegue nessa passagem, enquanto os antigos viam bem o princípio da negatividade no vazio, dividindo qualquer elemento em sua raiz, eles não conseguiam compreender nessa negatividade o lugar do eu, o sujeito. Eles perceberam que a substância é permeada pelo vazio, envolvendo a falta em seu seio, mas eles não tinham ideia de que isso teria uma relação com o lugar do sujeito. Isso é Hegel em seu mínimo – o lugar do sujeito, no adágio “substância é sujeito”, não é outra coisa que sua própria cisão, esse corte ao ser introduzido pelo vazio como princípio movente. É no vazio que o ser e o pensar se intersecionam. Como ele afirmou na História da Filosofia:

 

Esse intervalo [interrupção, Unterbrechung] é o outro lado dos átomos, o vazio. O movimento do pensamento é um movimento que tem em si a ruptura (o pensamento é no homem precisamente o que os átomos e o vazio são nas coisas, o interior) [das Denken ist im Menschen eben das, was die Atome und das Leere in den Dingen, sein Inneres]).[10]

 

Portanto, o pensamento é a ruptura do ser, sua Unterbrechung, sua interrupção, e o que o pensamento e seus objetos têm em comum é a ruptura que interrompe objetivamente através do vazio. Pensamento e mundo se intersecionam-se no vazio. Não se trata aqui de saber se o atomismo é uma boa teoria – Hegel não o endossará em sua própria descrição do ser – nem se essa é uma boa interpretação do atomismo; o ponto é que o atomismo inclui uma certa percepção que Hegel vê como válida e de longo-alcance, a saber, que existe um princípio de negatividade que move ser e pensar, que esse princípio forma o interior de ambos, sein Inneres, e o modo pela qual substância e sujeito permanecem juntos deve ser vinculada a esse princípio.

O sujeito, como Hegel entende essa entidade, não é um ser positivo e não existe, é localizado nos intervalos, e isso é o que empurra cada entidade em um mal-estar (eben diese Unruhe ist das Selbst) – o eu não é nada além do mal-estar do Um, sua divisão, reside na impossibilidade de qualquer entidade ser igual a si mesma. O sujeito é o que o empurra para além de si mesmo, não é nada além de suas disparidades, a parte invisível que causa disparidades (Ungleichheit). Se alguém quiser decifrar o projeto de Hegel em uma frase, para dar-lhe uma forma atômica, para chegar no átomo de pensamento de Hegel, poderia dizer: do átomo ao cogito. Há um curto-circuito nessa frase que vincula imediatamente a introdução do vazio pelos atomistas, a unidade especulativa do Um e do vazio, com a figura da subjetividade que emerge com o cogito cartesiano. A novidade do cogito foi precisamente o fato de ter descartado os modos anteriores de pensamento sobre a subjetividade (alma, consciência, individualidade) e ter introduzido o sujeito no ponto de uma ruptura na grande cadeira do ser. (Žižek destacou isso muitas vezes: “cogito é a rachadura no edifício do ser”). Não é uma substância, apesar de o próprio Descartes apontar no momento seguinte para a res cogitans, mas é exatamente o oposto, pelo menos no entendimento radical de Hegel, é o que impede qualquer substância, qualquer princípio subjacente de unidade de persistir mesmo em equidade consigo mesmo. Há uma rachadura no ser já encapsulado pelo vazio no antigo atomismo, como um lugar que estava esperando pelo sujeito, por assim dizer. Para simplificar o que foi dito, se substância é a palavra chave da filosofia, a ideia que guia a multiplicidade para um princípio subjacente, além das aparências e das mudanças, então se poderia dizer que o sujeito, em Hegel, é o nome da unidade dividida em dois, da impossibilidade de qualquer substância ser uma unidade. Mas qual dualidade? O átomo e o vazio são suficientes para essa divisão?

Hegel trata a noção de clinamen com algum desprezo. Ele diz na História da Filosofia que Epicuro considera os átomos iguais em peso e, portanto, se movendo da mesma forma até que o movimento direto seja inclinado.

