Para o jornal Tribune de 19 de outubro de 1945

Considerando o quão perto estamos de sermos explodidos em pedaços nos próximos cinco anos, a bomba atômica não angariou tanta discussão quanto se poderia esperar. Os jornais têm publicado diagramas enormes, não tão úteis para o homem comum, de prótons e nêutrons fazendo suas tramoias, e tem havido bastante reiteração no que diz respeito à declaração de que a bomba “deverá ser posta sob controle internacional”. Mas, curiosamente, pouco tem sido dito, por qualquer via impressa, sobre a questão que é a de nosso interesse mais urgente, diga-se: “Quão difícil é construir essas coisas?”

Tal informação, do modo que nós — isto é, o grande público — possuímos sobre esse assunto, nos tem chegado de maneira indireta, sob o propósito da decisão do Presidente Truman de não ceder certas informações secretas à União Soviética. Alguns meses atrás, quando a bomba era somente um rumor, havia a crença disseminada de que dividir um átomo era um problema meramente para os físicos, e que quando eles o resolvessem, uma arma nova e devastadora poderia estar ao alcance de quase todo mundo. (A qualquer momento, assim o rumor perambulou, algum lunático sozinho em um laboratório poderia explodir a civilização em pedacinhos, tão fácil quanto soltar um fogo de artifício.)

Caso fosse verdade, toda a direção da história poderia ter sido alterada abruptamente. A distinção entre grandes Estados e pequenos Estados seria apagada, e o poder do Estado sobre o indivíduo poderia se enfraquecer grandiosamente. Contudo, parece que a partir das observações do Presidente Truman e de vários comentários que têm sido feitos sobre elas, que a bomba é fantasticamente custosa e que sua fabricação demanda um enorme esforço industrial, esforços tais que só três ou quatro países no mundo são capazes de fazer. Esse ponto é de uma importância cardinal, porque significa que a descoberta da bomba atômica, longe de reverter a história, irá simplesmente intensificar as tendências as quais têm sido aparentes por uma dúzia de anos passados.

É lugar comum que a história da civilização seja em grande parte a história das armas. Em particular, a conexão entre a descoberta da pólvora e a derrocada do feudalismo pela burguesia que tem sido apontada de novo e de novo. E embora eu não tenha dúvidas quanto às exceções que podem vir a surgir, eu penso que a seguinte regra poderia ser feita verdade de modo geral: que tempos em que a arma dominante é exorbitantemente cara ou difícil de construir tendem a ser tempos de despotismo, ao passo que, quando a arma dominante é barata e simples, as pessoas comuns têm a chance. Assim, por exemplo, tanques, navios de guerra e aviões bombardeiros são armas inerentemente tirânicas, enquanto rifles, mosquetes, arcos longos e granadas de mão são armas inerentemente democráticas. Uma arma complexa faz do forte mais forte, enquanto que a arma simples — tão logo não tenha nenhuma resposta — dá as garras para o fraco.

A grande era da democracia e da autodeterminação nacional foi o tempo do rifle e do mosquete. Depois da invenção da pederneira e antes da invenção da espoleta de percussão, o mosquete era uma arma eficiente e justa, e ao mesmo tempo tão simples que ela poderia ser produzida quase que em qualquer lugar. Sua combinação de qualidades fez ser possível o sucesso das revoluções norte-americana e francesa, e fez da insurreição popular um empreendimento mais sério do que o poderia ser em nossos dias. Depois do mosquete, veio a espingarda de culatra. Essa era uma coisa relativamente complexa, mas ainda poderia ser feita em dezenas de países, era barata, facilmente contrabandeada e sua munição era econômica. Mesmo a nação mais atrasada poderia sempre tomar rifles de um distribuidor ou outro, Bôeres, Búlgaros, Abissínios, Marroquinos — mesmo os Tibetanos — poderiam tocar uma luta por sua independência, algumas vezes com sucesso. Mas, consequentemente, todo o desenvolvimento em técnica militar favoreceu o Estado contra o indivíduo, e o país industrializado contra o atrasado. Havia cada vez menos focos de poder. Já em 1939, havia só nove Estados capazes de travar guerra em grande escala, e agora só há somente três — em verdade, talvez só dois. Essa tendência tem sido óbvia por anos, e foi apontada por poucos observadores mesmo antes de 1914. A única coisa que poderia reverter isso é a descoberta de uma arma — ou, para dizer de forma mais ampla, um método de combate — não dependente de grandes concentrações de planta industrial.

