A notícia divulgada pelo jornal britânico The Guardian, sobre a “descoberta” de que a Geração Z, principalmente homens jovens, está cheia de conservadores (01 de fev. de 2024), como se fosse alguma surpresa, levanta um ponto interessante sobre a interpelação da ideologia na modulação da subjetividade contemporânea1. Antes de adentrar ao conteúdo mais conceitual e filosófico, só falta descobrirem também que a maioria dos próprios “progressistas” da geração Z são também completamente direitistas (às vezes até mesmo reacionários) em método, tática e na sua “teoria do conhecimento”. Isso vale, claro, tanto para mulheres quanto para homens, só que em ênfases distintas.

Deste modo, quem diria que cair no engodo da “guerra cultural” mesmo que do lado do time “progressista” perpetrada dentro dessa sociabilidade digital vampiresca iria dar nessa fissura eurocentrada das dinâmicas entre Internet e expressão ideológica? Recentemente, tivemos a discussão sobre a “injustiça” da Margot Robbie não ter sido indicada ao Oscar por “Barbie”, mas o Ryan Gosling ter sido indicado por ter feito o personagem Ken. Um filme “feminista”, ou seja, progressista. De fato, levantou redes sociais no Brasil e na gringa. Existe maior personagem identitário masculino no mundo dos memes do que o Ryan Gosling com jargões de “literally me” e “I drive”? Do outro lado, existe maior ressignificação sobre ser mulher e a captura de pauta do que o filme da Barbie estrelado pela Margot na produção do cinema do último ano? Não deve ser coincidência o filme ter esse tema e colocar o Ryan Gosling como personagem de Ken. Corporações e demais indústrias ressignificam todas essas pautas políticas possíveis e, por consequência, o que temos é a compra pela via de mão única que só favorece justamente a grandes big techs, pois são elas quem “pautam” a opinião pública.

Entre as consequências disso está também a “divisão de gênero”, que já não é novidade e inédito no capitalismo. Por isso, diria que o apego à identidade de “macho”, que é reafirmada pela indústria cultural, que cria bonequinhos para os jovens meninos se inspirarem em filmes, memes de rede social, condizentes com nova consciência das pessoas, disputada por meme warfare (tática de guerra cultural por memes) emerge nos seus produtos humanos uma forma de “espelhamento” social. Só que do outro lado também não há lucidez: o “progressismo” dentro do capitalismo é um oxímoro. O “outro lado” retoma a necessidade de submissão às subjetivações no mesmo jogo e, então, reafirma este resgate de identidade numa luta simbólica (Barbie, voltando ao exemplo), cada vez mais abstrata; e esse não é o problema em si, pois faz parte da humanização de certos grupos como “reconhecimentos”. Muitos fazem com boa intenção, porém aí está o problema, segundo acredito, na perspectiva final, isto é, não romper com essas ilusões do mundo moderno. O que sobra, enfim, são as classificações de grupos, sejam quais forem (que vão das excentricidades patéticas de radfem até os redpill), e dos outros, com categorias tipicamente capitalistas. Portanto, a “emancipação” é a própria desilusão; o horizonte é cada vez menos horizonte, e se torna um estorvo que ninguém quer carregar.

Aliás, neste ponto, Pierre Bourdieu, no ensaio “Não existe opinião pública”, assinalou corretamente que “não existe opinião pública, mas opinião publicada”. Em outros termos, no século XXI, a modulação da subjetividade nos colocou numa rota de colisão com a própria barbárie do capitalismo: parece que não existem mais as mesmas possibilidades de antes para se estabelecer vínculos capazes de qualquer coesão e mudança real. Agora a “disputa” está circunscrita em não-espaços virtuais geridos por empresas num mundo de velocidade da informação que deixa qualquer um atordoado e dessensibilizado, além de mais “estranhado” de si, do outro e dos vínculos sociais mais basilares2.

