No já distante ano de 2009, quando eu era delegado de base do DCE da UNESP, escrevi na lousa de uma das salas de nossa ocupação, não sem certo sarcasmo: “Os marxistas já interpretaram o mundo de mil maneiras, o que importa, contudo, é mudá-lo”. A provocação se dirigia ao grosso dos militantes e professores do movimento, em uma unidade da universidade particularmente conhecida por abrigar um setor de docentes marxistas e marxistoides. Parodiava, além disso, o próprio Marx que, com sua tese 11, representa um choque aos filósofos e seu mundo das ideias.

Décadas antes, nos corredores da alta vida intelectual francesa, Michel Foucault notabilizou-se por propor uma alternativa ao que ele chamava de humanismo, nascido, ele mesmo, nos séculos pregressos. O humanismo renascentista, com seu foco na formação do homem, ou o humanismo iluminista, com as ideias anexas de progresso e melhoria das condições de vida do homem através da razão, se encontrava em crise no momento francês e europeu, em geral, alimentado pelos horrores da guerra e aquilo que era interpretado como corolário da razão: a barbárie em escala industrial do nazismo.

Foucault se desfazia do humanismo e da tradição francesa cartesiana de apelar a um cogito (a famosa ideia do “penso, logo existo”) através da qual todo o edifício da filosofia moderna se havia solevado. Ora, para Foucault, nesse momento, o homem, enquanto figura do saber, era uma série de acasos, um fenômeno de superfície de estruturas mais profundas que, assim como o geraram, enterrariam-no em breve. Esse era, diz Foucault, o movimento do saber moderno.

Na década seguinte a essas afirmações, anos 70, Foucault publicou um livro que se sagrou clássico das humanidades, o famoso Vigiar e Punir, onde o francês analisa a formação das sociedades modernas desde o ângulo daquilo que elas fizeram com os corpos. O desafio para aquelas sociedades em vias de criar a modernidade como conhecemos era, nos diz, transformar uma população heterogênea em proletariado urbano, em operário de fábrica, trancafiado horas a fio em um ambiente até então estranho e tendo que regular seus movimentos em uma métrica preestabelecida. Além disso, esse modelo de organização dos corpos, como diz Foucault, não se encerrava na fábrica, mas, pensado originalmente pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, para as prisões, se estendia por toda uma série de instituições novas ou renovadas, como o exército, o hospital, o hospício, a própria prisão e a escola. Foucault chamou essa verdadeira tecnologia de disposição dos corpos de disciplina e as sociedades organizadas em torno dele de sociedades disciplinares.

Com essa mudança de perspectiva, Foucault deslocou toda a questão de como agir politicamente nas diferentes sociedades. Para boa parte dos marxistas — e era isso que Foucault também queria denunciar — a questão era como ganhar uma consciência, como convencer alguém e organizar essas vontades no partido, a vontade coletiva. O próprio partido de vanguarda leninista, definido como “a parte mais consciente da classe” era pensada como orbitando em torno das noções de convencimento de uma mentalidade, de lutas de subjetividade, no âmago do sujeito. Assim, para Trotsky, no famoso Programa de transição, escrito no final da década de 1930, o problema era que as condições materiais ou objetivas da revolução socialista estavam postas, faltando-lhe, contudo, as condições subjetivas. Esse mantra era ainda repetido por Losurdo, o qual, em Fugadahistória, afirma que a URSS não perdeu a guerra econômica ou militar contra os EUA, mas a guerra ideológica. Nisso, esses marxistas pecam em idealismo, visto que desgarram as condições subjetivas daquelas materiais, como se as mentes, pensamento e orientações das pessoas fossem diferentes daquilo que elas fazem, de onde estão seus corpos, de como se relacionam com os demais. Até mesmo Marx cai no pecado redutor, na tese 11 supracitada, ao afirmar que os filósofos somente interpretaram o mundo e que era chegada a hora de transformá-lo, como se interpretar o mundo não fosse, desde já, transformá-lo.

Com tudo isso quero chamar a atenção da esquerda brasileira para o seguinte. Não existe “crise de consciência” ou de “direção”. Se a saída pra nossa situação fosse, tão simplesmente, colocar consígnias acertadas para uma população tida como naturalmente inclinada a aceitá-las, o tal proletariado (ou periferia, ou classe trabalhadora), o PCO, PSTU, UP e outras siglas de extrema esquerda já governariam o país há tempos. O problema não é uma consciência que se extraviou e está alienada.

O problema, assim, não é que a esquerda nada tem a dizer à periferia. Ao contrário, o problema é justamente que a esquerda tem demais a dizer à periferia: tomos completos, séries de livros, teses, dissertações artigos, economia, filosofia, política, sociologia, etc. Uma universidade inteira poderia ser organizada tendo como único programa, justamente, o que a esquerda tem a dizer à periferia.

O problema é o que a esquerda tem a fazer com a periferia.