Em uma linha torta [in einer krummen Linie] que devia um pouco da linha reta, de forma que colidem entre si, formam, assim, uma unidade meramente superficial, não resultante de sua essência.[11]

De certa forma, toda ambiguidade de Hegel está contida nessa passagem. Poderíamos fazer a seguinte questão: o cliname pertence à essência? Ou é apenas uma adição externa? É o destino essencial ou externo do átomo? Deixe-me trazer aqui Deleuze, que não é exatamente um hegeliano, mas que dá a essa questão uma resposta muito hegeliana, mais hegeliana que o próprio Hegel. Isso é do apêndice de A Lógica do Sentido sobre Lucrécio:

Cliname ou declinação nada tem a ver com um movimento oblíquo que viria a modificar acidentalmente uma queda vertical. Está presente desde sempre: não é um movimento secundário, nem uma determinação secundária do movimento que deveria ocorrer em certo momento e em um local determinado. Clinamen é a determinação original da direção do movimento de um átomo.[12]

Assim, clinamen sempre aconteceu, é a disparidade inscrita na definição do átomo desde o início, sua disparidade consigo mesmo. O átomo é sua própria declinação, a unidade dividida não meramente de um e do vazio, mas também nisso e através disso a unidade da entidade com sua própria declinação, afastando-se de si mesmo. Não é um destino secundário que aconteceria com o átomo em seu suposto caminho reto – uma vez que se afastou do caminho, se supõe a direção reta, mas uma direção que não existe em si mesma. Desviar-se retroativamente produz o próprio em-si-mesmo, e esse é o lugar onde o sujeito surge. Poderíamos dizer sumariamente, apontados conjuntamente, que o sujeito é o clinamen da substância, da maneira que sempre necessariamente desvia de si mesmo.[13]

Portanto, não poder ser isolado em si mesmo é o desvio do “em si mesmo”, sempre retroativamente apagado em seus efeitos, o mediador desaparecido. O clinamen não é nem o átomo nem o vazio, nem algo terceiro, mas o próprio desvio que os condiciona. Então, poderíamos dizer que, a fim de entender a noção singular de clinamen, o um traz consigo os vários componentes de si: vazio, substância, sujeito e negatividade. Estamos chegando na questão essencial: como essa concepção de negatividade hegeliana relaciona-se com a psicanálise? O que aconteceu com essa negatividade e a divisão entre Hegel e Freud? Deixe-me tomar o clinamen como um simples fio vermelho. A maneira de entender o que está em jogo no clinamen talvez seja o fator discriminante.

A negatividade freudiana é um vocabulário de seis palavras “Ver”: Verneinung, negação; Verdrängung, repressão; Verwerfung, foraclusão; Verleugnung, desmentido; Verdichtung, condensação; Verschiebung, deslocamento. O que essas seis palavras têm em comum, à primeira vista, é o prefixo Ver-, que o dicionário Wahrig define primeiro como Abweichen, ou desvio, digressão, afastar-se. De Ver- para clinamen, existe apenas um passo, um passo no sentido errado, um passo fora dos trilhos. Há um desvio da negação em jogo, e se a negação hegeliana já é um desvio, um desvio de sua rota e se divide em dois, então o que está em jogo aqui podemos descrever como um desvio do desvio, um cliname do clinamen, uma duplicação do clinamen. Ver- é como um clinamen do nein, algo no interior da negação da negação hegeliana, mas um pouco fora dos trilhos. Freud, que era tão afeiçoado a trocadilhos e encontro contingente de palavras, nunca despendeu nenhum minuto ponderando sobre esse Ver- que traz conjuntamente seus termos-chave como em uma condensação onírica.

Mas, além do vínculo casual de Ver-, esses conceitos são relacionados através de um objetivo comum. Eles nomeiam vários modos de negatividade, mas uma negatividade que falha. Uma negatividade que não é bem-sucedida em cumprir sua função de negar uma determinada entidade. Eles evocam algo que persiste a despeito da negação e através da negação, ou mais precisamente, algo que a negação produz em primeiro lugar. Em todas eles, a negação produz algo que a própria negação não pode negar. Há uma persistência da negatividade no próprio fracasso da negatividade.

