Por Alain Badiou
É sempre perigoso abordar Lacan a partir de um ponto de vista filosófico. Pois ele é um antifilósofo, e ninguém está autorizado a assumir essa designação levianamente.
Considerá-lo em relação aos pré-socráticos é uma empreitada ainda mais arriscada. Referências a esses pensadores no trabalho de Lacan são raras, dispersas e, acima de tudo, mediadas por algo que não eles mesmos. Há, além disso, o risco de perder o pensamento em um confronto latente entre Lacan e Heidegger, que tem todos os atrativos de um impasse retórico.
Tendo alcançado esta perspectiva sobre o alcance dos textos de Lacan, não se deve perder de vista o fato de que é uma localização, o exame desinteressado de um sintoma.
O poder revelador das referências de Lacan aos pré-socráticos é secreto — eu quase diria codificado. Três pensadores são invocados: Empédocles, Heráclito e Parmênides. A própria invocação está envolvida em quatro problemas principais. O primeiro pode ser formulado da seguinte maneira: de qual impulso originário do pensamento a psicanálise é herdeira? A pergunta ultrapassa em muito o ponto onde, com Descartes, entramos na época moderna do sujeito, ou o que Lacan chama de sujeito da ciência. Claro, a psicanálise só poderia aparecer dentro do elemento desta modernidade. Mas como figura geral da vontade de pensamento (vouloir-penser), ela traz enigmaticamente um confronto com o que há de mais originário em nosso local. Aqui se trata de saber o que está em jogo quando determinamos o lugar da psicanálise na história estritamente ocidental do pensamento, na qual a psicanálise marca uma ruptura que não é de forma alguma constituída pela filosofia, mas sim pontuada por ela.
O segundo problema diz respeito à relação — que é decisiva para Lacan — entre a psicanálise e Platão. Impulsionada por rivalidade e contestação, essa relação é instável. As referências de Lacan aos pré-socráticos esclarecem o princípio por trás dessa instabilidade.
O terceiro problema é, claro, o de fornecer uma delimitação exata da relação de Lacan com Heidegger. A Heidegger devemos a reativação dos pré-socráticos como a fonte esquecida de onde nosso destino alçou voo. Se não se trata aqui de ‘comparar’ Lacan com Heidegger — o que seria sem sentido —, o tema das origens sozinho nos obriga a procurar alguma medida do que levou um a citar e traduzir o outro.
Finalmente, o quarto problema diz respeito à dimensão polêmica da psicanálise. Com relação a que divisão primordial do pensamento a psicanálise toma sua posição? Pode-se inscrever a psicanálise dentro de um conflito insistente que a precedeu por muito tempo? Não há dúvida de que Lacan aqui faz uso da oposição canônica entre Parmênides e Heráclito. Lacan opta, de forma bastante explícita, pelo último.
O trabalho de Freud foi uma nova fundação, uma ruptura. Mas também foi o produto de uma orientação dentro do pensamento que repousa em divisões e territórios que existiam antes dele.
As referências de Lacan aos pré-socráticos atestam, assim — e aqui reside a sua dificuldade —, não tanto o que é verdadeiramente revolucionário na psicanálise, mas o que a inscreve dentro de continuidades dialéticas do que podemos chamar de alcance continental.
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As descobertas psicanalíticas de Lacan que podem ser colocadas em ressonância com os pré-socráticos podem ser agrupadas em torno de dois temas: o primado do discurso e a função do amor no processo da verdade.
Em várias ocasiões, Lacan elogia a audácia inocente dos pré-socráticos, que identificaram os poderes do discurso com a apreensão do ser [la prise sur l’être]. Assim, no seminário sobre transferência, ele escreve: “Além de Platão, em segundo plano, temos essa tentativa, grandiosa em sua inocência — essa esperança residindo nos primeiros filósofos, chamados físicos — de encontrar uma compreensão última do real sob a garantia do discurso, que é, no final das contas, o instrumento deles para avaliar a experiência.”1
Como caracterizar esse equilíbrio peculiar entre o ‘grandioso’ e o ‘inocente’? O aspecto grandioso está na convicção de que a questão do Real é comensurável com a da linguagem; a inocência está em não ter levado essa convicção até seu verdadeiro princípio, que é a matematização. Lacan considera a matematização como a chave para qualquer relação pensável com o Real. Ele nunca variou nesse ponto. No seminário Encore, ele diz, sem a menor cautela: “A matematização, por conta própria, atinge um real.”2 Sem matematização, sem a apreensão da letra (la prise de la lettre), o Real permanece cativo de uma realidade mundana impulsionada por um fantasma.
