Imagem: Um único neurônio e seus dentritos.
Este ensaio se debruça sobre a atual desproporção de forças entre a reprodução do capital e o sujeito revolucionário. Há uma nítida insuficiência na esquerda para transformar os possíveis. A atomização do trabalho, a sofisticação da indústria cultural e o avanço das tecnologias de repressão, em suma, apontam para as explicações objetivas dessa situação. No entanto, o que mais nos interessa aqui é a condição subjetiva: quais modelos de sujeito utilizamos para traçar os problemas da dimensão das condutas? E como esse sujeito pode ser afetado e afetar por meio da crítica? Enfim, se a ética foi a tentativa de objetivar o mundo da “liberdade”, é porque se assentou o modelo moderno de sujeito, dotado de uma consciência transcendental indivisível. Uma ética de esquerda, que se pretende revolucionária, deverá revisar esse modelo individual para aumentar suas chances de transformar condutas, escapando da simples “elevação de consciência”.
Nada de novo sob o Sol. Impávidos, novos prédios se erguem, cada vez mais longe do chão, este para o qual retornam os barracos que, frágeis como um corpo desnutrido, desabam sob as chuvas sazonais. A sociedade do progresso linear parece recair num tempo cíclico, cósmico, aparentemente imutável. Poucos se espantam. A esquerda, sabendo que não há nada de cósmico nessa repetição, faz o que lhe cabe: desnaturaliza, aponta a construção, o social criador, a estrutura de classes, sua luta. Mas, no dia seguinte, os prédios e os barracos continuam sendo compostos dos mesmos materiais. Nada mudou? Sabe-se, repetidamente se reitera, que à esquerda falta ação. Pois ser de esquerda não é apenas possuir e difundir a consciência da injustiça, como também exercer uma certa conduta. Parece então, diante dessa ineficiência, que essa conduta não tem refletido a consciência que nela habita. Claro, há aqui e ali engajamentos intensos, fagulhas de ação, de sacrifício. Mas, no grosso da situação, parece mesmo que a esquerda hoje, compreendida no seu conjunto, não possui força suficiente para alterar radicalmente as conjunturas nas quais se encontra. Como é possível essa impotência se, ao que nos parece, a consciência da injustiça capitalística está massivamente difundida, talvez como nunca antes na História? Abundância da crítica e escassez de força. Uma coexistência aberrante que parece não formar uma contradição efetiva.
A abundância de consciência, seja proveniente do acúmulo teórico da tradição marxista e anticapitalista, seja proveniente da experiência mundana, não tem se traduzido em uma força política capaz de ameaçar a estrutura. Em suma, a crítica não tem afetado os corpos do modo como deveria. Ao que parece, esse problema remete a uma diferença entre a esfera “mental” e a esfera “corporal”, a um não corresponder de ambas. Hipocrisia, cinismo: as ações não correspondem aos discursos. Seria esse um problema de resolução moral? Isto é, de uma mente rebaixada que não consegue se apoderar de um corpo e instrumentalizá-lo em favor da luta? Ou seria da esfera da saúde? O corpo estaria enfraquecido, e por isso não conseguiria realizar o que a mente lhe exorta? Estas abordagens não são descartáveis. Afinal, a estratégia marxista para transformar a conduta das massas se apoiou, em grande parte de sua história, nesse dualismo, e em poucas ocasiões tentou superá-lo. No entanto, devemos nos lembrar que desde o século XVI consta na nossa herança intelectual uma abordagem liberta desse dualismo.
Espinosa demonstrou ser possível pensar essas questões sem precisar pacificar uma suposta agonística interior, da mente contra o corpo. São os afetos produtores de transformações que, ao mesmo tempo, são da mente e do corpo, espirituais e materiais. Na imanência, o humano está aberto para/com omundo físico, e não há interior nem exterior que sejam impenetráveis. A depender da sutileza ou da força dos afetos, tudo é permeável. Nessa perspectiva, investigamos nossa conduta sem precisar daquele velho moralismo.
Munidos de um princípio imanente, façamos essas perguntas que, aparentemente singelas, provocam duras reflexões: transformar o discurso em prática depende de uma decisão? Saber mais e saber melhor sobre o que é correto, nos faz agir corretamente? Têm-se tratado essa questão, a da mudança de conduta, como se ela estivesse fora do alcance do conhecimento, confinada ao âmbito “pessoal”, do antigo livre-arbítrio. Mas esse interior indecifrável tem se mostrado infecundo. Se quisermos projetar meios para mobilizar corpos à esquerda, afetá-los, colocá-los em luta na intensidade que o tempo pede, seria fundamental um conhecimento sobre a conduta humana compartilhável e que a arrancasse da interioridade individual.