Com a digitalização da vida e o empobrecimento da experiência do viver, a inversão do sujeito-objeto na modernidade engendrou novos padrões, aglutinando outros ainda mais perigosos:  a dinâmica das redes sociais, que já são a tônica de nosso tempo, “cria” um paralelo sem precedentes com o que o expansionismo cristão fez séculos atrás. Em coisas como essas dos memes, da publicização de “momentos” e o enfraquecimento da identidade (ou seja, a desidentificação como ontologia do real), embarcando em “guerra dos sexos”, “Ocidente x Oriente”, etc. são próprio deste sintoma. Neste caso, nem precisa queimar muitos neurônios para levar a sério especificamente essas trends de “pov: homens x mulheres”, já que estão mais para a exposição da vida privada porque existem – ainda – pessoas de carne.

Creio que isso tem a ver, de modo direto, com um tipo de crise muito particular, mais do que uma crise política do capitalismo (em sentido abstrato), mas um tipo de crise na modernidade, que cada vez mais se desprende da própria base “concreta”. Como ponto de chegada joga todo mundo junto flutuando nas “nuvens”, e tentando se agarrarem a alguma identidade que promova sentido e estabilidade na vida, pois nada mais é estável e certo. Não se trata de uma nostalgia do passado, mas de entender a particularidade corrosiva do fenômeno no presente. Adorno e Horkheimer, quando falaram do cinema e do rádio, como elementos da “indústria cultural”, observaram uma tendência maior: “O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade da técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma”.

Na verdade, a todo momento temos alguma mudança que vem como um furacão varrendo tudo, no plano da ideologia, e digamos que é essa modernização forçada pelo lucro que condiciona a base da existência de todos no mundo hoje. Mas um deslocamento de sentido do que algo real e com substância movida pelos interesses da humanidade joga agora na virtualização culturalista do mundo da vida o correspondente à virtualização econômica do capital. Como exemplo de exercício mental, vejamos a Uber, que é estrangeira: ela opera em uma centena de países ao redor do planeta, só pela marca e plataforma deles, além de sugarem dinheiro de todos os cantos da Terra em cada trabalhador e usuário do serviço, eles dispõem, além dos dados pessoais de todos os envolvidos, também dos dados de tráfego de todas as cidades do país com estatísticas e dados que sabem as tendências e funcionamento de cada dia da semana, horário, mês, e da rotina de vida de cada um que utiliza. Na verdade, é ainda muito pior do que isso.  Estende-se isso para a Google, sendo a empresa que, por padrão, domina o “GPS” de todos os smartphones Android do planeta.

Num cenário de controle absurdo jamais visto, além de tudo que existe de propaganda e marketing, qual a chance de uma revolução mundial? Qual a chance de haver “resistência” à destituição de uma subjetividade que não seja automatizada? Provavelmente, o futuro é cyberpunk fundido com Mad Max. Um Blade Runner3. Em síntese, a cultura e a sociedade intercambiam parâmetros para que o cérebro interprete e responda ao ambiente, e vice-versa. Aí reside a ideia de uma “guerra cultural” pareça “reparação histórica”. Mudanças tecnológicas desencadeiam mudanças culturais adaptativas com certas regularidades e tendências epocais. Entretanto, em períodos em que as mudanças tecnológicas são agora muito rápidas, há um enorme descompasso entre os parâmetros (subjetivos) ditados pela cultura e as necessidades geradas pelo modelo tecnológico.