Isso significa que os físicos pré-socráticos permanecem dentro dos limites da narrativa mítica que nos entrega o fantasma do mundo? Não, pois eles delineiam uma ruptura genuína com o conhecimento tradicional, embora inocente em relação ao matema.
O último ponto é essencial. Lacan não concebe os pré-socráticos como os fundadores de uma tradição, ou como uma tradição perdida em si mesmos. Uma tradição é o que‘tra-diz’ (fait tra-diction) a realidade do fantasma do mundo. Ao depositar sua confiança na supremacia pura do discurso, os pré-socráticos tiveram a audácia grandiosa de romper com todas as formas tradicionais de conhecimento.
Por isso, seus escritos prefiguram a matematização, embora esta última não esteja presente em sua forma literal. A premonição aparece em sua inversão paradoxal, no uso da forma poética. Longe de opor, como fez Heidegger, o poema pré-socrático ao matema de Platão, Lacan tem a poderosa ideia de que a poesia era a coisa disponível mais próxima da matematização para os pré-socráticos. A forma poética é a inocência do grandioso. Para Lacan, ela até mesmo ultrapassa o conteúdo explícito das declarações, porque antecipa a regularidade do matema. Em Encore, ele escreve:
Esse texto realmente registra uma inocência em sua marca de estupidez. Há algo irreal na proposição de Parmênides sobre o ser, no sentido de um apego ainda não pensado à realidade fantasmática. Mas a forma poética contém uma antecipação grandiosa do matema. Alternância, sucessão, enquadramento: as figuras da retórica poética são marcadas, como por um lampejo inconsciente, com os traços de uma matematização por vir; através da poesia, Parmênides atesta o fato de que a apreensão do pensamento sobre o Real só pode ser estabelecida pelo poder regulado da letra. É por isso que os pré-socráticos devem ser elogiados: desejavam libertar o pensamento de qualquer figura que envolvesse a simples transmissão do conhecimento. Confiaram o pensamento ao cuidado aleatório da letra, uma letra que permanece poética por falta temporária de matemática.
A segunda inovação fundamental dos pré-socráticos foi colocar o poder do amor como uma relação de ser onde reside a função da verdade. O seminário sobre transferência é, claro, nossa referência guia aqui. Considere a seguinte passagem: “Faidros nos diz que o Amor, o primeiro dos deuses imaginados pela Deusa de Parmênides, e que Jean Beaufret em seu livro sobre Parmênides identifica mais precisamente, acredito, com a verdade do que com qualquer outra função, verdade em sua estrutura radical…”4 De fato, Lacan credita aos pré-socráticos a vinculação do amor à questão da verdade de duas maneiras.
Primeiramente, eles foram capazes de ver que o amor, como Lacan mesmo diz, é o que coloca o ser frente a si mesmo; isso é expresso na descrição do amor por Empédocles como o ‘poder de coesão ou harmonia’. Em segundo lugar, e acima de tudo, ospré-socráticos apontaram que é no amor que o Dois é desencadeado, o enigma da diferença entre os sexos. O amor é a aparição de uma não-relação, a não-relação sexual, levada ao extremo de que qualquer relação suprema é perfurada ou desfeita. Essa perfuração, esse desfazer do Um, é o que alinha o amor com a questão da verdade. O fato de estarmos lidando aqui com algo que traz à existência uma não-relação em vez de uma relação nos permite também dizer que o conhecimento é a parte da verdade experimentada na figura do ódio. O ódio é, juntamente com o amor e a ignorância, a paixão da verdade, na medida em que procede como não-relação imaginada como relação.
Lacan atribui emblematicamente a Empédocles esse poder da verdade como a torção que relaciona o amor ao ódio. Empédocles viu que a questão do nosso ser e do que pode ser afirmado sobre sua verdade pressupõe o reconhecimento de uma não-relação, uma discordância original. Se não a interpretarmos de acordo com algum esquema de antagonismos dialéticos, a tensão amor/ódio é um dos possíveis nomes dessa discordância.
