“A ironia do escritor é a mística negativa das épocas sem Deus”
György Lukács
“mas ainda é tempo de viver e contar./ Certas histórias não se perderam
Carlos Drummond de Andrade
Uma das características centrais da concepção de crítica para Walter Benjamin é a sua noção de “distanciamento” em relação à obra analisada. Nem perto demais a ponto de confundir o que é meramente acidental com o essencial da obra, nem longe demais a ponto de generalizar a obra e perder de vista sua singularidade. Em um trecho clássico, ele diz: “Loucos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento” 1. Em outro texto, a respeito da novela As afinidades eletivas, de Goethe, Benjamin nos traz uma imagem interessante para distinguir seus conceitos de “teor material”, mais próximo do comentário e seu aspecto histórico em sua maior materialidade, e o “teor de verdade”, mais próximo da crítica, pois visa o aspecto essencial da obra, que perdura para além das condições históricas e materiais e que ainda nos permite apreender o sentido da obra: “Se por força de um símile, quiser-se contemplar a obra em expansão como uma fogueira em chamas vívidas, pode-se dizer então que o comentário se encontra diante dela como o químico, e o crítico semelhantemente ao alquimista” 2.
O que isso tem a ver com a morte de Franz Kafka em 3 de Junho de 1924, completando agora um centenário? Acreditamos que tudo. Rememorar o autor e sua obra hoje é buscar pelo teor de verdade do qual falava Benjamin, isto é, após 100 anos, perguntamo-nos sobre o que perdura da obra de Kafka enquanto atualidade a partir das “ruínas” de sua produção? Ao longo deste século de Kafka 3, pudemos conhecer diversas de suas facetas: todas como momentos de verdade sobre o autor, mas nenhuma delas capaz de encerrá-lo – o que nos evidencia sua capacidade em continuar a nos provocar questões que continuam a nos impelir a tentar respondê-las. Como diz Benjamin: “a única correlação racional entre criador e obra está no testemunho que esta presta sobre o criador” 4, e acreditamos que seja a partir dessa consideração esguia de aproximações e distanciamentos entre autor e obra, sempre em movimento e nunca sob o mesmo ponto vista, é que deveríamos relembrar de Kafka: olhá-lo a partir de um caleidoscópio móvel, como a figura do alquimista para Benjamin, que avalia as cinzas dessa antiga chama e compreende, pelo que nos alcança hoje, apesar de tudo, os princípios que tornam a vida e obra do autor ainda uma potência para compreensão de nossa própria época.
De volta à noção de distanciamento em Benjamin, isso nos é relevante pois, em um de seus textos sobre Kafka, ele se debruça sobre o livro de Max Brod – colega e editor – sobre o artista, mas “a falta de distância é seu traço mais marcante” 5, o que, para Benjamin, já o faz perder sua autoridade, uma vez que sua intimidade para com Kafka o faz deformar a totalidade da imagem do autor em sua biografia, tornando-o demasiadamente tendencioso no que diz respeito ao caráter do artista, forçando uma imagem de um Kafka religioso, como se fosse um santo.
Disputado pela teologia, psicologia, surrealismo, realismo, anarquismo e marxismo, Kafka certamente é uma fonte incessante para interpretações históricas e sociais. Todas possuem o ganho de atualizar o potencial de sua obra para outras vertentes – o revés são os casos em que tentam tomar o particular por universal, fazendo da obra o receptáculo de desejos inconscientes, transformando Kafka em um símbolo do que ele nunca foi. É um grande equívoco tentar criar um “herói mítico” chamado Kafka, sejam as tentativas de chamá-lo de um psicanalista, um jurista, um profeta ou um oráculo – em suma, pouco ganhamos ao restringi-lo a símbolos que tentem garantir uma unidade essencial entre sua obra e seu caráter.
Vale frisar que “o artista não é, de modo algum, sua criatura, mas sim sua configuração” 6, quer dizer, trata-se da configuração do material que Kafka possuía e podia modelar – de maneira explícita ou implícita do que podemos analisar a partir de suas biografias e diários. Esses são os motivos que reconhecemos enquanto “kafkianos” (ou “efeito Kafka”, “kafkianismo” ou “coisa kafkiana”, como sugere Félix Guattari), isto é, damos esse nome a eventos que nos acontecem e nos remetem tal como fora exposto ou apresentado pelo autor em sua similaridade. Aquilo que talvez não conseguíssemos dar nome até então – como um acontecimento que aparenta ser um raio em céu azul e que mal temos vocabulário para representá-lo – passa a ser coberto por aquilo que nem a filosofia, a sociologia, a teologia ou a recente psicanálise da época poderiam dar conta, mas que hoje também são seu material.
