A jornalista Naomi Klein, autora de livros como Sem logo e A doutrina do choque, analisa nesta entrevista com a Vice as especulações em torno da pandemia, o papel dos Estados Unidos e como sair da emergência diária para pensar mais próximo da vida: “O que um momento de crise como este revela é a inter-relação entre nós. Ao invés de monopolizar e pensar em como poder cuidar de você mesmo e da tua família, você pode fazer uma mudança e pensar em como compartilhar com teus vizinhos e ajudar às pessoas que são mais vulneráveis”.
VICE: Comecemos com o básico. O que á o capitalismo do desastre? Qual é sua relação com a “doutrina do choque”?
A forma em que defino o “capitalismo do desastre” é muito simples: descreve a forma em que as indústrias privadas surgem para beneficiar-se diretamente das crises em grande escala. A especulação dos desastres e da guerra não é um conceito novo, mas realmente se aprofundou sob a administração Bush depois do 11 de setembro, quando o governo declarou esse tipo de crise de seguridade interminável, e simultaneamente privatizou-a e externalizou-a – isso incluiu o estado de seguridade nacional e privatizado, assim como a invasão e ocupação [privatizada] do Iraque e do Afeganistão.
A “doutrina do choque” é a estratégia política de utilizar as crises em grande escala para impulsionar políticas que sistematicamente aprofundam a desigualdade, enriquecem as elites e debilitam a todos os demais. Em momentos de crise, as pessoas tendem a centrar-se nas emergências diárias de sobreviver a essa crise, seja qual seja, e tendem a confiar demais nos que estão no poder. Tiramos um pouco os olhos da bola nos momentos de crise.
VICE: De onde vem essa estratégia política? Como rastreia sua história na política americana?
A estratégia da doutrina do choque foi uma resposta ao programa do New Deal[1] por parte de Milton Friedman. Este economista neoliberal pensava que tudo havia dado errado nos Estados Unidos sob o New Deal: como resposta à Grande Depressão e ao Dust Bowl[2], um governo muito mais ativo surgiu no país, que fez de sua missão resolver diretamente a crise econômica da época criando emprego no governo e oferecendo ajuda direta.
Se você é um economista linha-dura de livre mercado, entende que quando os mercados falham isso leva a uma mudança progressiva muito mais orgânica que o tipo de políticas desreguladoras que favorecem às grandes corporações. Assim que a doutrina do choque foi desenvolvida como uma forma de prevenir que as crises abram caminho a momentos orgânicos nos quais as políticas progressistas emergem. As elites políticas e econômicas entendem que os momentos de crise são sua oportunidade para impulsionar sua lista de desejos de políticas impopulares que polarizam ainda mais a riqueza neste país e em todo o mundo.
VICE: Neste momento temos múltiplas crises em curso: uma pandemia, a falta de infraestrutura para gerenciá-la e o colapso do mercado de valores. Você pode esboçar como se encaixa cada um de estes componentes no esquema que você desenha em A doutrina do choque?
O choque é realmente o próprio vírus. E foi gerenciado de uma maneira que maximiza a confusão e minimiza a proteção. Não creio que isso seja uma conspiração, é somente a forma com a qual o governo dos EUA e Trump têm gerenciado – completamente mal – essa crise. Trump até agora não tratou isso como uma crise de saúde pública, mas como uma crise de percepção, e um problema potencial para sua reeleição.
É o pior dos casos, especialmente combinado com o fato de que os EUA não têm um programa nacional de saúde e suas proteções para os trabalhadores são péssimas. Essa combinação de forças provocou um choque máximo. Isso vai ser explorado para resgatar as indústrias que estão no coração das crises mais extremas que enfrentamos, como a crise climática: a indústria das companhias aéreas, a indústria do petróleo e gás, a indústria dos cruzeiros marítimos – elas querem sustentar isso tudo.
VICE: Como vimos isso antes?