Freud, como Lacan enfatiza, havia reconhecido em Empédocles algo próximo à antinomia dos impulsos. No Relatório de Roma, Lacan menciona “a referência expressa da nova concepção de (Freud) ao conflito dos dois princípios aos quais a alternância da vida universal foi submetida por Empédocles de Agrigento no século V a.C.”5 Se aceitarmos que o que está em jogo aqui é o acesso ao ser sob a forma de uma verdade, podemos dizer que o que Empédocles identifica no emparelhamento do amor e do ódio, philia e neikos, é algo semelhante ao excesso da paixão de acesso.
Lacan, suspeita-se, recalibra essa referência de maneira a enfatizar cada vez mais a discordância, a não-relação como a chave para a verdade. Para esse fim, ele brevemente associa Empédocles e Heráclito. Empédocles isola os dois termos pelos quais a necessidade de uma não-relação é inscrita; Empédocles nomeia as duas paixões de acesso, conforme implantadas por uma verdade. Heráclito sustenta a primazia da discordância; ele é o pensador da prioridade cronológica da não-relação sobre a relação. Tome, por exemplo, as seguintes linhas sobre a pulsão de morte em Agressividade em Psicanálise: “uma deiscência vital que é constitutiva do homem, e que torna impensável a ideia de um ambiente que seja preformado para ele, uma libido ‘negativa’ que permite à noção heraclitiana de Discórdia, que o efésio acreditava ser anterior à harmonia, brilhar novamente”.6 No trabalho de Lacan, a libido negativa é constantemente conectada a Heráclito. Em resumo, as conexões entre amor, ódio, verdade e conhecimento foram estabelecidas por Empédocles e depois radicalizadas por Heráclito, o pensador original da discordância, da não-relação.
Uma prova adicional da antecipação dos pré-socráticos da pulsão de morte está nas consequências que podem ser tiradas de seus escritos sobre Deus. Uma vez que o Deus de Empédocles nada sabe do ódio e, portanto, nada do ponto nodal do excesso para a paixão de acesso, espera-se que o acesso desse Deus à verdade sejacorrespondentemente restrito. Isso é precisamente o que Lacan, apoiando-se no comentário de Aristóteles, atribui a Empédocles em Encore:
Para as surpreendentes consequências que podem ser derivadas dessas considerações sobre a ignorância de Deus, remeto o leitor ao maravilhoso livro de François Regnault, Dieu est inconscient.8
O que importa aqui, no entanto, é que observemos que, após notar a antecipação poética do funcionamento livre do matema, Lacan credita aos pré-socráticos uma intuição que tem implicações de longo alcance para os recursos da verdade inerentes à discordância sexual.
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Vamos abordar o problema de estabilizar a relação entre a psicanálise e o platonismo.
Na estratégia de Heidegger, os pré-socráticos foram empregados principalmente para deconstruir Platão e, como efeito colateral, traçar o surgimento do sistema da metafísica. Lacan conduz uma operação semelhante? A resposta é complexa.
Lacan nunca busca objetivos puramente filosóficos. Sua intenção, portanto, não é dissecar Platão. Em vez disso, Lacan mantém uma rivalidade ambígua com Platão. Pois Platão e a psicanálise têm pelo menos duas empreitadas conceituais em comum: pensar o amor como transferência e explorar a trajetória sinuosa do Uno. Nestes dois pontos, é crucial para Lacan estabelecer que o que ele chama de ‘caminho freudiano’ é diferente do platônico.
No entanto, no final das contas, Lacan convoca os pré-socráticos para ajudá-lo enquanto luta para demarcar a fronteira entre a psicanálise e o platonismo. E também fica claro que a aposta central nessa tentativa de demarcação mais uma vez diz respeito ao tema da não-relação, da discordância, da alteridade sem conceito; e, consequentemente, diz respeito à desvinculação entre conhecimento e verdade.
Lacan atribui a Platão o desejo de que o ser seja completado pelo conhecimento, e, portanto, uma identificação (inteiramente um produto de domínio) do conhecimento com a verdade. A Ideia, no sentido de Platão, seria um ponto equívoco que é simultaneamente uma norma do conhecimento e uma razão de ser. Para Lacan, tal ponto só pode ser imaginário. É como uma rolha que tapa o hiato entre conhecimento everdade. Isso traz uma paz ilusória à discordância original. Lacan afirma que a posição de Platão declina à luz das proposições de Empédocles e Heráclito sobre a primazia da discordância sobre a harmonia.