Vejamos. Seu José, 54 anos, vende picolé em Ipanema. Acorda cedo, saí para vender, atravessa a cidade. Não tem patrão, só fornecedor. Está imerso em relações de venda e troca e controla seu tempo livre. Outro dia, ficou doente e se deu o luxo de ficar em casa, sem ter que pedir ou justificar a ninguém. No dia seguinte, comeu pior, só ovo, sem um bife, mas comeu. Na televisão e no Facebook, ele entrou em contato com as noções de empreendedorismo e já falaram para ele que ele é empresário. No seu bairro de periferia, há cursos de empreendedorismo e até mesmo uma agência do Banco do Povo. Seu José já foi operário de fábrica, mas o ordenado rendia pouco e, em todos os movimentos que participou, não viu resultado. Uma vez, o rapa lhe tomou o isopor com a mercadoria e ele teve um prejuízo enorme. Seu José acha que o que falta é liberdade econômica. Ele não é mais trabalhador; agora é empresário. Não se identifica com o PT, mas com o NOVO e com o tal Marçal, menino bom. Se ele se esforçar mais, pensa, se mudar sua mentalidade e seu subconsciente que atrai pobreza, ele vai poder abrir uma sorveteria e vender mais, quem sabe uma rede de sorveterias e uma fábrica. O futuro vai brilhar para mim, conclui. Vou trabalhar 14 horas amanhã. E dorme cedo, sem ver TV, depois de assistir alguns vídeos no Youtube.

No nosso exemplo, seu José está imerso em um universo prático onde ele não se submete às estruturas que um empregado se submete, ao menos segundo ele pensa. Ao contrário, como todos odiamos nossos patrões e superiores, José também não via a hora de se livrar dos seus, e, assim, se alçar a uma nova classe social. Enriquecer fácil. Na prática, seu José, unilateralmente, se vê como empresário, não importa que seu capital (se é que podemos chamar assim, data venia, economistas e sociólogos) é da casa de centenas de reais.

Em seu bairro de periferia, não há presença do Estado, senão na forma da polícia. Nem mesmo água e luz são mais públicas, foram privatizadas. Quando precisa ir à prefeitura ou buscar seu remédio de pressão alta, ele encontra filas enormes e é maltratado pelo funcionário precarizado. Já no banco estrangeiro, lhe servem cafezinho e há ar- condicionado. Tem que privatizar, conclui.

A escola de seus filhos é uma porcaria, ensina história e que a democracia é boa. Mas boa para quem? Só se for para os políticos, que enriquecem com fraudes e corrupção. Para Seu José, bom é só dinheiro, para ele poder fazer nem sabe mais o que; comer carne todo dia, talvez, ou, quem sabe, viajar até Búzios ou comprar um carro. Seu José quer ser rico como Marçal.

O pensamento de José não caiu das nuvens. É o reflexo daquilo que ele vive na prática, no cotidiano. Para a satisfação de praticamente todas as suas necessidades, ele precisa de dinheiro. Para não ser maltratado pela polícia, ele precisa ter boas roupas e um bom carro, morar em um bairo legal, o que exige dinheiro. Para não depender do Estado, ele precisa de dinheiro. Para seus filhos estudarem na PUC, ele precisa de dinheiro. Nos filmes, nas redes sociais, em tudo, ele vê como é fácil, com dinheiro, conseguir o que se quer. Sou capitalista, concluiu, porque quero ter dinheiro.

À vida de José, imersa em relações capitalistas e que o adestraram muito bem para tanto, o que opõe a esquerda majoritária? “Leiam tais volumes”, “vote em tal candidato”, vá em tal manifestação”. Assim, é como se se pedisse a um peixe que voasse. A imediaticidade das relações capitalistas e à sua ubiquidade a esquerda opõe um fenômeno bianual que se chamam eleições, onde tudo aquilo que é dito e feito todos os dias é negado. Falta práxis aos filósofos da práxis.

Os sindicalistas revolucionários, grupo surgido na França em meados do século XIX, tinham um remédio para isso. Eles constituíam, nas cidades onde estavam organizados, um local chamado Bolsa de trabalho, uma espécie de centro e de sede para os sindicatos, onde eram organizados vários eventos. Havia peças de teatro, escolas, grupos de alfabetização e leitura. Contra a concorrência capitalistas, eles defendiam a solidariedade socialista. Contra a atomização das atividades laborais, a organização de atividades em conjunto. Ou seja, criavam um ambiente de resistência concreta, real, prática à alienação capitalista.

No Brasil são justamente alguns movimentos sociais que mantém essa mística. Não à toa, são fortes e obtêm muitas conquistas. Mas, quanto aos principais partidos de esquerda, esses só tem a dizer às periferias: nada a fazer. O mesmo pode ser dito da imensa maioria dos sindicatos e entidades de classe, desligados da base e sem tocar lutas concretas a anos; só aparecem no momento da eleição. Não organizam a classe, não organizam os bairros, não organizam os locais de estudo. São, em uma palavra, puramente eleitoreiros e querem competir, sendo aves, destinadas a voar alto, com os peixes no mar.

E, enquanto os josés se espalham pelo país, o eleitor de esquerda míngua, já que está decepado de qualquer imersão naquilo que a esquerda deveria fazer de melhor: luta social.

Felipe Luiz

é bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela UNESP e doutorando em filosofia pela UFSCar, além de poeta e escritor. Tem dois livros publicados, Profecias (Urutau, 2021) e O conceito de estratégia em Michel Foucault (Clube de autores, 2024), além de dezenas de artigos. Mantém um blog (https://filosofiabrasileirapolitica.blogspot.com/) e uma página no Facebook (Estratégia & filosofia). Seus principais interesses são filosofia política (com ênfase em filosofia da guerra e da estratégia), filosofia antiga, filosofias do Sul e ontologia, além de estudos em teoria militar, polemologia e estratégia.

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