Pobres diretores de arte, estilistas e diretores de palco. Tanto trabalho, refinamento, estratégia e dinheiro envolvidos no planejamento da semiótica da cerimônia de posse de Joe Biden. O tom exato de roxo royal em Kamala Harris (que se dane a Vogue e sua capa problemática!). A seleção de uma (nem tão) pequena marca nova-iorquina para vestir Jill Biden em azul oceano (apoiando pequenos negócios na pandemia!). O peso diáfano do broche de pombo de ouro de Lady Gaga (estilo “Jogos Vorazes”!).

E, mesmo assim, foi tudo em vão. Porque, num oceano de máscaras impecavelmente combinadas, as velhas luvas surradas de Bernie Sanders ofuscaram todo o resto, tornando-se instantaneamente a mensagem visual mais discutida, adorada e perturbadora da histórica ocasião. Que conclusões podemos tirar disso? Por que tantos milhões se conectaram à língua que as luvas estavam falando, seja ela qual for? Foi um delírio de pandemia – nós todos projetando nosso isolamento social na pessoa mais isolada da multidão? Teria sido racismo e sexismo, os Parças do Bernie novamente falhando em compreender as mensagens subversivas expressas nas escolhas de moda de mulheres que estavam quebrando telhados de vidro? Ou teria sido, como na mensagem que recebi de uma amiga enquanto escrevia estas palavras, “o desejo secreto do mundo de que Bernie fosse o nosso Presidente”?

O público, incluindo o senador Bernie Sanders, escuta, durante a 59ª Cerimônia de Posse Presidencial no Capitólio dos EUA em Washington, 20 de Janeiro de 2021.

Qual o significado de toda essa ‘luvologia’?

Como tantas outras coisas relacionadas a essa nova administração, ainda é muito cedo para dizer. Aqui estão cinco possibilidades.

As luvas como “julgamento reservado”

Grande parte do foco da mídia esteve nas luvas em si mesmas: o antiestilo luva de esqui nórdico dos anos 70. Sua aparência artesanal, num mundo onde predomina a fabricação em massa. O quão casual elas são, e o fato de que Bernie claramente não dedicou uma única célula de seu cérebro à questão de usá-las, nada além de “Está frio. Estas luvas esquentam”.

Igualmente importante, porém, é a postura do enluvado: o desleixo, os braços cruzados, a distância física da multidão. O efeito não é o de alguém que foi deixado de lado numa festa, mas sim, sejamos honestos, de alguém que não tem nenhum interesse em participar dela.

Em um evento que era, acima de tudo, uma exibição de unidade interpartidária, as luvas de Bernie representavam aqueles que nunca foram incluídos nesse consenso manufaturado pela elite.

Não era um boicote à ocasião em si; ninguém mais do que Bernie queria o Trump fora. Mas expressava o inequívoco julgamento reservado com relação ao que estava por vir. Aqueles braços cruzados eram as luvas dizendo: “Vamos ver o que vocês realmente fazem e aí nós vamos poder falar em unidade.”

As luvas como advertência

Mas era mais do que isso. Se você olhar de perto, havia também uma advertência de lã. O mundo enlouqueceu com a postura taciturna de Bernie na cerimônia de posse porque ele estava mantendo viva a esperança de que ainda exista uma oposição moral à concentração de poder e dinheiro nos Estados Unidos – em um tempo em precisamos disso mais do que nunca.

Naquele momento, os braços cruzados de Bernie e sua indumentária dissonante pareciam estar dizendo: “Não nos contrariem”. Se, depois de toda a comoção ufanista, a administração Biden-Harris não entregar a ação transformadora para uma nação e um planeta em agonia, haverá consequências. E, diferentemente do que ocorreu na era Obama, essas consequências não tardarão anos – porque o espírito revolucionário já está do lado de dentro, e está usando luvas.

As luvas como a consciência dos liberais

As luvas de Bernie não foram uma obsessão apenas para a base do senador, aqueles de nós que tanto esperavam ver aquele pedaço de lã áspera colocado sobre a bíblia, nessa semana. Elas também tiveram um sucesso surpreendente entre os liberais – muitos dos mesmos liberais que passaram as primárias publicamente fazendo piadas sobre a perspectiva de Sanders Presidente (tão escandalosos, tão pontiagudos, tão raivosos). E eis que agora os vemos espalhando memes de luva e compartilhando histórias incríveis sobre como as luvas foram feitas pelas mãos de uma professora (engenhosa!) ou aquela vez em que Bernie emprestou-as a uma trabalhadora da saúde que estava com frio (um conto “de esquentar as mãos!”)