Portanto, é certo que, para Lacan, assim como para Heidegger, algo foi esquecido ou perdido entre os pré-socráticos e Platão. No entanto, não é o significado do ser. É, sim, o significado da não-relação, da primeira separação ou lacuna. Na verdade, o que foi perdido é o reconhecimento do pensamento da diferença entre os sexos como tal.
Poderíamos também dizer que entre os pré-socráticos e Platão ocorre uma mudança na forma como a diferença é pensada. Isso é fundamental para Lacan, uma vez que o significante é constituído pela diferença. Empédocles e Heráclito afirmam que, na própria coisa, a identidade é saturada pela diferença. Assim que uma coisa é exposta ao pensamento, ela só pode ser identificada pela diferença. Platão, poderia-se dizer, perdeu de vista essa linha argumentativa por ter removido a possibilidade de identificar a diferença dentro da identidade da Ideia. Poderíamos dizer que os pré-socráticos diferenciam a identidade, enquanto Platão identifica a diferença. Essa é talvez a fonte da preferência de Lacan por Heráclito.
Lembrando, em seu primeiro seminário, que a relação entre o conceito e a coisa é fundamentada no pareamento de identidade e diferença, Lacan acrescenta: “Heráclito nos diz — se introduzirmos a mobilidade absoluta na existência das coisas de tal forma que o fluxo do mundo nunca atravesse duas vezes a mesma situação, é precisamente porque a identidade na diferença já está saturada na coisa”.9 Aqui vemos como Lacan contrasta a identificação eterna de diferenças de acordo com o ponto fixo da Ideia — como em Platão — com o processo diferencial absoluto constitutivo da própria coisa. A concepção lacaniana da relação entre identidade e diferença — e, portanto, na coisa, entre o um e o múltiplo — encontra suporte, contra Platão, no mobilismo universal de Heráclito. Isso é o que Lacan observa em relação ao Deus do presidente Schreber no texto Sobre uma Questão Preliminar a Qualquer Possível Tratamento da Psicose. Para Schreber, o Criador é “Único em sua Multiplicidade, Múltiplo em sua Unidade (tais são os atributos, reminiscentes de Heráclito, com os quais Schreber o define)”10.
Na verdade, o que Heráclito nos permite pensar — e o que Platão, pelo contrário, proíbe — é a pulsão de morte. O esforço platônico para identificar a diferença por meio da Ideia não deixa espaço para isso; a discordância heraclitiana, por outro lado, antecipa todos os seus efeitos. No Seminário VII, ao discutir o suicídio de Antígona em seu túmulo, e nossa ignorância sobre o que está acontecendo dentro dele, Lacan declara: “Nenhuma referência melhor do que os aforismos de Heráclito.” Entre esses aforismos, o mais útil é aquele que afirma a correlação do Falo e da morte, da seguinte forma marcante: “Hades e Dionísio são um e o mesmo”. A autoridade da diferença permite a Heráclito perceber, na identidade do deus dos mortos com o deus do êxtase vital, o investimento duplo do Falo. Ou, como Lacan observa sobre as procissões báquicas: “E (Heráclito) nos leva até o ponto em que diz que, se não fosse uma referência a Hades ou uma cerimônia de êxtase, seria nada mais do que uma cerimônia fálica odiosa.”11 De acordo com Lacan, a subordinação platônica da diferença à identidade é incapaz de chegar a tal ponto.
Os pré-socráticos, então, fornecem material abundante para reconstruir, desde suas origens, uma desorientação abrangente de Platão. Nesse sentido, eles fazem parte da genealogia polêmica da psicanálise.
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Recorrendo a Heidegger, devemos, é claro, lembrar que Lacan traduziu seu Logos, que lida particularmente com Heráclito. Acredito que três conexões principais podem ser estabelecidas entre Lacan e Heidegger. Elas envolvem a repressão, o Um e o ser-para-a-morte (l’être-pour-la-mort), sendo todas mediadas pelos pré-socráticos.