O fracasso da negação é mais claro na primeira forma, o caso apesentado em Verneinung (1925), onde Freud, em um golpe de tirar o fôlego, realiza a trajetória da forma gramatical de negação à pulsão de morte. Freud inicia com caso elementar e notório do paciente que afirma,

 

“Você me questiona quem essa pessoa pode ser no sonho. Não é minha mãe.” Na interpretação, tomamos a liberdade de desconsiderar a negação […]. É como se o paciente tivesse dito: “É verdade que minha mãe veio à minha mente quando eu pensei nessa pessoa, mas eu não me sinto inclinado a fazer essa associação.”[14]

 

Esse é um exemplo de negação que tornou-se um provérbio, “essa não é minha mãe”, uma negação que não acerta seu alvo, não consegue negar a mãe. Mas esse fundamento é suficiente para uma leitura da afirmação? A verdade de “essa não é minha mãe” é o oposto afirmativo da afirmação “essa é minha mãe”? Freud considera a negação como um sinal de repressão, Verdrängung, o próximo item de nossa lista.

 

Então, o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode fazer seu caminho para a consciência, sob condição que seja negado. Negação é uma forma de tomar conhecimento do que é reprimido […]. O resultado disso é um tipo de aceitação intelectual do reprimido, enquanto que, ao mesmo tempo, o que é essencial para a repressão persiste.[15]

 

Portanto, “essa não é minha mãe” pode ser traduzido como “essa é minha mãe”, e o paciente pode bem aceitar isso como o verdadeiro conteúdo de sua afirmação, mas isso não afeta a forma da própria repressão. A negação pode habilitar a aceitação de determinado conteúdo, mas o que persiste como recalcitrante da negação e sua elevação é a própria lacuna na qual o conteúdo está estabelecido. Essa lacuna não se esgota pelas alternativas “essa não é minha mãe” e “essa é minha mãe”. Negação e afirmação são localizadas no mesmo nível sem afetar a forma da repressão, irredutível ao seu conteúdo.[16]

 

Negar algo em um julgamento é, no mínimo, dizer: “Isso é algo que prefiro reprimir”. Um julgamento negativo é um substituto intelectual da repressão; seu “não” é a marca da repressão, um certificado de origem – como, digamos, “Made in Germany”. Com a ajuda no símbolo da negação, o pensamento se liberta das restrições da repressão.[17]

 

A negação é como um certificado de origem, atesta a origem da repressão, e se há de fato uma negação feita na Alemanha, de todos os lugares, deve ser a negação hegeliana. Pode-se dizer, com toda a ambiguidade da afirmação: “essa não é uma negação hegeliana”, no mesmo molde de “essa não é minha mãe”. A negação hegeliana é então, aceita ou rejeitada? Temos que decidir entre “essa é uma negação hegeliana” e “essa não é uma negação hegeliana”? Talvez, de acordo com a leitura de Freud, ambas afirmações percam a forma de negação que surge entre essas alternativas e não é esgotada por elas. Há uma lacuna na negação (da negação) hegeliana, à espreita do mesmo local, não em outro lugar.

Negação em Verneinung, como Freud a lê, é um exemplo especial da repressão, o segundo conceito da lista. A repressão apresenta, à primeira vista, um caso ampliado do fio que tenho seguido, a falha da negação. Repressão significa: algo é negado e rejeitado, mas apenas sob o preço de seu retorno. É repressão apenas na medida em que a negação não obtém sucesso, na medida em que fracassa. É claro, é possível encontrar todos os tipos de razões para a repressão, pode-se invocar a repressiva moralidade sexual que tenta impedir que um determinado conteúdo seja aceito na consciência, determinado por sanções e tabus, mas dessa maneira se concentraria no conteúdo da repressão e negligenciaram sua forma. (E existe o fato de que a maior parte das proibições e injunções morais com as quais Freud teve que lidar perderam sua validade e impacto durante o século passado, mas isso não eliminou o dilema que tem de algum modo se tornado mais intratável. A psicanálise, que contribuiu muito para a emancipação sexual, também sempre foi cética em relação a isso como uma solução salutar.) Se nos concentrarmos na forma da repressão, então o termo-chave de Freud não é apenas repressão, mas Urverdrängung, repressão primária e originária, não a respeito deste ou daquele conteúdo em particular, igualmente não redutível aos fundamentos específicos da repressão social, mas instituindo a própria forma da repressão que pode ser preenchida por conteúdos e justificativas particulares. Repressão antes de razão suficiente.

O conceito de repressão envolve mais dois conceitos Ver-, o de Verdichtung e Verschiebung, condensação e deslocamento, que para Freud nomeiam os mecanismos básicos do trabalho do sonho, Traumarbeit. Se o sonho aparece como uma mistura, isso se deve ao fato de que cada um de seus elementos apresentar uma condensação e um deslocamento de vários elementos. Com uma adição crucial que determina o destino da negação freudiana e sobre a qual Freud insiste diversas vezes: o sonho não conhece o “não”, não há “não” em seu vocabulário.