Kafka não inventou, para dar dois exemplos clássicos, o fenômeno da burocratização, com seus labirintos de áreas autônomas do mundo do capitalismo industrial-financeiro nem a crise da autoridade paterna, visível também em figuras de liderança, que reverbera em uma violência mítica, mas deu-lhes uma forma de exposição capaz de comunicar a atualização desses temas para o século XX (e que ainda reverbera, nos alcançando no século XXI). Com ressalvas, Guattari 7 entendia que o “caráter essencialmente quebrado e fragmentário do discurso kafkiano” expressava “as potencialidades inconscientes de toda uma época” 8. Parece que haveria, na maneira como ele organizava a dinâmica entre forma e conteúdo, uma experiência alternativa às comuns e tradicionais da época para tentar dar algum sentido à falta de sentido do mundo no entreguerras.
No momento em que a Europa encontrava-se diante de seu próprio abismo devido as consequências de seus sonhos e sonos da razão e desejos iluministas, chegava-se a tal ponto de contradição que o choque da guerra de trincheiras abala de vez as certezas que mal se sustentavam até então. O mundo aparentemente harmônico que se figurava agora encontra-se em ruínas após esse desastre, e parece não haver meios de resgatar algo diante dos estilhaços que vemos.
Kafka assemelha-se a duas figuras benjaminianas: o colecionador e o narrador. Do primeiro, entendemos que trata-se daqueles que, como trapeiros, coletam dos escombros aqueles objetos que foram relegados ao esquecimento. Seu papel é o de resgatar do esquecimento aquilo que é do passado, mas que insiste em não passar. Diante do mundo em confusão, o colecionador luta contra a dispersão e busca reorganizá-lo, como um Hamlet que vista ajustar os eixos fora de ordem de seu mundo.
A partir dessa tentativa de organização macrocósmica pelo microcosmo dos objetos largados pela tradição, o colecionador pode se tornar um narrador, uma figura de transmissão de sabedoria (um conselho atrelado à matéria vivida), isto é, uma figura que comunica experiências, seja daqueles que viajam ou daqueles que sedimentam histórias ouvidas e tentam extrair delas seu sentido mais prático (no caso de Kafka, que imaginou viagens para “Amerika” ou para “A muralha da China”), como os contos maravilhosos que ouvíamos na infância. A experiência [Erfahrung], diferentemente da vivência [Erlebnis], exige sempre a troca e reconhecimento em relação ao outro e, por isso, para Benjamin, em seu ensaio a respeito dos 10 anos da morte do artista, Kafka seria aquele que “escreveu contos [de fadas] para os espíritos dialéticos quando se propôs a narrar sagas” 9 e em uma carta ao seu colega Gerschom Scholem, Benjamin 10 diz que “o genial propriamente dito em Kafka foi ter experimentado algo inteiramente novo: ele renunciou à verdade para se agarrar à transmissibilidade”.
Parece-nos que não basta que hoje consigamos reconhecer que as experiências sob o modo de produção capitalista sejam semelhantes; é preciso saber traduzi-las em seu significado de sabedoria. E acreditamos que Kafka, com seus contos e fábulas, enigmáticos não pela incompreensão, mas pela necessidade de repetição na elaboração de sua interpretação, nos remete a essa figura do contador de histórias que não esclarece o que quer dizer em sua imediatez, mas imprime sua fala em nós, exigindo nossa participação ativa na compreensão de seu sentido. Para um bom narrador, há sempre certo interesse prático pela vida, uma certa noção de utilidade, que poderia aparecer como uma moral, uma recomendação prática, um provérbio ou regra de vida, mas “em cada um desses casos, o contador é um homem que sabe dar conselhos aos seus ouvintes. […] Conselho é menos a resposta a uma pergunta do que uma sugestão de continuação para uma história” .11
Em contraposição a essa sabedoria, teríamos a veiculação da informação que recebemos, por exemplo, pela internet, que passa por nós como uma nuvem, que se mostra relevante apenas enquanto existe em sua imediatez para nós. Diferentemente, a narração em Kafka é daquelas que continuamos correntemente a nos questionarmos “mas o que ele quis dizer?”. Mais do que uma proposição demarcada, temos uma sugestão aberta que nos provoca o contato com outros e o esforço de construção conjunta de uma significação para o que nos é proposto.