E o que há de novo nisso? Por que Bernie, o socialista perigoso, subitamente passou a ser o vovô amável de todo mundo? Por um lado, é bem simples: mesmo ocupando uma cadeira no Comitê Orçamentário do Senado, Sanders é uma ameaça muito menor para eles do que era como um candidato à presidência cuja campanha prometia redistribuição de riqueza e retirada do fator lucro da saúde pública. Em outras palavras, para a elite do Partido Democrático, é fácil amar Bernie quando ele está redistribuindo luvas feitas à mão – desde que ele as mantenha longe dos bilhões dos doadores do partido.

De certa forma, é até útil tolerar uma parte um tanto desalinhada do partido, precisamente porque a liderança está tão desconectada da base trabalhadora. Naquele contexto, abraçar Bernie publicamente nessa data tardia tem um papel similar às várias performances pseudopopulistas da época das primárias, como comer frituras que você detesta, ostensivamente, ou vestir-se como gente comum. 

O que nos leva a um outro significado das luvas, que tem a ver com isso:

As luvas como “passaporte para as ruas”

Na mídia liberal, a semana da posse marcou uma volta vertiginosa à era Obama no sentido da cobertura da primeira família como se todos fossem celebridades classe-Davos[1]O termo Classe de Davos faz referência ao grupo dirigente do Fórum Econômico Mundial, que encarna a concentração do poder político e da governança nas mãos de uma elite., da elite mundial. Será que a nova bike de exercícios Peloton de Joe Biden representa um risco para a segurança? Quem vestiu Jill Biden? Vocês viram o blusão feminista da irmã da Kamala? Essa vertente de cobertura midiática do tipo “políticos-como-estilo-de-vida” permaneceu bastante adormecida durante a era Trump. Claro, a Casa Branca estava cheia de pessoas esbeltas e ricas usando e consumindo coisas caras e desejadas. Mas eles eram protofascistas e vigaristas descarados, então demorar-se muito nas capas de Melania e nas joias de Ivanka pegava mal.

Tudo isso acabou agora. Mesmo assim, as preocupações persistentes com Relações Públicas continuam. Afinal de contas, estamos em uma pandemia mundial e a fome está aumentando – mesmo que os muito ricos tenham aumentado drasticamente sua fortuna durante esse período de morte em massa. Aí entram as luvas. Está claro que algumas pessoas no alto escalão do Partido Democrata entendem que, se quiserem aninhar-se em um retorno glamuroso ao “normal” neoliberal, há necessidade de alguns sinais de conexão com a realidade. O fato de que Bernie estava lá, em seu casacão despojado, com suas luvas e sua máscara descartável, rapidamente foi adotado como um desses acenos.

Mas não se engane. Há um outro significado para as luvas, ainda mais poderoso.

As luvas como expressão de um movimento

Existem as luvas enquanto luvas. Mas também existem as luvas enquanto meme, um profundo adensamento do simbolismo das luvas que pareceu ocorrer em segundos após a sua chegada na cena. Antes que Lady Gaga cantasse o Hino Nacional e que Biden dissesse “unidade” nove vezes e “unindo” mais três, as luvas de Bernie já estavam voando pela internet. Em algumas horas, Bernie já tinha sido colado sobre milhares de imagens icônicas, introduzido em filmes, e era uma tendência generalizada.

É crucial que se entenda que isso não tem nada a ver com algo que Bernie tenha feito – além de ser Bernie, do único jeito que ele sabe. Como tantas coisas na sua campanha histórica nas primárias de 2020, o poder simbólico das luvas era obra do “nós” em “Eu, não. Nós.”, um movimento de movimentos descentralizado, que representa milhares de organizações de base e dezenas de milhares de eleitores, e que defende políticas apoiadas pela maioria dos eleitores dos Democratas – segundo muitas pesquisas – mas que ainda são rejeitadas pela elite do partido. Seguro Médico para Todos, um Green New Deal, o cancelamento dos débitos para estudantes, colégios gratuitos, taxação das fortunas e mais.

No grande dia de Biden, o movimento que representa essas políticas e esses valores ganhou um significado global, a partir de um velho par de luvas. E o fez porque podia. Uma pequena exibição  amigável com uma conotação nem tão amigável assim. Ainda estamos aqui, era a mensagem. Ignore-nos, e, da próxima vez, não ficaremos sentados assim tão quietos como estivemos agora.

Naomi Klein


Naomi Klein é uma jornalista e escritora, além de ocupar a cátedra de Estudos feministas, culturais e midiáticos na Rutgers University. Entre seus livros, incluem-se “On Fire: The Burning Case for a New Deal”, “The Battle for Paradise,” “No Is Not Enough,” “This Changes Everything,” “The Shock Doctrine,” e “No Logo.”

Tradução: Nicolau Namo Spitale
Revisão: Maria Betânia F. Champagne

Original: https://theintercept.com/2021/01/21/inauguration-bernie-sanders-mittens/

References
1 O termo Classe de Davos faz referência ao grupo dirigente do Fórum Econômico Mundial, que encarna a concentração do poder político e da governança nas mãos de uma elite.

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