Tentemos apontar um novo caminho atencional e teórico, que recubra com cuidado a sutil fronteira entre a mente e o corpo. Sabemos que não é assim tão fácil superar o modelo ontológico dual, do sujeito e do objeto, principalmente no que se refere à ética e à moral. Nem na imaginação é fácil conceber outra forma de convocação à luta que não aquela da exortação moral. Pois nos parece natural que uma exposição verídica das injustiças e uma compreensão verdadeira delas induza uma mudança de comportamento. Essa é, afinal, a abordagem mais corrente no marxismo: a crítica que se difunde e eleva a consciência das massas. Mas o que é uma consciência elevada? O que ela faz, na prática? Mesmo que a mudança de comportamento pós-crítica seja certa, é possível que a conduta de uma consciência elevada não seja, de fato, radicalmente diferente. Afinal, esse é o diagnóstico que apresentamos: na esquerda há uma abundância de consciência e uma escassez de força. Algo aqui ressoa com a impressão de que um excesso de informação reduz a precisão do impulso. Há muita hesitação. Ressoa também a impressão de que essa abundância de consciência está atrelada a uma avalanche de estímulos mais ou menos apaziguadores. Há ainda o problema da fragmentação da classe trabalhadora, que é, em certa medida, um problema global, não apenas uma falta de trabalho de base. Enfim, talvez mesmo dentro da abordagem mente/corpo haja muito o que avançar, levando em consideração a atual situação do sujeito. Mas concentremos nossa investigação naquele ponto nevrálgico, no qual repousa a certeza do livre-arbítrio: o ponto em que a mente toca o corpo e o obriga a agir corretamente. Esse ponto existe? Ou estaríamos, na verdade, imersos num grande e imperceptível toque?
Vejamos se as imagens compartilhadas do nosso cotidiano guardam alguma indicação de como resolver essa questão. Nele encontramos inúmeras tentativas de mudança do comportamento do outro e de nós mesmas/os (ou, pelo menos, de difusão de críticas). Desde as mais amigáveis, as chamadas “críticas construtivas”, até as mais virulentas. (Aqui eu não incluo as infrutíferas discussões de seção de comentários, em que tentamos enfrentar opiniões do outro espectro político.) A esquerda digital é, em grande medida, uma esfera de circulação de críticas e autocríticas. As mais comuns são aquelas do âmbito interpessoal, diante das quais o marxismo clássico se decepciona. Afinal, foi num prefácio a’O Capital que Marx quis manter a crítica no âmbito dos objetos sociais, se eximindo de tratar do caráter dos seus adversários, meras “personificações” de categorias econômicas1. Mas talvez estejamos hoje mais conscientes do quanto a conduta de nossos pares reflete estruturas opressivas de raça, gênero, sexualidade e capacidade. Estas não são apenas violências simbólicas, pois, quando se toma a população como um todo, comprovadamente resultam em disparidades; não só econômicas, como de expectativa de vida. Então, estamos certos em difundi-las, do ponto de vista de uma moral de esquerda. Ainda mais se essa crítica interpessoal não se desligar da esfera social e sistêmica. Mas como é possível que essa crítica tão difundida e cotidianamente atualizada encontre morada tão confortável na sociedade que ela mesma denuncia? Pensamos em três respostas possíveis, que abarcam a ineficácia da pura crítica em superar estes problemas: a atomização, o cinismo, e o ascetismo.
