Este ensaio propõe tratar da possibilidade sobre uma filosofia brasileira a partir das obras O problema da filosofia no Brasil e Um departamento francês de ultramar, de Bento Prado Jr. e Paulo Arantes. A proposta é “jogar” com as ideias sobre a formação de uma cultura filosófica apresentadas nos textos destes dois autores, desde a tese de que não há filosofia nacional independente até de que fora o próprio Bento que “fundou” a filosofia no Brasil na forma do ensaio filosófico uspiano. De maneira zelosa e irônica, o texto mais tenta refletir sobre em que moldes pode-se falar de tal tema do que a busca em si por uma brasilidade filosófica 1.
Que a filosofia lida constantemente com a análise reflexiva dos inquéritos postos ao longo da história da filosofia, versando sobre teses temáticas e ideias conceituais no que tange ao trato com o ser humano, talvez não seja de nenhum modo um enigma, porém, o que paira no horizonte de incognoscibilidade filosófica para os poucos sabidos acerca do campo de conhecimento é o zelo, muitas vezes, metódico, restrito e rigoroso, com que a filosofia cuida de suas questões. Sobre quais dúvidas, perguntar-se-iam, a filosofia trata de discorrer? Ora, não tendo objeto próprio de estudo como a sociologia que examina o indivíduo organizado socialmente, a antropologia que observa o sujeito na cultura em que reside e a história que enxerga a pessoa nos fenômenos do passado, a filosofia possui liberdade para agir em todos os âmbitos que bem lhe apetecer. Dizer que todo e qualquer tipo de tema está à disposição da filosofia, de certo modo, tem o sentido de que há uma filosofia como disciplina das ciências humanas cuja propriedade intrínseca é ser universal, logo, manifestar qualquer coisa do tipo como uma filosofia alemã e filosofia francesa não significa restringir a totalidade independente da filosofia a uma espécie de demarcação epistemológica geo-etnográfica? 2Há um contrassenso em alegar que a filosofia pode ocupar-se de tudo e, ao mesmo tempo, falar que existem tópicos temáticos centrais costumeiros no cotidiano de uma civilização que molda um pensamento filosófico nacional? Em outras palavras, por exemplo, será correto dizer que um “ideal metafísico” seja em assunto discorrido por vários filósofos de diversos tempos e lugares, mas que ao mencionar “idealismo”, Kant, Hegel, Schelling e Fichte, prontamente surjam sob o véu da filosofia alemã? Nesse caso, que viria à mente ao comunicar a respeito de uma filosofia brasileira? Quais temas e autores seriam levantados de antemão?
Quando os professores Marcos Nobre e José Marcio Rego, após longos meses de entrevistas, publicam a obra Conversas com filósofos brasileiros (2000) com intuito de reunir dezesseis filósofos brasileiros no anseio de tratarem, a partir das diversas perspectivas das mentes intelectuais mais ilustres do que há de possível dizer sobre um pensamento filosófico nacional, no tocante àquilo que a filosofia clássica até a contemporânea discute e a relação desta com a cultura brasileira, além dos processos de formação da intelectualidade brasileira entrevistada, a questão que paira é justamente o convite para uma conversa que inaugura (ironicamente) uma controvérsia explorada precisamente nesses escritos: seria possível falar de uma “filosofia brasileira” e as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Parece contraditória ideia de convidar “filósofos brasileiros” para explorar a possibilidade de uma “filosofia brasileira”, mas que permite conjecturar sobre o a formação do Brasil e sua cultura na relação com o pensamento filosófico clássico.
A título de congregar aqueles que supõem-se terem mais relevância no que tangem suas falas sobre a filosofia e a cultura brasileira para o progresso reflexivo do texto – sem a intenção que teve a Carta ao Jornal de Resenhas da Folha de São Paulo, em 10 de fevereiro de 2001, escrita pelo professor Ricardo Musse com a finalidade de opor-se à escolha do agregado erudito reunido na obra supracitada, no qual trata logo de dizer que Balthazar Barbosa Filho e Guido Antônio de Almeida, por exemplo, não possuem “nem mesmo uma coletânea de artigos” e que há filósofos brasileiros com publicações mais extensas e reconhecidas –, observa-se de imediato Bento Prado Jr., Oswaldo Porchat Pereira e Paulo Eduardo Arantes.