Por vários sintomas pode-se inferir que os russos não possuem ainda o segredo da construção da bomba atômica; por outro lado, segundo o consenso das opiniões, parece que eles a terão dentro de alguns anos. Então temos diante de nós o prospecto de dois ou três super-Estados monstruosos, cada um possuidor de uma arma que pode fazer desaparecer milhões de pessoas em poucos segundos, dividindo o mundo entre eles. Tem sido assumido de maneira apressada que isso poderia significar guerras sangrentas maiores, e talvez um verdadeiro fim da civilização da máquina. Mas suponha — sendo esse o desenrolar mais provável — que as grandes nações sobreviventes façam um acordo tácito de nunca usar a bomba umas contra as outras? Suponha que eles somente as usem, ou ameacem fazê-lo, contra aqueles povos que são incapazes de retalhar? Neste caso, estamos de volta onde estávamos, a única diferença sendo aquela do poder que é concentrado em poucas mãos e a perspectiva para os povos subjugados e classes oprimidas sendo mais devastadora.

Quando James Burnham escreveu A revolução gerencial, pareceu provável para qualquer norte-americano que os alemães poderiam vencer o final da guerra Europeia, e assim era, portanto, natural de assumir que a Alemanha e não a Rússia, poderia dominar a massa terrestre Eurasiana, enquanto o Japão poderia continuar mestre da Ásia do leste. Esse era um erro de cálculo, mas não afeta o argumento principal — para que a figura geográfica de Burnham do novo mundo acabasse estando correta. Mais e mais óbvio era a superfície da Terra sendo parcelada em três grandes impérios, cada um autocontido e cortado do contato com o outro e cada um controlado por uma oligarquia auto eleita. O regateio quanto a onde as fronteiras deveriam ser desenhadas ainda continua, e irá continuar por alguns anos, e o terceiro dos três super-Estados — Ásia do Leste, dominado pela China — é ainda potencial ao invés de atual. Mas o movimento geral é inconfundível, e toda descoberta científica dos anos recentes o tem acelerado.

Disseram-nos que o avião tinha “abolido fronteiras”; na verdade, foi só quando o avião se tornou uma arma séria que as fronteiras se tornaram definitivamente impassáveis. Quanto ao rádio, se esperava que promovesse o entendimento internacional e a cooperação de uma nação com a outra; acabou se mostrando um meio de isolar uma nação da outra. A bomba atômica pode completar o processo, tirando das classes exploradas e dos povos o poder da revolta, ao mesmo tempo em que coloca os possuidores da bomba na base da igualdade militar. Incapazes de conquistarem uns aos outros, eles provavelmente continuarão a ditar o mundo entre eles, e é difícil de ver como o equilíbrio pode ser perturbado, exceto por mudanças demográficas lentas e imprevisíveis.

Por quarenta ou cinquenta anos passados, o Sr. H. G. Wells e outros têm nos alertado de que o homem está em perigo de se autodestruir com suas próprias armas, deixando as formigas ou outras espécies gregárias tomar o lugar. Qualquer um que viu as cidades em ruínas na Alemanha irá pensar que essa ideia é ao menos pensável. Não obstante, olhando para o mundo como um todo, o movimento por muitas décadas tem sido não ao encontro da anarquia, mas em direção da reimposição da escravidão. Talvez estejamos caminhando não para um colapso, mas para uma época tão horrivelmente estável quanto os impérios escravistas da antiguidade. A teoria de James Burnham tem sido muito discutida, mas poucas pessoas tem ainda considerado suas implicações ideológicas — isto é, o tipo de visão de mundo, de crenças, e a estrutura social que poderia provavelmente prevalecer em um Estado em que era até ontem inconquistável e em um permanente estado de “guerra fria” com os seus vizinhos.

Tendo a bomba atômica se tornado algo tão barato e de fácil fabricação quanto uma bicicleta ou um despertador, ela poderia muito bem nos atirar de volta ao barbarismo, mas poderia, por outro lado, significar o fim da soberania nacional e do Estado policial altamente centralizado. Se, como parece o caso, ela é cara e um objeto tão custoso quanto difícil de produzir como um navio de guerra, é provável que ela coloque um fim às guerras de larga escala ao custo de prolongar indefinidamente a “paz que não é paz alguma”.


Tradução: Felipe Aiello
Revisão: Éric Gaúna
Original: https://www.orwellfoundation.com/the-orwell-foundation/orwell/essays-and-other-works/you-and-the-atom-bomb/


George Orwell

Pseudônimo de Eric Arthur Blair, George Orwell foi escritor, crítico literário, jornalista e ensaísta político.

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