 

A maneira pela qual os sonhos tratam a categoria do contrário e da contradição é muito notável. São simplesmente desconsideradas. O “não” parece inexistir no que concerne aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular por combinar contrários em uma unidade ou para representá-los como a mesma coisa. Além disso, os sonhos sentem-se na liberdade de representar qualquer elemento pelo seu desejo contrário; então, não existe forma de decidir, em um primeiro momento, se algum elemento que admite o contrário está presente no pensamento onírico como positivo ou negativo.[18]

 

Sonhos possuem um vasto vocabulário, mas uma palavra parece estar faltando conspicuamente, a palavra “não”. Negação, contrariedade, contradição – tudo isso existe nos sonhos, seja por simples justaposição, onde entidades contraditórias e contrárias aparecem lado a lado, ou por coincidência imediata, condensação dos opostos e um elemento, para que não possamos dizer se é positivamente ou negativamente. Cada elemento positivo é dotado de reversibilidade, de forma que essa negação não pode ser isolada; ela existe apenas em uma teia de substituições, condensações e deslocamentos. Essa teia de negatividades ubíquas tem como premissa paradoxal a elisão, a omissão do “não” como um marcador singular de negação. Essa literal “negação da negação” torna a negação onipresente; precisamente em sua ausência, o “não” está presente em todas as palavras. Essa “negação da negação” no inconsciente fica presa em algo aparentemente infantil demais para a dialética, em semelhanças contingentes, trocadilhos, reverberações homônimas, deslizamentos improvisados. O que poderia estar mais longe do rigor da concatenação conceitual na Lógica de Hegel, cada passo vincula-se inerentemente com o anterior pela negação autorreflexiva, do que o deslizamento infinito sobre homônimos, semelhanças e deslizamentos? O primeiro é determinado por um “não”, e a cada passo o último ignora o “não” completamente.

Se existe um sujeito do inconsciente – algo que Lacan inflexivelmente insistiu em todo seu trabalho, contra a corrente estruturalista –, então seu sujeito é, estritamente falando, correlativo a elisão do “não”. Mas “não” não é uma palavra como qualquer outra, ela simboliza uma propriedade básica da linguagem. Pode-se dizer, de forma simples, que o “não” se encontra no próprio núcleo da linguagem, ou seja, é algo que existe apenas na linguagem e não possui contrapartida “natural”. Com ele, a linguagem nomeia algo que não é, e sua capacidade de nomear o não-ser é o que faz a linguagem. A maior testemunha disso é o Sofista de Platão, que articula inteiramente a capacidade da linguagem de infundir o ser com o não-ser. (A produção de buracos e lacunas já iniciou com Platão). A linguagem traz a negação para dentro do mundo, não meramente um contraste ou um contrário, um conflito ou tensão, mas a possibilidade de induzir o não-ser. O próprio simbólico, por extensão, é como um “não” na grande cadeia do ser, a própria possibilidade da negatividade, algo que introduz uma lacuna, uma divisão, uma fratura, na qual, para Hegel, depende a própria capacidade de pensamento – mas, após tudo, foi isso o que assombrou a filosofia no seu alvorecer pré-socrático, a questão de saber se as entidades negativas são meras criaturas da linguagem ou, ao contrário, se possuem uma contraparte ontológica (ver Parmênides, de Platão). É com essa questão que a filosofia começou.

Para completar esse panorama rápido do resto da palavra freudiana Ver-, posso apenas dar algumas dicas apressadas sobre as duas palavras restantes. Foraclusão, Verwerfung, é o mecanismo pela qual Freud define a psicose. Se psicose é baseada na foraclusão, ela não pode ser sobre a foraclusão da palavra “não”, uma vez que a psicose dispõe de um vocabulário inteiro e sem faltas – ou seja, não falta nada. Não falta o “não”, mas ao contrário, falta seu impacto simbólico, a lacuna que poderia separar a realidade de si mesma, a realidade do real. O que foi foracluído então retorna como o real emergindo da realidade, coincidindo com a realidade, sem nenhuma lacuna – alucinações, vozes, conspirações, persecuções, raios divinos, milagres. Psisicose literalmente desencadeia a negação da negação, desmantelando os poderes da negatividade, não apenas a negação da negação, mas sua destituição e eliminação. Se seguirmos a linha do fracasso da negação, na psicose, a negação fracassa com um sucesso espetacular, ela consegue aniquilar a si mesma a tal ponto que a realidade emerge como a corporificação da negatividade, sem escapatória possível. A negação foracluída materializa a si mesma na positividade da realidade. O triunfo da negação da negação na psicose é seu grande fracasso, ela se justifica dde maneira mais grandiosa do que qualquer outra.