Nota-se o balanço dialógico entre o coletivo filosófico brasileiro ao longo de sua formação, ou melhor, quem sabe seja cedo para definir o fazimento de um pensamento filosófico nos moldes senhoriais da metrópole, mas é mais correto atestar o nascimento tardio de uma cultura reflexiva localizada na favela do e para o resto do “mundo” – mais claramente, o mundo europeu com seu idealismo alemão, empirismo inglês e espiritualismo francês que dar-se-ia a entender como território epistemológico central de filosofia verdadeira e há quem concorde que assim o seja – cuja semente provém, devese admitir, da expedição ultramarina francófona a partir dos professores e filósofos Jean Maugüé, Gilles-Gaston Granger, Gérard Lebrun e Martial Gueroult – Lévi-Strauss veio logo em seguida e, apesar de pertencer ao campo não tão bem separado da sociologia, mas deixou seu Aristóteles nas salas de aulas superaquecidas do país tropical para se dedicar aos seus estudos etnológicos enquanto convivia com os kadiwéus e nambikwara na aldeia Wakalitesu. Em sua jornada para colonizar a contar com o apoio dos próprios que viriam a ser colonizados, começava-se em 1934 a formar-se no país um Departamento de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e a preparação do ambiente para aqueles indivíduos que não possuíam uma filosofia autoral, mas tinham o desejo imanente para tal, e por isso importaram os processos de leitura e interpretação para análise dos textos filosóficos pelo exame estrutural dos sistemas e o método estrutural dogmático com tais concepções sendo herdadas, a princípio, pelo texto O ensino de filosofia e suas diretrizes (1954), onde o “docente-intelectual” nos é apresentado como uma concepção prática entre aquilo que já se sabe e o que há de saber, sob uma relação pedagógica do professor e estudante, notoriamente, técnica diferente do historicismo de João Cruz Costa – Professor Assistente de Jean Maugüé – que enxerga a formação do pensamento filosófico brasileiro através do conhecimento da história das ideias e ao psicologismo de Álvaro Vieira Pinto quando a teoria ideológica da dialética marxista e psicologia existencialista da autenticidade resultam em uma metafísica da consciência nacional, conjuntando repertório teórico e entendimento das noções históricas para o vir-a-ser do devir filósofo e da saída do ensaismo amador para o profissinalismo, Maugüé, pelo convite de George Dumas, já embarcado no paquebot Mendoza e em direção à Baía de Guanabara, trazia consigo a máxima kantiana que influenciaria o ensino de filosofia no Brasil, cita-se: “não se ensina filosofia, ensina-se a filosofar”.
Nessa primeira acepção, até um dado limite, a filosofia é dialética. Aparenta ser rude reduzir essa disciplina cujo conceito não findou em consenso até hoje, apesar disso não se pretende de modo algum caracterizar o estudo das questões humanas a uma simples conversa de botequim onde colegas se encontram para beber e discorrer sobre as adversidades e bonitezas de suas existências – Talvez Bento e Porchat não ligassem tanto dessa proposição quando levavam Arantes para os bares da Vila Buarque. O trabalho mais recente que possa exemplificar, talvez seja O que é a filosofia? (2010 [1992]), de Gilles Deleuze e Félix Guattari – dois franceses, não é de se espantar que se o antigo ditado diz omnēs viae dūcunt Rōmam 3, no caso da filosofia para o presente texto, todos os trajetos levam ao reino de Luís XIV –, obra onde a filosofia aparece como uma disciplina que cria conceitos, diferentemente da arte e ciência, e o filósofo como esse sujeito que reúne, mistura e combina esses componentes complexos da multiplicidade do real na forma de um nome conceitual. Essa última obra de Deleuze, um escrito da velhice, procura dar significado à trajetória do filósofo através de um estilo discursivo elaborado pelos espíritos mais sábios da história da filosofia, a saber: o elogio da filosofia. Arantes comenta sobre essa praxe charmosa no evento “Filosofia e vida nacional: 25 anos de ‘Um Departamento Francês de Ultramar’”, realizado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), o nome da palestra levava o título de “Por que filósofo hoje?”, referência à mesa-redonda “Por que filósofo?” de 1975 e ao texto de Bento Prado Jr., Profissão: filósofo (1980) em que discute o vínculo institucional e utilitário da filosofia para o ser filósofo.