Em primeiro lugar, Lacan acredita poder afirmar que há pelo menos uma semelhança entre o tema freudiano da repressão e a articulação heideggeriana da verdade e do esquecimento. É significativo para Lacan que, como Heidegger observa, o nome do rio do esquecimento, Lete, pode ser ouvido na palavra para verdade, aletheia. A ligação é explicitada no primeiro seminário onde, em sua análise da repressão no sentido freudiano, encontramos a seguinte observação: “Em cada entrada do ser em sua morada nas palavras, há uma margem de esquecimento, um lete complementar a cada aletheia.”12 Tal repressão, então, pode ser chamada com razão de ‘originária’. Seu caráter originário está de acordo com a correlação nas origens que Heidegger estabelece entre verdade e ocultação, uma correlação constantemente reforçada por exegese etimológica dos pré-socráticos.
Em segundo lugar, Lacan adota da análise de Heidegger sobre Heráclito a noção de uma conexão íntima entre o tema do Um e do Logos. Isso, para Lacan, é uma tese essencial. Mais tarde, será formulada de maneira estrutural: o aforismo “há algo de (o) Um” (il y a de l’Un) é constitutivo da ordem simbólica. Mas a partir do Seminário III, em uma discussão sobre o caso Schreber, Lacan confirma a leitura de Heidegger sobre Heráclito. Comentando o fato de que Schreber só tem um interlocutor, ele acrescenta:
É na parte mais íntima da prática clínica — aquela que lida com psicoses — que o poder esclarecedor dos aforismos de Heráclito, apoiado por Heidegger, reaparece agora.
Finalmente, Lacan acredita poder também relacionar o conceito freudiano da pulsão de morte à análise existencial de Heidegger, que define o Dasein comosendo-para-a-morte. A figura emblemática de Empédocles serve, no Relatório de Roma, como o vetor para essa conexão: “Empédocles, ao se atirar no Monte Etna, deixa para sempre na memória dos homens esse ato simbólico de seu ser-para-a-morte.”14
Você notará que em todas as três ocorrências de Heidegger — verdade e esquecimento, Um e Logos, ser-para-a-morte — os pré-socráticos são uma referência necessária. De fato, eles são necessários na medida em que não se pode decidir se os pré-socráticos são um ponto de sutura ou projeção entre Lacan e Heidegger; ou se, pelo contrário, é Heidegger quem permite a Lacan acessar uma preocupação mais fundamental com a genealogia pré-socrática da psicanálise. Eu, por minha parte, inclino-me para a segunda hipótese.
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Para Lacan, a intenção é inscrever a psicanálise dentro de um destino de pensamento determinado por oposições e divisões originalmente informadas pelos pré-socráticos. Nessa visão, existem duas oposições cruciais: uma, como vimos, contrasta o sentido pré-socrático de discórdia com a predominância da identidade no esquema platônico. Mas há também uma oposição, talvez ainda mais profunda, dentro das fileiras dos pré-socráticos, que coloca Heráclito contra Parmênides. O texto mais claro está no Seminário XX:
“O fato de que o pensamento se move na direção da ciência apenas sendo atribuído ao pensamento —em outras palavras, o fato de que se presume que o ser pensa — é o que funda a tradição filosófica a partir de Parmênides. Parmênides estava errado e Heráclito estava certo. Isso é confirmado pelo fato de que, no fragmento 93, Heráclito enuncia oute legei oute kruptei alia semainei1, ‘ele nem confessa nem oculta, ele significa’ — recolocando em seu lugar o próprio discurso do lado vencedor — o anax ou to manteion este to en Delphoi2, ‘o príncipe’ —em outras palavras, o vencedor — ‘que profetiza em Delfos’.”15
- οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει [oúte légei oúte krúptei allá sēmaínei]
- ὁ ἄναξ οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς [ho ánax hoû tó manteîón esti tó en Delphoîs]
É interessante notar que Lacan atribui a fundação da tradição filosófica não a Platão, mas a Parmênides.