ATOMIZAÇÃO E ABSTRAÇÃO
Comecemos pela relação entre a crítica e a atomização da classe trabalhadora. O sentido ancestral de crítica, presente nas raízes gregas krinein e krisis, perambula entre “julgar”, “distinguir” e “separar”. Esse sentido parece encontrar ecos atuais, na medida em que a esquerda engendra até hoje uma história de separações decorrentes de julgamentos. Socialistas se separam dos anarquistas, leninistas se separam dos social-democratas, trotskistas se separam dos apoiadores estado soviético; estes são momentos em que a crítica das estratégias revolucionárias realizou um rompimento de afetos que antes mantinham unidades. Nesses exemplos o cenário é do debate entre os militantes organizados, e não do conflito interno generalizado da classe trabalhadora. Hoje essa tendência à separação se prolifera em escalas cada vez menores, na medida em que as organizações também se tornam mais particulares e mais numerosas. Assim, a crítica a organizações cada vez menores acaba se parecendo muito com a crítica a grupos e, finalmente, a indivíduos. Se antes os rompimentos tendiam a fortalecer as organizações, que passariam a abrigar uma maior coesão interna, hoje eles só criam mais e mais organizações, de modo que a coesão interna delas pouco importa: há um semnúmero delas disputando os mesmos corpos, o que inviabiliza seu crescimento. Mas essa tendência à fragmentação decorre não só de fatores culturais. O individualismo hoje é menos uma ideologia do que uma dinâmica social imposta.
A classe trabalhadora, ou melhor, a parte da população que depende da venda da força de trabalho para viver, está fragmentada pela própria diferença de renda. Uns ganham menos que um salário-mínimo. Outros recebem oito, dez, quinze. Esses montantes, em comparação com os ganhos da burguesia, são irrisórios, de modo que estas variações não constituem de fato posições essencialmente diferentes na estrutura de classes. Por outro lado, do ponto de vista do trabalhador, essas variações são colossais, imensas. A qualidade da vida de um catador é incomensurável com a de um designer; a de um entregador não se compara à de um advogado, e assim vai. Mas não é só uma diferença econômica. À estratificação pela renda, se soma a atual “hiper” divisão do trabalho. Ela é tão complexa, com postos tão dinâmicos e líquidos, determinada por um mercado de trabalho tão flexível, que o “mundo do trabalho” hoje não aponta para nada definido. Autônomos, subempregados, terceirizados, trainees, estagiários, informais, formais: a vida que o trabalho promove é hoje múltipla e compartimentada.
Disso decorrem subjetivações igualmente diversas e compartimentadas, que se distanciam justamente na subsistência, que é o traço comum básico para a organização trabalhadora. Claro, a separação é antiga, e aparece desde o início do capitalismo, com a segregação objetiva e subjetiva da classe trabalhadora por meio de tecnologias de racialização, sexualidade e gênero. A teoria interseccional demonstra que a relação entre a criação do exército de reserva e a colonização é um elemento constituinte do modo de produção capitalista. No entanto, desde o advento do período chamado por David Harvey de regime de acumulação flexível2, marcado principalmente pela queda do fordismokeynesianismo no final dos anos 60, essa estratificação do trabalho se complexificou num grau até então impensado. De algum modo, parece que o capitalismo pôde realizar uma atomização do trabalhador, uma concretização do individualismo, sendo hoje possível construir uma vida trabalhando sem qualquer tipo de percepção direta da dimensão social dessa própria vida. De um “proletariado”, voltamos a ser “proletários”.
Porque isso é um problema para a organização? Sabemos que participamos todes de uma mesma classe, temos essa consciência. Mas, fenomenologicamente falando, nós não percebemos essa comunidade, não sentimos essa pertença, não experienciamos os mesmos espaços e tempos. Enfim, não trabalhamos juntos. Vivemos como moléculas aceleradas, incapazes de constituir uma substância rígida. A compartimentação do trabalho induziu a uma atomização do eu-produtivo, que não consegue mais se sentir um nósprodutivo, dependendo sempre da abstração para lembrá-lo disso. Existe aí uma separação forçada entre o sabido e o sentido que a esquerda, por vezes, esquece de tratar. Precisamos de práticas de aproximação, de constituição de alianças, visando a partilha de histórias, narrativas, experiências. Ou até mesmo de objetos, espaços e tempos, na medida do possível. Pois não se pode confiar apenas na consciência de nossa comunidade enquanto classe produtiva, é preciso efetivá-la com atos de partilha. A crítica, sozinha, não aproxima; ela pode sim tornar as relações mais honestas e consolidá-las. Mas, antes, é preciso que essas relações sejam perceptíveis.