O mesmo Bento e seu colega Porchat, “discutem” dialeticamente ao longo de toda as suas vidas, representando senão o conflito das filosofias – referência à aula inaugural de 1968 e ao texto publicado no ano seguinte –, então o conflito dos filósofos. Tal embate entre Porchat e os filósofos fora proposição para a organização de colóquios que contribuiriam para a discussão filosófica organizada e a reunião dos mais bens quistos intelectuais nacionais e estrangeiros, desde a década de 1970, a partir do preparo de congressos de filosofia que, como afirmou Guido de Antônio Almeida, fora um dos aspectos vitais para a figura de Porchat como filósofo brasileiro. Aliás, Porchat baseara sua filosofia no senso comum em equilíbrio com o ceticismo pirrônico antigo, isto é, um neopirronismo como um saber do mundo, não dogmático, em que a atuação como filósofo e homem comum transformar-se entre o levantar voo da coruja de Minerva no crepúsculo. Mas pensar a filosofia da maneira que ela quer que pensemos foi o inverso que este fez e, mais ainda, Porchat criticara a metodologia uspiana como um sistema doutrinário de métodos estruturais dogmáticos. Bento falaria de um estilo particular, mas concorda com Porchat quando ambos afirmam que não há uma filosofia brasileira, mas um certo rigor filosófico de trabalhos escritos por brasileiros profissionais em filosofar que desenvolveram uma cultura reflexiva. Ora, não há nada que expresse um bojo tupiniquim em comparação e contraste à filosofia da metrópole? Em Porchat e Bento já viu-se que não há nada de parecido com o que se diz sobre uma filosofia brasileira nos moldes chuavinistas, essa não é a ideia, mas continuamos na chave da interpretação de meditar na formação de uma cultura filosófica no Brasil como um novo estilo textual e, pelo visto, José Arthur Giannotti, ainda que de maneira crítica, propõe uma proto-filosofia brasileira como aquilo concretado no ser social e fundado naquilo que Arantes nomeou como “ovo da serpente” no que diz respeito a uma ontologia regional do ser humano em Trabalho e reflexão (1983) em contraposição à sociologia da USP que compreende a formação de uma cultura reflexiva como um pensamento nacional de intérpretes do Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. Marilena Chauí, de modo semelhante, mas talvez nem um pouco satisfeita com isso e essa aproximação com Giannotti, fala acerca de contribuições brasileiras para uma cultura filosófica regional, esta última como um uno filosófico que adquire estrutura, tradição e dinâmica com as ideias e pensamentos das diversas culturas filosóficas e que nota-se pela formação do departamento de filosofia na USP.
A elite intelectual paulistana já estava degustando dos frutos nacionais, de modo antropofágico, desde o final do século XIX, dadas as tendências econômicas, sociais e culturais que Antonio Candido identificara em Formação da literatura brasileira (2000) como sendo a contradição do pragmatismo lusitano e o formalismo escolástico no que tange os respaldos nas obras brasileiras por expoentes como, talvez o mais célebre entre eles, Machado de Assis. Tal fato consumado exposto por Candido denota a necessidade e vontade de uma literatura propriamente local e, da mesma forma que seu mestre, Arantes reconhece o mesmo anseio da comunidade intelectual paulista, agora no que tem sede por beber de uma filosofia que se diga filosofia brasileira como uma formação de pensamento filosófico na cultura brasileira. A trajetória historicista um pouco semelhante com a de João Cruz Costa, mas de maneira alguma historiográfica, empreendida por Arantes em Um Departamento Francês de Ultramar (1994) enxerga criticamente a formação de uma cultura filosófica no Brasil, em sentido candiano, como a criação institucional do curso de Filosofia na USP e a profissionalização dos filósofos pelas técnicas importadas pela expedição ultramarina cuja cultura filosófica europeia não pode ser indissociável. Houve um choque dos professores em missão ao observarem que os estudantes sabiam daquilo que mais estava em voga na atualidade do que propriamente os clássicos filosóficos e, por isso, a ênfase no estudo das obras que compunham marcos na história da filosofia para compreensão das ideias dos filósofos. A princípio, Porchat era favorável ao teor parcimonioso do método estruturalista, porém a visão comum de mundo neopirrônica e a perspectiva não dogmática de sua filosofia passaram a colocá-lo ao mesmo lado de Bento e Paulo e, dessa forma, todos estes juntamente com Maugüé, quando tratam do aprender a filosofar baseados nos polos da criatividade e criticidade.