Dizemos isso não na intenção de marcar Kafka como um artista vago, mas como um artista sugestivo que, em seu caráter fragmentário, mais propõe problemas do que soluções e resoluções para as nossas grandes questões. Reconhecer a atualidade de Kafka após 100 anos de sua morte é reconhecer não a literalidade de seu texto ou ceder à mitificação sua vida, mas sim que há algo em sua obra que resiste, apesar de tudo, em nos interpelar de frente e provoca-nos suspeitas e desconfianças diante do que vivemos.
Ao contrário do que costuma-se reconhecer como certa “premonição” em Kafka a respeito dos desastres do nazifascismo que ascendia em sua época, preferimos enxergar uma atitude crítica diante da realidade que se mostra necessária ainda hoje, como um “aviso de incêndio” ou um “alarme”. Para provocar sugestões de aproximações entre o Agora e o Outrora, nos parece que Kafka desperta nossa consciência para ouvir os temores que já não são inaudíveis pelo seu enigma ou pela incapacidade de expressá-los em uma gramática, mas alerta-nos para as catástrofes de níveis tão inconmensuráveis que vociferam em nossos ouvidos há tanto tempo que parecemos esquecer, como dessensibilizados, de como é o silêncio da tranquilidade. Sem nos alongarmos em tentativas de garantir explicações e desdobramentos, encerramos com um aforismo do autor – de caráter crítico e enigmático na mesma medida, cabendo aos leitores sugerirem interpretações –, diz Kafka 12 que “ter fé no progresso não significa acreditar que algum progresso já aconteceu. Isto não seria fé”; se hoje ainda temos alguma esperança em superarmos as catástrofes climáticas 13 que arrastam, junto com as casas, também as memórias do mundo antes da exploração capitalista sobre o ser humano e a própria natureza, certamente precisamos levar em conta expressões de percepções singulares como as que encontramos em Kafka. Ele ainda nos alcança com o seu apelo de não naturalizar o que agora pode parecer muito comum e corriqueiro, pois nos direciona para um espírito crítico diante de eventos como esses, que não deixam de ser uma força estranha os quais devemos seguir na contracorrente.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. “As afinidades eletivas de Goethe” IN: Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. Tradução de Mônica Krausz Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo; supervisão e notas de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2018.
_________________. Carta a Gerschom Scholem. 12.6.1938, Paris (sobre F. Kafka). Tradução do alemão e notas de Modesto Carone. IN: Novos estudos CEBRAP (São Paulo) n.35, Março 1993, pp.100-106.
_________________. “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte” IN: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. – 7. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994.
_________________. Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filgo e José Carlos Martins Barbosa; revisão técnica de Márcio Seligmman-Silva. 6ª Ed. revista – São Paulo: Brasiliense, 2012.
_________________. “Max Brod, Franz Kafka” IN: Walter Benjamin Literatura. Organização, prefácio e tradução de Maria Aparecida Barbosa. Florianópolis, SC: Cultura e Barbárie, 2023.
_____________. “O contador de histórias” IN: A arte de contar histórias. Patrícia Lavelle (organização e posfácio); Georg Otte, Marcelo Backers, Patrícia Lavelle (tradução). 1ª ed. – São Paulo: Hedra, 2018.
GUATTARI, Félix. Máquina Kafka. Traduzido por Peter Pál Pelbart. – São Paulo: n-1 edições, 2022.
KAFKA, Franz. Aforismos de Zürau. Traduzido por Tomaz Amorim Izabel. – Bragança Paulista – SP: Editora Urutu, 2017.
- BENJAMIN, 2012, p.56, grifo nosso. ↩︎
- BENJAMIN, 2018, p.12. ↩︎
- “Le siècle de Kafka” – título da exposição de 1984 no Centro Cultural Georges-Pompidou. ↩︎
- BENJAMIN, 2018, p.57. ↩︎
- BENJAMIN, 2023, p.205. ↩︎
- BENJAMIN, 2018, p.62. ↩︎
- 2022, p.32. ↩︎
- ibidem, p.33. ↩︎
- BENJAMIN, 1994, p.143. ↩︎
- 1993, p.105. ↩︎
- BENJAMIN, 2018, p.25. ↩︎
- 2017, p.111. ↩︎
- Em tempo, o que ocorreu e ainda ocorre no Rio Grande do Sul não é inédito ou exclusivo, e não será a última das vítimas, que se tornarão frequentes. ↩︎
Leonardo Silvério
Tradutor, artista, ensaísta e mestrando em Filosofia na USP na área de Estética e Filosofia da Arte. Mais um zero à esquerda.