Por último, Verleugnung, desmentido. Freud a coloca como o principal mecanismo da perversão, em seu sentido técnico, e deve-se marcar desde o início que per-verto é uma versão latina de Ver-. Existe um Ver- constitutivo na natureza da sexualidade humana, um Ver- natural, seu desvio. Freud inicia seu argumento nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) considerando aberrações sexuais, Abirrungen, e então procede para considerar Abweichungen sexual, desvios em relação ao objeto sexual e ao objetivo sexual. A partir daí, podemos afirmar que a sexualidade para Freud pode ser definida como Abirrung, Abweichung, em uma palavra, pelo clinamen da trajetória da causalidade natural e da satisfação das necessidades fisiológicas. Há um clinamen no conceito de sexualidade, o próprio conceito de pulsão, isto é, pulsão apenas pela virtude de seu desvio e não pode ser apreendido independentemente dele. Existe o famoso adágio da Threepenny Opera, de Brecht: o que o roubo de um banco comparado à fundação de um? O que são todos esses pequenos roubos comparados com o roubo sistemático, legalizado, duradouro perpetrado pelos bancos? Por analogia, pode-se dizer que o tratamento de Freud à perversão nos Três ensaios coloca a seguinte questão: o que são todas as perversões, todos os desvios do objeto ou objetivo sexual comum, em comparação com a sexualidade como tal, que em si mesma não é nada mais que um grande desvio? No que concerne à perversão, em um sentido mais limitado e técnico, a negação pode ser entendida no relato freudiano do fetichismo, o fetiche como algo que preenche o vazio por sua presença fascinante, nega a castração e a falta ao apegar-se ao objeto que disfarça o vazio, como o famoso cenário freudiano. A negatividade é negação ao se apegar ao objeto que o cobre no esplendor de sua existência positiva, apegando-se a uma crença contra um conhecimento melhor (“Eu sei muito bem, mas mesmo assim…”). Aqui podemos ver uma atitude que poderia incorporar a imagem filosófica de Heine e de Freud como preenchendo as lacunas – o pervertido não seria alguém que iria meramente usar a touca de dormir como um meio à mão para preencher as rachaduras, mas a tornaria em um objeto de veneração. Não é o meio desesperado e casual de preencher as rachaduras, mas o objeto a ser saboreado, o objeto parcial tornado um todo. (E aqui é possível dar um exemplo singular do Marques de Sade, o maior filósofo entre os perversos – não havia muita competição nessa categoria, por razões estruturais – cuja Filosofia da Alcova é uma demonstração de um remendo drástico e literal da lacuna).

Três das palavras de Ver-, Verdrängung, Verwerfung, e Verleugnung servem como a base das três estruturas clínicas destacadas por Freud – neurose, psicose e perversão – como a base de sua classificação clínica. Pode-se dizer que elas apresentam as três maneiras de negação, três formas pelas quais a negação fracassa e se justifica ou trabalha através de seus próprios desvios. Elas são como a versão freudiana do que Hegel chamou, no começo da Enciclopédia, “drei Stellungen des Gedanken zur Objektivität.”

Se agora eu trouxer todas os tópicos juntos e fazer uma conclusão provisória, diria que a distância entre Hegel e Freud talvez possa ser mais economicamente encapsulada pela distância entre duas palavras, ou melhor, uma palavra e uma palavra parcial, nein e Ver-. Como na condenação onírica, as duas palavras são fundidas em uma única palavra alemã, Verneinung. Curiosamente, ela não está no vocabulário de Hegel; ele prefere a negação latina. Ver- e nein: a negação de nein na contiguidade imediata com Ver-, que a desvia. Ver- não é outra coisa – completamente diferente de nein, ele habita a negação por dentro e dá outro giro em si mesmo. Se para Hegel cada entidade positiva está sempre marcada pela negatividade, sempre em disparidade consigo mesma, um desvio de si mesma, então a operação freudiana pode ser vista como um desvio dentro desse desvio, um clinamen de seu clinamen. Ver- corrói o “não”, opera em seu seio. A negação (hegeliana) é o sine qua non do Ver-. Nesse sentido, Hegel, por levar a questão da negação ao auge, é o sine qua non da negatividade freudiana. Ou, em outras palavras: já há uma negação hegeliana que é um Ver-, de Verstand ou Vernuft, que não é nada mais que o reino do desdobramento da negatividade hegeliana, e o Ver- freudiano não é nada senão sua extensão, o que muda tudo.