Para não pensarem que o ego de Maugüé esteja sendo inflado por toda essa digressão – como benquereria que, talvez, Giannotti fizessem à sua pessoa como ao filósofo-deus no sonho de Porchat –, evocamos mais detalhadamente a figura de Gilles Gaston Granger, filósofo e professor de lógica e epistemologia, dizia em um período que a técnica como uma prática humana anterior ao método científico já não era a regra, também assumia uma postura filosófica requintada quando indica que há um certo estilo filosófico que exige uma certa maneira de viver. Tal estilo figura performativamente a filosofia, alguns mais do que outros, porém é certo que para que haja um Machado na filosofia, este deva ir além do pensamento teórico convencional estruturalista. De início, se Bento não fora capaz de reconhecer a existência de uma cultura filosófica pela falta de potência estilística representativa, pois via essa mais como um gênero de caráter ensaístico, mas não somente isso, fora Arantes, sob a noção de estilo de Granger, que reconhecera na estampa do próprio Bento a efígie elevada de um estilo de filosofia como um certo modo de indagação sui generis da realidade que perpassava a literatura brasileira para o nascimento da filosofia como um estilo de prosa na forma do ensaio filosófico uspiano. Na concepção de Bento acerca da literatura, esta tem caráter intelectivo que é causa do conhecimento e, mais ainda, sobre a literatura brasileira, a leitura literária provoca entendimento do Brasil. Entende-se na apreensão do filósofo e na releitura de Arantes que, para tratar da possibilidade de uma cultura reflexiva, antes dever-se-ia atravessar o crivo da literatura nacional, sendo que fora ela agenciadora de um pensamento local crítico quando antes não havia aquilo que se conheceria como disciplinas das humanidades.
Volta-se o olhar para a musa do departamento, nas palavras de Paulo Arantes. Bento é quem transforma a impossibilidade discursiva conjuntural de uma cultura filosófica crítica em uma necessidade teórico-prática de um pensamento filosófico cultural uspiano, através do papel do filósofo como indivíduo que confronta aquilo que se tem por mais garantido através do estilo da indagação. Apesar disso, a transformação pela agência não se faz pelo campo unicamente da linguagem como discurso e como entendia Gérard Lebrun acerca da filosofia como um modo de falar, porém em sentido material como o sujeito que é professor universitário de filosofia e age e reage sobre o mundo. Bento escreve para a Aut-Aut, Rivista di Filosofia e Cultura um texto publicado como O problema da filosofia no Brasil (1985 [1969]) em que, como o próprio título sugestiona, discute a problemática ao se dizer sobre uma filosofia no Brasil. Havia algo na maneira de pensar de Bento que em uma certa época se assemelhava à visão estruturalista e esquerdista de Cruz Costa, mas que a posteriori à conferência na Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara, ao texto Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60 (1985) – posteriormente publicado em Um Departamento Francês de Ultramar – e aos contínuos diálogos de vida com seu orientando Paulo Arantes, sucedeuse ao prolongamento institucionalizado e mediato da discussão entre Bento e Arantes. Nisso, de volta ao texto de Bento, ele identifica exigências irrevogáveis para a constituição organizada e engajada de um pensamento filosófico regional. Uma delas é, talvez a de caráter mais indispensável, a independência espiritual do ser filósofo como autônomo de sua filosofia cujo aperfeiçoamento de modo algum pode estar tangenciando por uma perspectiva ideológica desenvolvimentista e utilitária da nação. Para tal corolário, fez-se a análise crítica das ideias flutuantes de Cruz Costa e Vieira Pinto, respectivamente, ao historicismo e psicologismo, exemplares de filosofia nacional, como ideologias dependentes e que dispensam a ação emancipada que a verdadeira filosofia exige de antemão. Analogamente, o rito cultural antigo japonês, ubasute 4, imita essa relação disforme da cultura filosófica no Brasil quando a filosofia, assim como a idosa senhora está próxima da morte e se vê como incômodo, é abandonada pelos intelectuais em proveito do desenvolvimento de um grupo, família, comunidade ou, nesse caso, de um governo. Nisto, o historicismo e psicologismo em nenhum momento poderiam qualificar-se como filosofias, no máximo, ideologias de um pensamento pragmático importado de Portugal para o Brasil sob o argumento do “progresso nacional”.