Assim, não surpreende que o aspecto mais popular e atraente da “revolução digital” seja a mídia social. Mas, as mídias são entes privados que operam livremente pelo “público”. Somos o produto delas, ou seja, antes de nos relacionar enquanto pessoas, relacionamos enquanto mercadorias e somos mercantilizados na mesma intensidade, pois somos “partes dela”. Por essa razão, as mídias sociais digitais invadem como cavalos de Tróia e remodelam nossa maneira de vivenciar o mundo, já que elas têm como corolário as agudizações das forças produtivas. E aqui volto ao ponto no qual comecei o texto. As novas gerações crescem imersas às conectividades virtuais, e delas são forjadas as identidades, aptidões, desejos e sentimentos. Desta maneira, o “progressismo” embarca na guerra cultural de forma acrítica – como princípio de queda do Paraíso –, porque principalmente é resultado de um modelo intransponível de reabsorção de sentidos (e a sua dissolução)4

Assim, a nova cultura não representa uma evolução nos parâmetros do passado, embora necessariamente precisa-se passar por transformações de base. Ocorre um movimento de adaptação a uma nova situação tecnológica elevada por “programar” a sociedade com apêndice do modelo produtivo de si. Robert Kurz, no ensaio “A indústria cultural no século XXI”, resume a ideia: “O que se apresentava como subversão cultural e contracultura constituía, na verdade, tal como a antiga alta cultura burguesa de certa maneira ainda externa, uma espécie de reserva natural para o capital da indústria cultural, reserva que era periodicamente ceifada ou trinchada”. E, até o momento, a quem interessa esta nova modulação de subjetividade?

Wesley Sousa

Graduado em Filosofia pela UFSJ. Mestrando em Filosofia pela UFSC na área de Ontologia, com ênfase em Filosofia da Arte e Estética. Desenvolve pesquisa a partir de György Lukács. Outras áreas de interesse: História da Filosofia, Teoria/crítica literária e Estética.

Autor
  1. Há um debate em torno da ideia de “modulação”, de matriz deleuziana. Em um artigo sobre o conceito em Deleuze, se lê:  a racionalidade “neoliberal se revoluciona e se adapta para, em manipulando os sujeitos em sujeitados, busca escamotear a vida no modelo da liberdade neoliberal, a saber, no uso do poder para manter as modulações, visando que a vida seja a expressão do consumir por consumir, do produzir por produzir, do viver para o produzir e o consumir num ciclo sem fim” (Leitão, Soares, 2020, p. 160). No entanto, aqui não segue no mesmo léxico. Na minha interpretação, por outro lado, tem mais a ver com a ideia lukacsiana de “reificação”, ainda que em termos mais epistemológicos do que propriamente está em “História e Consciência de classe” nas formulações do filósofo húngaro com base no “Capital I” de Marx. Ver: < https://doity.com.br/media/doity/submissoes/artigo-1757ba89ef9ae2100f9ce256f76d22864b566b04-arquivo.pdf >. ↩︎
  2. Agradeço à Victoria Hautz por chamar a atenção de que no caso de pensar a subjetividade em um outro nível de abstração, seria preciso entrar em um terreno que forneça ferramentas para isso. Assim, pensar na subjetividade da psicanálise, que fundamenta o sujeito a partir das noções de inconsciente e desejo. Ou, também estruturalmente, na qual é a estrutura quem determina a subjetividade e não a ideia de singularidade; pensar junto com o estruturalismo. Este são ótimos insights que ela mencionou. ↩︎
  3. Meu colega Silvério chama a atenção do problema “propositivo” que, hoje, está nas mãos da direita. O horizonte de transformação e a melancolia da esquerda, por isso, tornou-a submissa e passiva diante da ofensiva imperialista, na qual joga cada vez mais também a juventude em laços desatados em nebulosas formas subjetividades inseridas neste contexto. No caso, cada vez mais é perceptível que, quem seja de esquerda, atua como sujeito epistemologicamente de direita. ↩︎
  4. Jorge Domiciano comenta é interessante indicar uma tensão entre tendências culturais e tecnológicas. Pois daí parece uma questão relevante nos estudos da cultura contemporânea precisar melhor as distinções e aproximações entre o que é do âmbito da cultura e o que é do âmbito da tecnologia, uma vez que cada vez mais se imbricam de modo confuso. Agradeço pela observação. ↩︎

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