A CRÍTICA INDUSTRIAL
O segundo âmbito em que notamos essa abundância inerte de crítica é o da cultura. Nós consumimos cotidianamente crítica social. O antirracismo e o feminismo encontraram moradia na indústria cultural. As críticas que expõem e denunciam a concreta violência da objetificação do humano, da sua desumanização e exploração, estão presentes nas maiores produções culturais de nossa época. Desde os filmes blockbusters aos seriados do streaming, sempre há alguma sinalização de virtude, pelas quais os grandes realizadores exprimem sua consciência. Isso vale até para as denúncias mais tradicionais da esquerda: a exposição da luta de classes. A onda de filmes “eat the rich” que surgiram e fizeram sucesso nos últimos anos, principalmente após o fenômeno de “Parasita” (2019, Bong Joon-ho) mostra que a indústria cultural admite até mesmo exposições agudas da injustiça sistêmica. E pode lucrar com elas. Essa “crítica industrial” nos apazigua e nos enerva, ao mesmo tempo. Ao nos apaziguar, faz com que nos sintamos conscientes mesmo em nosso consumo trivial. Ao nos enervar, provoca em nós ainda mais críticas, geralmente a respeito de como essas produções não tratam o problema com profundidade e radicalidade suficientes… o que não deixa de abastecer as produções futuras, que iremos certamente consumir. Como há de se perceber, essa reprodução da crítica em escala massiva não potencializa a esquerda. Apenas infla sua consciência.
A indústria cultural só se sofisticou desde aquele ensaio de Adorno e Horkheimer3. Nós literalmente consumimos crítica todo dia, e a fazemos circular enquanto mercadoria. São comuns as conversas que chegam a uma verdade sobre o sistema e que, por força do espanto e da desilusão, terminam em um torpor contemplativo. Diante da verdade sistêmica alçamos voo, nossa consciência se eleva, constatamos que arbitrariedades das mais odiosas são responsáveis diretos pela nossa angústia, opressão… e nos aterramos novamente. Hoje a verdade é um capitalismo global integrado e maciço, sem interstícios aparentes. O objeto que se revela pela verdade é tão imenso, tão insondável, tão além do que nossas forças podem impactar, e é tão premente a instabilidade que sentimos quanto a nossas próprias vidas, que parece razoável simplesmente deixar passar o sentimento. Não passamos da crítica à prática. Nos tornaram cínicos. Cada nova comprovação da injustiça sistêmica (provas incluídas no que se consome todo dia), funciona como um desencorajamento à ruptura comportamental. Nos parece que a crítica pela crítica apenas produz afetos que nos descolam da escala global das transformações: nos sentimos impotentes.
A CRÍTICA MATERIAL
Então consideremos aquela minoria que passa da crítica à prática. Há de fato um grande número de organizações de esquerda. Desde as mais performáticas, passando pelas centradas na micropolítica, e chegando nas mais tradicionais, ligadas ao marxismo e suas ramificações. Essas organizações, em sua atuação, nos lembram que a convocação à mudança de comportamento não passa unicamente pela elevação de consciência. Não podemos apenas nos referir à crítica como algo discursivo e intelectual. Como se sabe, os afetos não partem unicamente da linguagem; o materialismo tem uma boa razão ética ao nos lembrar que são as condições materiais as principais determinantes do comportamento humano. Assim, não basta que a crítica se limite a conscientizar, se não há um trabalho militante corpóreo a combater as opressões e a transformar o mundo real. A crítica também envolve um organismo, um corpo múltiplo, que se põe em cena historicamente e altera, mesmo que em progressos miúdos, a situação palpável da classe trabalhadora. Isso se dá nas pautas e lutas reivindicatórias, aquelas que visam a elevação da qualidade de vida dos despossuídos. Aumento salarial, distribuição de cestas básicas, redes de cuidado, inauguração de creches, transformações na lei, ocupações, a lista é aberta. Mas não se trata de pura caridade: há um interesse político (e ético). Mostrar a força material desse organismo político – o partido ou o movimento social – tornar sensível seu poder, é uma das principais geradoras de respeito, confiança, admiração, enfim, de uma pluralidade de afetos, sem os quais não se aglutinam novos corpos à organização. A luta material é crítica porque também atua no campo afetivo, transformando comportamentos de militantes e de testemunhas.
Contudo, há de se perguntar porque essas organizações encontram sempre um limite de crescimento e radicalidade. O principal fator é a óbvia sofisticação das tecnologias repressivas e um Estado assustadoramente armado. Para ter força física capaz de enfrentá-lo, uma manifestação hoje precisa ultrapassar a casa dos milhões; precisa de um treinamento tático refinado; precisa, enfim, de uma inteligência organizacional equipada com tecnologias de ponta. Conquistar cada uma dessas coisas demanda um esforço devocional de cada pessoa organizada. Seja para mobilizar uma massa de anestesiados digitais, seja para treinar e testar ações diretas, seja para acumular os recursos necessários para comprar tecnologia (de comunicação independente, por exemplo). Em suma, para possuir uma força equiparável ao Estado hoje e produzir transformações materiais definitivas, são necessários militantes que se dedicam não apenas em tempo integral, mas na integralidade de suas energias. É preciso, enfim, de uma disciplinarização dos corpos próxima do ascetismo. Então, falemos um pouco mais do ascetismo de esquerda.