No mesmo sentido, o inconsciente pode ser visto como um cliname do cogito. Lacan causou algum escândalo com sua afirmação de que o cogito é o sujeito do inconsciente, que está na direção oposta da visão geral de que não havia duas coisas mais distantes do que o sujeito cartesiano racional e os caprichos do inconsciente. No entanto, uma das reivindicações das afirmações de Lacan é que o sujeito do inconsciente apenas pode ser apreendido com base do cogito, dentro da estrutura do cogito e da subjetividade moderna, não de sua contraparte irracional. É possível afirmar que o sujeito do inconsciente é o Ver- do cogito, apresentando exatamente uma virada como a Ver- faz em relação à negação hegeliana. E se o Saber Absoluto hegeliano pode ser concebido não como um preenchimento definitivo das rachaduras – a lacuna na estrutura do universo –, mas como a maneira de mantê-las, em um gesto em que a rachadura deve ser a predicação autorreflexiva sobre si mesma, então o inconsciente freudiano é a rachadura dentro dessa própria rachadura.

“Ça n’empêche pas d’exister”, diz Freud, seguindo Charcot: isso não impede a existência de algo que insiste a despeito da negação, através da negação, em seu seio, mas algo que não é redutível a alguma factualidade positiva e, por fim, não existe – mas que algo não pode ser concebido sem negação, além disso, sem um clinamen da negação da negação. Pode-se alterar um pouco a frase: “l’être n’empêche pas d’exister,” ou ser não impede algo de existir e insistir. Toda a noção hegeliana de ser depende da negatividade e da cisão, e o passo implícito pelo Ver- é a cisão da própria cisão. É por essa cisão que o pensamento se apega ao ser, na dupla figura do Saber Absoluto e do inconsciente, esse excesso e deficiência, ou falha, do conhecimento. Mais pontualmente: o sujeito da psicanálise não é apenas o Ver- do cogito, mas o Ver- desse entendimento do cogito levado ao extremo, no fim da imponente tradição filosófica, pelo Saber Absoluto.

 

Mladen Dolar ensinou por 20 anos do Departamento de Filosofia da Universidade de Ljubljana, Eslovênina, onde ele agora trabalha como Pesquisador Sênio. Ele é membro do conselho editorial da revista Problemi e da coleção Analecta. Ele é também um dos fundadores da Sociedade de Psicanalise Teórica e da Sociedade de Estudos Culturais. Sua pesquisa científica concentra-se sobre: Filosofia clássica alemã, estruturalismo, psicanálise teórica e filosofia da música. Ele é autores de inúmeros livros, como A Voice and Nothing More (2006) e mais recentemente Opera’s Second Death (com Slavoj Zizek).

 

[1] Heinrich Heine, Heimkehr LVIII. Há também um subtexto que este atrai refere-se ao uso noturno. Em uma famosa seção do prefácio de A Filosofia do Direito, Hegel descreve a noite como o adequado tempo para o cumprimento de filosofia. “A coruja de Minerva inicia seu vôo ao entardecer [mit der einbrechenden Dämmerung].” Assim, é apenas apropriado imaginar Hegel no momento apical da filosofia, entre o crepúsculo e o ir dormir.

[2] Heinrich Heine, The Complete Poems of Heinrich Heine: A Modern English Version, trans. Hal Draper (Boston: Suhrkamp / Insel, 1982), 99. “Zu fragmentarisch ist Welt und Leben! / Ich will mich zum deutschen Professor begeben. / Der weiss das Leben zusammenzusetzen, / Und er macht ein verständlich System daraus; / Mit seinen Nachtmützen und Schlafrockfetzen / Stopft er die Lücken des Weltenbaus.”

Tradução: Vida e o mundo são muito fragmentados para mim! / Um professor alemão pode me dar a chave.