Eu disse no início que a grandiosa inocência dos pré-socráticos foi ter rompido com as formas tradicionais de conhecimento. Mas mesmo Parmênides é também o fundador de uma tradição. Precisamos, então, localizar duas rupturas. Por um lado, os pré-socráticos rompem com a enunciação mítica, com a tradição do mito que ‘tra-diz’ a realidade imaginária do mundo. Mas, por outro lado, pelo menos um dos pré-socráticos funda uma tradição com a qual Lacan, por sua vez, rompe: a tradição filosófica. Pois Lacan é um antifilósofo. Essa antifilosofia, no entanto, já se manifesta, em certo sentido, por Heráclito. A ideia filosófica é que o ser pensa, por falta de um Real (l’être pense, an manque le réel). Contra essa ideia, Heráclito imediatamente coloca a dimensão diagonal da significação, que não é revelação nem dissimulação, mas um ato. Da mesma forma, o cerne do procedimento psicanalítico está no próprio ato. Heráclito coloca, assim, no seu lugar a pretensão do mestre, do oráculo de Delfos, mas também a pretensão do filósofo de ser aquele que escuta a voz do ser que se supõe pensar.
Finalmente, Lacan tem uma relação dupla, até duplamente traiçoeira, com os pré-socráticos, assim como com toda a história da filosofia. Isso é incorporado pela relação entre dois nomes próprios: Heráclito e Parmênides. Parmênides abrange a instituição tradicional da filosofia, enquanto Heráclito se refere aos componentes da genealogia da psicanálise. Lacan adotará o mesmo procedimento para estabilizar sua relação com Platão, distribuindo-a entre dois nomes próprios: Sócrates, o discurso do analista, e Platão, o discurso do mestre.
Mas essa divisão traiçoeira é uma operação realizada dentro do significante. “Parmênides está errado, Heráclito está certo” diz Lacan. Não deveríamos entender isso como significando que, do ponto de vista da psicanálise, a filosofia aparece como uma forma de razão que estagna no elemento desse erro? Ou como um erro que, dentro do labirinto de sua ilusão, ainda assim faz contato suficiente com o Real para, em seguida, não reconhecer a razão por trás dele?
Os pré-socráticos, então, que permanecem para nós pouco mais que uma coleção de nomes próprios aos quais frases dispersas são atribuídas, servem para Lacan como um reservatório formal. Esses nomes — Empédocles, Heráclito, Parmênides — têm peso literal suficiente, aura de significado suficiente, para permitir a Lacan separar, reunir e, finalmente, formalizar as dialéticas internas da antifilosofia.
NOTAS
- Jacques Lacan, Le Séminaire de Jacques Lacan, Livre VIII Le transfert, 1960-1961, ed. Jacques-Alain Miller, (Paris: Seuil, 2001), pp. 98-9. ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar ofJacques Lacan Book XX: On Feminine Sexuality, the Limits ofLove and Knowledge, 1972-1973, trans. Bruce Fink (New York, 1999), p. 131. ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar ofJacques Lacan Book XX, p. 22. ↩︎
- Jacques Lacan, Le Séminaire, Livre VIII, pp. 66-7. ↩︎
- Jacques Lacan, “The Function and Field of Speech and Language in Psychoanalysis”, in Écrits: A Selection (London, 2001), p. 112. ↩︎
- Jacques Lacan, “Aggressivity in Psychoanalysis”, in Écrits, p. 24. ↩︎
- Jacques Lacan, Seminar XX, p. 89. ↩︎
- François Regnault, Dieu est inconscient (Paris: Navarin, 1986). ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar of Jacques Lacan, Book I: Freud’s Papers on Technique 1953-1954, ed. Jacques-Alain Miller, (Cambridge, 1988), p. 243. ↩︎
- Jacques Lacan, “On a Question Preliminary to Any Possible Treatment of Psychosis”, in Écrits, p. 225. ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar of Jacques Lacan Book VII: The Ethics of Psychoanalysis, 1959-1960, (New York, 1992), p. 299. ↩︎
- Jacques Lacan, Seminar I, p. 192. ↩︎
- Jacques Lacan, The Seminar of Jacques Lacan Book III: The Psychoses, 1955-1956, (New York, 1993), p. 124; translation modified. ↩︎
- Jacques Lacan,”Function and Field”, p. 114. ↩︎
- Jacques Lacan, Seminar XX, p. 114. ↩︎
Texto Original: https://www.lacan.com/badpre.htm
Henrique Darlim
Revisor, tradutor, músico e graduado em História.