PARA ALÉM DO ASCETISMO
A obra de Che Guevara, embora diversa em temas, é firmemente calcada no que se poderia chamar de uma moral revolucionária4. O princípio é simples: tornar-se uma pessoa absolutamente coletiva, entregar seu corpo à revolução. Simples, mas, sem dúvida, difícil. A finalidade desta “moral” seria transformar ideologicamente toda uma geração de cubanos, expurgar em escala nacional o individualismo. Doando-se ao trabalho, e principalmente ao trabalho voluntário, almeja-se uma abnegação revolucionária, que faz da transformação pessoal um meio para a transformação coletiva. A pessoa, mostrando a possibilidade de desprender-se de todo interesse pessoal, se torna um exemplo a ser emulado, gerando uma reação em cadeia. Ora, o que é isso se não uma forma secular de ascetismo, análoga à cristã? Mas a prescrição moral também se mostra ética quando pensada do ponto de vista de uma estratégia revolucionária, inserida num conjunto de táticas que tem como fim a transformação social subjetiva (e objetiva). Aqui não se trata de uma incumbência religiosa. Ainda que, para as massas, essa premissa ascética seja sentida como algo que transcende os interesses políticos – e nesse aspecto possa ser aceita ou rejeitada – na verdade, trata-se de uma estratégia que pretendia reorganizar os afetos de um povo, canalizando seus corpos para um objetivo político claro. Afinal, a moral do Che não queria apenas expurgar o individualismo, mas também, claro, aumentar a produtividade. Não nos esqueçamos que o estímulo espiritual ao trabalho era o elemento-chave. Queria-se consolidar e unificar uma força de trabalho que atendesse às exigências produtivas de uma Cuba pós-revolucionária, pressionada a se industrializar e se armar para a guerra anti-imperialista.
Ora, como poderíamos, na era do sofrimento psíquico, exigir de um povo que trabalhe mais? Não existe um bom motivo, hoje, para aumentar a produtividade! E como poderíamos apostar nossas fichas no ascetismo, na abnegação? Quais são as condições atuais para que surjam mais figuras como Marighella, que abrem mão de toda segurança em prol de uma causa que é mais uma promessa do que uma certeza? Estas são todas questões relevantes. Respondê-las, contudo, coloca-nos em uma encruzilhada. De um lado, não há complexidade nelas: tudo depende da força de vontade que, escutando apenas a lei moral, deve ser capaz de ignorar todo e qualquer desejo. Enfim, depende de um bom, um santo caráter. Surgirá então um paradoxo: se é preciso transformar a conduta das pessoas, mas essa transformação depende do caráter, como poderíamos interferir nesse processo? A chave da mudança estaria guardada na interioridade, na alma individual.
O outro caminho seria duvidar do fundamento: porque pressupomos que a mudança de conduta, nesses casos, se dá na forma de um decréscimo de prazer em prol de um racional aumento da dor? Não teriam os revolucionários históricos vislumbrado a vida num tal ângulo e numa tal intensidade, que se tornaram capazes de encontrar uma alegria e um prazer no perigo?
Não é possível nos certificarmos sobre isso. Mas é difícil ignorar o sorriso de Che, tão presente nas fotografias desse que uma vez nos disse para nunca perder a ternura. Será que, em vez de um sacrifício, não foi um afeto alegre, correspondido por um desejo de criação de uma nova vida, que fortaleceu esses corpos revolucionários? Enquanto melhorar o nosso caráter for a única solução, e uma solução pela via do sacrifício, não há nada que possamos fazer, além do que já fazemos: criticar, apontar os erros, esperar que melhorem. Afinal, não existe ainda intervenção médica no caráter. Mas podemos expor a sutil dualidade dessa lógica: há uma alma, indivisível e imutável, no plano celeste dos juízos, que deve organizar um corpo, múltiplo e corrompível, imunizando-o quanto ao plano terreno dos afetos. Na imanência, contudo, só existe um plano: o da vida. Se nele há afetos – e sim, isso é um problema – é inútil reuni-los todos sob o signo da corrupção. O prazer não é sempre sinal de burrice.