Se o Brasil carece, não somente disso, mas também de um pensamento reflexionante autônomo dado o pragmatismo português empresarial crescente, não somente por isso, mas também é pela pouquidade de um sistema filosófico, ou seja, uma tradição material autônoma pelo conjunto de obras que constituem uma herança filosófica de um agregado textual erudito. Afirmar que não há sistema filosófico brasileiro autossuficiente não significa dizer que não haja escritos particulares de autores autônomos, mas reiterar que há patente ausência de diálogo entre Cruz Costa e Vieira Pinto, por exemplo e, mais ainda, o desprovimento de requinte estilístico exclusivo dos filósofos. As obras avulsas como partes de um todo intelectivo nacional não o contemplam, pois seus encaixes são distintos entre si e as peças são de quebra-cabeças diferentes daquele que se pretende organizar. Bento fia-se à ótica de Antonio Candido quando crítica e inspeciona a questão da formação de uma cultura filosófica sobre os termos necessários para tal alcance, dessa forma, relaciona o exame candiano no que se refere o desejo pulsante da elite intelectual paulistana em ter sua própria literatura ao que exigir-se-ia da filosofia enquanto movimento cultural de um pensamento filosófico regional. Por conseguinte, o problema do Brasil como sendo o próprio Brasil, falha na omissão de uma tradição autônoma como um sistema dialógico heterogêneo, formação no desejo estrutural do público e estilo particular de (re)criar o real. Nesse caminho, Bento está cotejando o vir-a-ser da filosofia segundo o ser da literatura. Fazer filosofia no Brasil, dessa forma, exprime uma necessidade intrínseca com a cultura brasileira cuja presença está entrelaçada à literatura nacional que é livre e desobrigada, logo, Bento aparenta ter certo limite de razão quando dá a entender que o registro de nascimento de uma cultura filosófica brasileira ainda não foi lavrado. O hiato gestacional da filosofia semelha mais do que o tempo de gravidez de uma aliá e se a filosofia é o feto no útero que há de nascer e lançar sua voz ao mundo, a literatura brasileira, nesse caso, maternalmente zela pelo amadurecimento saudável de sua prole. Ora, diz Bento, se pudesse conjecturar o nascimento dessa, pelo contrário, jamais poder-se-ia prever quem se assemelharia ao Machado em tal caso. Quem é que inaugura esse novo tempo de exame filosófico na periferia do capital? Nada obstante, a filosofia é composta por momentos indissociáveis e contínuos ao invés de acontecimentos fixos na superfície temporal – aqui reside o Bergson de Bento –, ou melhor, a arte nos moldes do entendimento do gênio de Kant não é encetada com o nascimento de um indivíduo divino e dotado de dom para o belo, porém irrompe em conjunto pelas experiências que antepassaram sua existência e a sua respectiva vivência particular que decorre da materialidade da vida. Não obstante, nem tanto com a intenção de discordar ainda mais de Bento, mas sim de salientar o que Arantes tão bem destacou em seus escritos de gênese de uma cultura de pensamento filosófico paulista: a filosofia já nasceu e a nossa pátria mãe tão distraída nem percebera.