Ele coloca a vida em ordem com habilidades magistrais; / Constrói um sistema racional para melhor ou pior; / Com touca de dormir e roupão e restos para material; / Ele abre os buracos no universo.

[3] Sigmund Freud, New Introductory Lectures on Psychoanalysis, (Penguin Freud Library, vol. 2), 196.

[4] Sigmund Freud, The Interpretation of Dreams, (Penguin Freud Library, vol. 4), 631.

[5] Ibid., 630.

[6] Ibid., 630-1.

[7] Badiou inicia sua Théorie du sujet alegando que “no coração da dialética hegeliana deve desembaraçar dois processos, dois conceitos de movimento, e não apenas uma visão em tornar o que é corrompido/distorcido por um sistema subjetivo de conhecimento. Digamos, por exemplo: a) uma matriz dialética coberta pela palavra alienação, a ideia de um simples termo que se implanta por seu tornar-se outro para vir de volta a si mesmo como um conceito preenchido; b) uma matriz dialética cujo operador é a cisão, o tema ‘não há unidade exceto uma ruptura’ [il ny a d´unité that scindé]. Sem ao menos o retorno sobre si mesmo, sem a conexão entre o final e a inicial (inaugural).” Alain Badiou, Théorie du sujet (Paris: Seuil, 1982), pp. 21–2. O bom Hegel seria o Hegel da cisão, isto é, de uma contradição não simétrica que não pode ser sublocada em uma unidade de nível mais alto.

[8] Modificado de G. W. F. Hegel, Phenomenology of Spirit, trans. Terry Pinkard (2010), 20. Ver: http://web.mac.com/titpaul/Site/Phenomenology_of_Spirit_page.html. “Die Ungleichheit, die im Bewußtsein zwischen dem Ich und der Substanz, die sein Gegenstand ist, stattfindet, ist ihr Unterschied, dasNegativeüberhaupt. Es kann als der Mangel beider angesehen werden, ist aber ihre Seele oder das Bewegende derselben; weswegen einige Alte das Leere als das Bewegende begriffen, indem sie das Bewegende zwar als dasNegative, aber dieses noch nicht als das Selbst erfaßten.”

[9] G. W. F. Hegel, Science of Logic (TWA 5), 185-6.

[10] G. W. F. Hegel, History of Philosophy (TWA 19), str. 311.

[11] Ibid., 313.

[12] Gilles Deleuze, The Logico f Sense, trans. Mark Lester and Charles Stivale (New York: Columbia UP, 1990), 311.

[13] Pode-se ler aqui Deleuze com Badiou, que está ciente da torção hegeliana: “[Clinamen] não se refere ao vazio nem aos átomos nem ação causal de um por outro. Nem é um terceiro componente, um terceiro princípio. […] Clinamen é o átomo como fora-do-espaço [hors-lieu] do vazio. Digamos numa visão mais ampla, e longe de os gregos, esse clinamen é o sujeito, ou mais precisamente, subjetivação.” Alain Badiou, Théorie du sujet, p. 77. “É absolutamente necessário que clinamen seja abolido pelo seu próprio giro. […] Qualquer explicação particular de qualquer coisa particular não deve exigir clinamen, embora a existência de uma coisa em geral é impensável sem ele.” Ibid., p. 79. “O átomo afetado por desvio produz o Todo sem resto ou traço nessa afetação. Melhor ainda: o efeito é a supressão retroativa da causa […] o desvio, não sendo nem o átomo nem o vazio nem a ação do vazio nem do sistema de átomos, é ininteligível. ” Ibid., p. 80.

[14] Sigmund Freud, “Negation,” in On Metapsychology, The Pelican Freud Library, vol. 11 (Harmondsworth: Penguin Books, 1977), 437.

[15] Ibid., 437-8.

[16] Essa linha de argumentação eu devo a Alenka a Zupančič. Ver também Jean-François Lyotard, Discours, Figure.

[17] Sigmund Freud, “Negation,” 438-9.

[18] Sigmund Freud, The Interpretation of Dreams, 429–30. Cf. Sigmund Freud, Jokes and their Relation to the Unconscious (Penguin Freud Library, vol. 6), 233.



Autor: Mladen Dolar

Publicado:  Abril de 2012

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Tradução: Moisés João Rech


Revisão: Carla Oliveira e Leonardo Mendonça

Arte: Felipe Aiello

 

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