O SUJEITO MODERNO-LIBERAL E SUA ALMA
Tornemos claro o pensamento que aqui cultivamos. Predomina, por força de tradição, de cultura, ou de algum fator muitíssimo abrangente, um antiquado modelo da subjetividade e, por conseguinte, da tomada de decisão. Pressupõese uma mente soberana, que identifica vontade e ação, sobre um corpo ora mecânico (quando nos obedece), ora animal (quando nos desobedece e persegue seus “instintos”). Contra esse preconceito, há uma evidência pululante mas ignorada: a consciência não é soberana, pelo fato óbvio de que saber e fazer não são o mesmo. Logo, há uma distância entre a ideia de bem e a boa ação. Distância que é muitas vezes insignificante, mas que pode se alargar (nós experienciamos a hesitação) e até se tornar imensa (nos sentimos hipócritas). Essa distância crucial permanece inexplorada, obstruída pela noção de caráter incluída no preconceito que a própria esquerda cultiva. Esta, em seu trabalho consciente cotidiano, produz, reproduz e prolifera o conhecimento sobre a injustiça que é colocado em circulação na forma de crítica. A crítica atinge todos os cantos do globo: pronto, não há como negar, a ideia de bem é acessível a todos. As consciências vão se elevar, o que “só pode” resultar em mais ações de luta. Trabalho pretensamente feito, a esquerda aguarda o resultado da sua mensagem, e vai dormir. Manhã, novo dia: nada de novo sob o Sol. Só há mais fatos nefastos sobre o mundo a serem compartilhados, sem haver brotado nenhuma força política capaz de, pelo menos, incomodar o status quo. Esse ciclo e esse fracasso, por sua vez, não é ignorado, sendo também conhecido e compartilhado. É apenas mais um fato em circulação: a impotência sistêmica da esquerda.
METAMODELIZAÇÃO E O MODELO POLÍTICO DO SUJEITO
Esse campo de forças se reflete em todas as escalas, inclusive na extensão de um corpo. A perspectiva que pode nos lançar para fora da ontologia modernaliberal é aquela que não iguala o corpo ao indivíduo. Somos, antes da coerção legal que nos individualiza, “um corpo social de muitas almas”, como disse Nietzsche5. Formulação essa que enseja um modelo político da pessoa, do sujeito, e mesmo do organismo em seu sentido ampliado, coletivo. Se nos pensarmos como dividuais6, tornam-se imprecisas formulações fundadas no caráter, como: “tal pessoa é má, tal outra é mesquinha, eu sou hipócrita, nós somos fracos”, etc. A que parte percebida desse outro estamos nos referindo? Outro, sim, até no caso do “eu”: como dividuais, somos morada de actantes, o que coloca a alteridade como inseparável da presença. A política retorna ao seio do cotidiano.
Esse banho em uma nova perspectiva pode libertar problemáticas novas e acrescentar soluções para as velhas, embora por si só não resolva nada. Obviamente, os problemas da esquerda não estão, em seu todo, ao seu alcance. Há fatos globais, isto é, organizações de forças tão solidamente constituídas e em uma escala tão imensa, que fica difícil percebê-las ou nos referirmos a elas de um modo que não seja aterrador. O caso do torpor contemplativo, no qual nos vemos compartilhando abstrações cada vez mais globais e mais distantes do campo fenomênico, é apenas o reflexo da tentativa justa de tentar acompanhar o movimento real do capital e da sua sociedade. Diante dessas verdades, é raro não sermos atravessados por afetos de indignação, desilusão, desespero e angústia. Até porque a compreensão do capitalismo parece não vir mais acompanhada da certeza de sua autodestruição, como talvez já tenha. Como constituir uma força capaz de transfigurar essa organização planetária? Como sentir que a criação de uma outra vida é uma potência nossa? Como fazer novamente um afeto alegre atravessar a palavra revolução? São questões de escala global, carregando afetos cuja força apenas uma organização global será capaz de encaminhar.