Em certidão de nascimento, segundo capítulo de sua obra dedicada ao seu mestre Bento, Arantes assegura a carta de alforria da filosofia pelo processo de formação de uma cultura intelectual uspiana a partir da expedição francesa nos 1930. Novamente, a figura de Maugüé é celebrada como aquele que reuniu as duas partes da filosofia em um modo de agir. Gilda de Mello e Souza que relacionou as aulas de seu mestre como um acrobata que alça voo inigualável e encanta a plateia, observou o vislumbre da equivalessência entre a técnica e inventividade. Se a filosofia é a intersecção do amadorismo da moda intelectual sem tradição clássica e a mecanização extrateórica do método estrutural dogmático, o ser filosófico didático poder-se-ia dizer é justamente a persona de Maugüé que na aula filosofa, muito distintamente do que se experienciava na Cátedra do Largo São Francisco, os estudantes eram tocados por quem até mesmo Oswald de Andrade, crítico dos universitários, possuía algum respeito pelo modo de ensinar. Parece que os ensinamentos em forma de sementes de Jean Maugüé geraram raízes cujos brotos vieram mostrar-se na pessoa de Bento Prado Jr. Em A musa do departamento, sétimo capítulo, Bento é a áster que floriu do pó da estrela que foi Maugüé, pois ia mais adiante da filosofia. Arantes quem elegera o estilo de indagação de Bento como parte da mudança filosófica na cultura regional que fora aspecto notável na formação da cultura filosófica uspiana através de uma nova maneira de ensaio, à la Montaigne, salientou que ele tinha apetite pela literatura quase como um hábito boêmio transcendental ao mesmo tempo que a gana profissional de técnicas emolduravam o seu saber criativo em uma forma textual coesa e coerente. A síntese entre o técnico e o artista. Foi Antonio Candido que identificara que o alargamento do espírito nacional brasileiro ocorria em função da massa literária como razão para o florescimento filosófico e, especificamente, Bento era a expressão desse caso, pois era uma literatura errante envolta de filosofia. A mesma universidade uspiana não lograva em atá-lo às amarras teóricas doutrinárias dos sistemas e técnicas de leitura dogmática estruturalista, pois Bento, em especial, assim como Giannotti, Fausto, Porchat, Arantes e Chauí que sob o domínio do entendimento desta última filósofa, reitera-se que a filosofia é mais do que uma profissão, antes de tudo, é uma vocação genuína. Bento era mais do que a profissão filósofo e o processo de empresarização da instituição em organização pelo aspecto do capitalismo acadêmico não fora capaz de restringi-lo, uma vez que algo de ornamental aprimorava a profissionalização da filosofia dele pelo trato engenhoso da literatura. Bento “criou” um gênero de prosa pela ensaio na cultura filosófica uspiana pelo nexo arantesiano de que era tão banhado pelo uno dualístico da profissão metodológica da leitura e escrita e a lapidada expressão artístico-literária, que seu estilo reflexivo-crítico culminou no aprimoramento de um novo modo de filosofar através do ensaiar textual.
Convém dizer que Bento possui toda a pinta moldada de filósofo, desde o estilo à sala de aula, e assemelha aos que poucos sabem ou que pensam que acham que sabem, ser o “pai” fundador de um novo modo ensaístico de filosofar no Brasil – longe de qualquer tipo de nacionalismo – e que ele “fez” acontecer o momento de anunciação da virada filosófica para os ouvidos excitados da elite intelectual paulistana. Mas, Bento tanto está para criador de uma filosofia essencialmente nacionalista quanto está a Proclamação da República pelo grito nas margens do Riacho do Ipiranga ou o plebiscito de um governo neofascista como marco da barbaridade. Não há pretensão alguma de desmerecê-lo, na verdade, a exaltação da figura do filósofo vem justamente pela relação dialógica que possui para com os outros companheiros. Se Bento fora tão extraordinário como sabem que ele o foi, também se sabe que era devido a constante e intensa discussão filosófica que possuía com seus interlocutores. Bento Prado Jr., Paulo Arantes, Oswaldo Porchat, Marilena Chauí, Ruy Fausto e José Arthur Giannotti formam uma ligação interdependente no qual seus vértices são independentes entre si. Há um jogo recreativo entre estes em que o tema filosófico, objeto da brincadeira, constantemente é lançado e relançado, batido e rebatido, formando um jogo dialógico – a expressão possui mais serventia para Bento e Porchat, por exemplo, do que para Giannotti e Fausto, onde o que acontece, na verdade, é uma luta filosófica de controversias entre ambos. Poder-se-ia dizer, além disso, que houvera uma pequena tradição filosófica problemática no Brasil e que, conforme Arantes reconhece, foi resolvida por Bento dado o seu estilo filosófico. Ele não está nem um pouco errado ao dizer sobre a persona eminente de seu mestre, porém isso de forma alguma poderia ser possível sem os aspectos retrospectivos expressados anteriormente por um certa dialética 5. Bento não foi filósofo porque indagava, mas questionava e por isso era filósofo, investigava pela filosofia e literatura como quem caminha despreocupado com o dia e logo percebe que já é noite. Caminhava com Porchat e Arantes, devaneava sem perder o rumo da estrada, visto que estava muito bem acompanhado de uma agradável comitiva filosófica.