Em A doutrina do choque eu falo de como aconteceu isso depois do furacão Katrina. Think tanks[3] de Washington como o Heritage Foundation se reuniram e criaram uma lista de soluções “pró livre mercado” para o Katrina. Podemos estar certos de que exatamente o mesmo tipo de reuniões ocorrerão agora – de fato, a pessoa que presidiu o grupo do Katrina foi Mike Pence. Em 2008 se viu essa jogada no resgate aos bancos, em que os países lhes deram cheques em branco, que finalmente somaram muitos bilhões de dólares. Mas o custo real disso veio finalmente na forma de programas extensivos de austeridade econômica [mais tarde, cortes em serviços sociais]. Assim que não se trata somente do que está acontecendo agora, mas também de como eles vão pagar por isso no futuro quando o boleto dessa história toda chegar.
VICE: Há algo que as pessoas possam fazer para mitigar o dano do capitalismo do desastre que já estamos vendo na resposta ao coronavírus? Estamos em melhor ou pior posição que durante o furacão Katrina ou a última recessão mundial?
Quando somos provados pela crise, ou retrocedemos e nos desmoronamos, ou crescemos e encontramos reservas de forças e compaixão que não sabíamos que éramos capazes de ter. esta será uma dessas provas. A razão pela qual tenho certa esperança de que podemos escolher evoluir é que – diferentemente do que ocorria em 2008 – temos uma alternativa política tão real que propõe um tipo de resposta diferente à crise que chega às causas fundamentais da nossa vulnerabilidade, e um movimento político mais amplo que a apoia[4].
É disso que tem tratado todo o trabalho em torno do Green New Deal[5]: preparar-se para um momento como esse. Não podemos perder a coragem, temos que lutar mais que nunca pela atenção sanitária universal, a atenção infantil universal, pela licença de saúde remunerada, tudo está intimamente relacionado.
VICE: Se nossos governos e a elite mundial vão explorar essa crise para seus próprios fins, o que as pessoas podem fazer para cuidar umas das outras?
“Eu vou me preocupar comigo e com os meus, podemos ter o melhor plano de saúde que existe, e se você não tem um bom plano é culpa sua, não é problema meu”: Isso é o que esse tipo de economia de ganhadores faz com os nossos cérebros. O que um momento de crise como esse revela é nossa inter-relação entre nós. Estamos vendo em tempo real que estamos muito mais interconectados uns com os outros do que o nosso brutal sistema econômico nos faz acreditar.
Poderíamos pensar que estaremos seguros se temos uma boa atenção médica, mas se a pessoa que faz nossa comida, ou entrega nossa comida, ou embala nossas caixas não tem atenção médica e não se pode permitir esse luxo de ser examinada, e muito menos de ficar em casa porque não tem licença de saúde remunerada, então não estaremos seguros. Se não nos cuidamos uns aos outros, nenhum de nós estará seguro. Estamos enredados.
Diferentes formas de organizar a sociedade promovem o reforçam diferentes partes de nós mesmos. Se você está em um sistema em que se sabe que ele não cuida das pessoas e não distribui os recursos de forma equitativa, então a sua face acumuladora será reforçada. Assim, tenha isso em conta e pense em como, ao invés de acumular e pensar nas maneiras de cuidar de você mesmo e da tua família – pense em como você pode fazer uma mudança e pensar em como compartilhar com teus vizinhos e ajudar às pessoas que são mais vulneráveis.
[1] “Think tanks são instituições que se dedicam a produzir e difundir informações sobre temas específicos. Seus objetivos são influenciar ideias na sociedade e decisões na política.” Saiba mais em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/12/01/O-que-s%C3%A3o-think-tanks.-E-como-eles-influenciam-a-pol%C3%ADtica
[2] Naomi Klein apoia Bernie Sanders nas primárias eleitorais americanas.
[3] Plano ambiental apresentado por políticos democratas americanos que busca transformar o país em uma economia de carbono neutro até 2030.
[4] Série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, além de auxiliar os prejudicados pela Grande Depressão. Seu nome foi inspirado em Square Deal, nome dado por Theodore Roosevelt à sua política econômica.
[5] Fenômeno climático de tempestade de areia que ocorreu nos Estados Unidos na década de 1930 e que durou quase dez anos, provocando um desastre econômico e ambiental.
–Entrevista de Naomi Klain a Vice
–Publicado em: 13 de março de 2020
–Tradução: Thomas Speroni