Contudo, existem transformações que estão ao nosso alcance, e que, para nós, passam pela metamodelização do sujeito, partindo de uma ético-política imanente. O modelo político do sujeito amplia nossas possibilidades de descrição e compreensão dos fenômenos ligados à conduta e à tomada de decisão. Na verdade, ela inclui o próprio modelo antigo, que agora se torna apenas uma configuração entre outras, com suas vantagens e desvantagens. Estamos acostumados a uma ético-política da consciência autoritária, que utiliza a força dos afetos de culpa e cria a disciplina. Esse é o correlato do modelo alma-corpo que criticávamos: há um centro deliberador (a consciência, a alma) que obriga, pela astúcia e pelo terror, a “base” (o corpo, os desejos) a obedecer, forçando uma estrutura única, dual e vertical, sobre uma população múltipla de forças. O ascetismo seria o estágio mais consolidado dessa configuração que muitas vezes foi necessária na história da esquerda. Não sejamos ingênuos: essa configuração, nos moldes da velha “elevação de consciência”, muitas vezes funciona e, talvez, continue funcionando. Mas, pensando em uma homologação dessa estrutura para uma organização de esquerda, devemos nos perguntar: qual sua potência? Qual sua saúde?
Hoje, na pós-modernidade, a ético-política da autoridade da consciência vem sendo desafiada pelo que chamaríamos de espontaneísmo na esquerda. A consciência deliberadora se desintegra, se esparrama, e o “eu” se entrega totalmente para alteridade, sem propor estruturas, sem ensaiar hierarquias, excluindo todos os programas. Seu afeto principal é a esperança, visto que ela aposta na bondade espontânea do desconhecido. É uma ético-política, a nosso ver, por demais arriscada, visto que pode ser facilmente capturada pelos ágeis fluxos do capital. Sem levantar bandeiras e demarcar territórios, esse sujeito se entrega a qualquer afeto, ficando indefeso em relação ao mundo dos estímulos e do consumo.
Assim, emprestando qualidades destas últimas, podemos esboçar uma éticopolítica que unisse a luta e a alegria. Luta, para marcar uma diferença, uma recusa ao império do consumo como único prazer, e para constituir um corpo forte, capaz de transfigurar as situações nas quais se encontra. Alegria, para reconhecer a alteridade que nos constitui – que, afinal, produz a energia que nos faz viver – e para organizar um corpo sadio, capaz de regenerar-se de modo criativo, a depender da situação.
Esta é, evidentemente, uma proposta formal e ensaística, fraqueza que não conseguiremos reverter aqui. Porém, em suma, o que queremos enfatizar é a oportunidade para pensar antes dos modelos de sujeito, desnaturalizando aquele que combina dualismo e individualismo. Não faltam vozes, experiências e testemunhos para nos auxiliar nesse sentido. Já mencionamos aqui a ética imanente de Espinosa, o corpo social de Nietzsche, o dividual de Marriott, exemplos que se somam a outros, até os experienciáveis. Nosso interesse é convidar ao desenvolvimento de uma ética de esquerda, no sentido de um conhecimento compartilhável sobre a conduta, para além do indivíduo e com recursos além da crítica. Lênin nos ensinou sobre o tripé fundamental do marxismo – materialismo, economia política e socialismo7. Talvez devêssemos acrescentar assim o quarto “pé” nessa arquitetura de pensamento revolucionário: uma ética, que nos capacitasse a dizer não somente o “que fazer”, mas o como desejar fazê-lo.
- MARX, K. “O Capital – Volume I”. 2ª ed., São Paulo: Boitempo, 2017, p. 80. ↩︎
- HARVEY, D. “A condição pós moderna”. 17ª ed., São Paulo: Edições Loyola, 2008. ↩︎
- ADORNO, T. HORKHEIMER, M. “Dialética do esclarecimento”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1985. ↩︎
- SADER, E. (org.) “Che Guevara – Política”. 2ª ed., São Paulo: Expressão Popular, 2011 ↩︎
- Cf. o aforismo 19 de “Além de Bem e Mal” (NIETZSCHE, F. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005, p. 22). ↩︎
- MARIOTT, M. apud BIRD-DAVID, M. “Animismo revisitado: pessoa, meio ambiente e epistemologia relacional” Debates Do NER, 1(35), p. 93–171. https://doi.org/10.22456/1982-8136.95698 ↩︎
- LÊNIN, V. I. “Obras Escolhidas em Seis Tomos”, Edições Avante!, 1977 ↩︎
Nico Namo Spitale
Músico, escritor, graduando em filosofia pela UNIRIO. Nasceu em São Paulo e mora há quatro anos no Rio de Janeiro. Blog de escritos: osoldesilicio.blogspot.com