A figura de Bento é, talvez, a expressão máxima da experiência filosófica que Arantes e Chauí tanto já trataram, visto a insatisfação com o processo de formação filosófica até o momento nos moldes metodológicos da metrópole. O estruturalismo importado para o molde uspiano jamais poderia formar seus estudantes rumo ao desenvolvimento de uma tradição de uma cultura filosófica – pois, na ideia parafraseada de Olgária Matos sobre a primeira aula de Chauí, querer-se-ia sempre mais e mais do filósofo do que um simples seminário de filosofia, pretende-se sempre mais do próprio filósofo –, mas isto não somente pelas técnicas de leitura de textos que mais modelavam historiadores da filosofia do que filósofos, porém por não haver algo de uma “brasilidade filosófica”. Pouco importava para estes autores sobre um instinto de nacionalidade particular, uma vez que mais parecia uma ideologia nacionalista da vontade de uma filosofia brasileira, logo, Bento, Porchat e Arantes mais estavam para filósofos despatriados de esquerda do que um movimento filosófico ufanista. À vista disso, o problema da filosofia no Brasil somente se mostra como contratempo quando visto pela perspectiva substancialista em que haveria uma brasilidade, entretanto, fixando-se pela ótica da formação de uma cultura filosófica brasileira a partir da tradição literária, percebe-se que Bento, não somente, porém com mais pujança e charme, talvez, resolveu transformar a vontade de filosofia em necessidade ativa, conjuntando as características das técnicas de leitura estrutural de textos com a criatividade expressa pela bagagem cultural advinda da literatura nacional e, quiçá a engrenagem fundamental: o contínuo jogo dialético entre o seu estilo de indagação e as contraposições filosóficas de Porchat e Arantes. É correto dizer que a filosofia nunca teve o seu Machado, mas sim seus machadinhos como um coletivo filosófico independentes entre si.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_________________. Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60. Porto Alegre, L&PM UNICAMP/UFRGS, Revista Filosofia Política, nº 2, 1985.
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PORCHAT, Oswaldo. O conflito das filosofias. Revista Sképsis, vol. 7, nº 11, p. 1-13, 2014.
PRADO JR., Bento. Profissão: filósofo. São Paulo: Cadernos PUC, Educ/Cortez Editora, vol. 1, p. 15-32, 1980.
__________________. O problema da filosofia no Brasil. São Paulo: Max Limonad, 1985.
- Meus mais sinceros agradecimentos ao professor Silvio Rosa, cujas aulas na graduação no curso de filosofia sempre me foram de grande valia assim como sua orientação e diálogos que estabelecemos e proporcionaram que a construção desse texto fosse possível. ↩︎
- Adota-se uma divisão da história da filosofia sobre a perspectiva epistemológica geo-etnográfica para fundamento das bases do presente ensaio para discussão da possibilidade ou não de uma filosofia brasileira. Contudo, vale mencionar os aspectos metodológicos-pedagógicos para tal demarcação na formação das grades curriculares dos cursos de filosofia que, no geral, seguem uma linha histórico-cronológica (Filosofia Antiga I, Filosofia Moderna II etc.) do que uma linha temática, por exemplo, considerar Montaigne em sua individualidade e não como um filósofo cético ou humanista do período renascentista. ↩︎
- Tradução do Prof. Alex Augusto Marcelo: Todos os caminhos levam a Roma. ↩︎
- Os kanjis de 姥捨て (ubasute) foram transcritos considerando o Sistema Hepburn, método de romanização da fonética japonesa para o alfabeto latino. ↩︎
- Não importa detalhar a concepção de “dialética” em Bento e em Paulo, mas compreender que suas ipseidades, respectivamente, fundamentam-se na dialética bergsoniana e na dialética hegeliana. ↩︎
João Pedro da Silva
Pós-graduando em Docência no Ensino em Saúde pelo Centro de Ensino e Pesquisa Albert Einstein e graduado em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. E-mail: joao2pedro003@gmail.com.