Alyson Escalante, 17 de maio de 2018

Costuma-se pensar que o transfeminismo e o feminismo lésbico são inerentemente opostos um ao outro – mas, se as duas correntes se dispuserem a entrar em diálogo, há importantes lições que uma pode ensinar à outra.

A história segue da seguinte forma: “o feminismo lésbico até então vem perdendo relevância há mais ou menos uma década. Ideias como heterossexualidade compulsória, lesbianismo político, e lesbianismo como uma abordagem revolucionária do feminismo são hoje em dia recebidas com substancial hostilidade. Feministas mais jovens preocupam-se e desconfiam de identidades rigorosamente definidas e preferem noções mais fluidas de queeridade [queerness] no lugar de rótulos mais estáticos como o lesbianismo. A relação do transfeminismo com o feminismo lésbico, claro, foi e ainda é bastante conturbada, e para que o feminismo possa incluir mulheres trans, temos que repudiar as ideias antiquadas do feminismo lésbico”.

Um breve mergulho nas águas turvas da “escrita feminista de textões” revelará que muitas das escritoras mais jovens, que refletem sobre sexualidade e gênero a partir de uma perspectiva feminista, seguem narrativas como a esboçada acima (alguns detalhes mudam, é claro). Pensa-se ser algo claro como a luz do dia que o feminismo lésbico não apenas é algo do passado, destinado a desaparecer algum dia, mas que ele também é necessariamente oposto aos emergentes feminismos trans-inclusivos. Eu não acho, entretanto, que essa é uma avaliação muito justa.

Obviamente, muitas feministas lésbicas pouco fizeram para enfrentar essa narrativa de maneira útil. Feministas trans-antagônicas como Sheila Jeffrey consistentemente enquadram seus argumentos como [se fossem] uma defesa do feminismo lésbico, e muitos dos mais populares discursos anti-trans dentre os espaços feministas são enquadrados como se estivessem defendendo o lesbianismo de alguma “ameaça trans”; tanto ao impedir supostos homens de adentrarem [esses espaços], como também ao evitar que lésbicas butch sejam enganadas e convencidas a tornarem-se homens. Entretanto, nenhuma dessas coisas conseguiu afastar a ideia de que o transfeminismo e o feminismo lésbico podem ser não só reconciliáveis, como também terem lições importantes a ensinar um ao outro e que são relevantes para a atualidade.
Neste artigo, espero poder mostrar que tanto o feminismo lésbico como o transfeminismo põem em primeiro plano insights cruciais sobre as vidas das mulheres, e que que ambos seriam fortalecidos em seus variados projetos para a libertação das mulheres se estiverem dispostos a aprender um com o outro.

Uma breve defesa do feminismo lésbico

Antes de me atentar às maneiras pelas quais os dois feminismos que citei podem aprender um com o outro, quero enfrentar essa impressão de que o feminismo lésbico não é mais relevante à teoria e práxis feminista contemporânea.

Em primeiro lugar: o que é feminismo lésbico? Me refiro, com este termo, a um grupo amplo, e não tão consistente internamente, de teóricas e de teorias interessadas em partirem da perspectiva e experiência do lesbianismo, entendê-lo como uma forma de resistência contra o heteropatriarcado, e entender a heterossexualidade como um pilar da dominação patriarcal. O feminismo lésbico inclui, por exemplo, pensadoras como Monique Wittig, Adrienne Rich e Sara Ahmed. Estas três possuem teorias radicalmente diferentes e variadamente incomparáveis, mas todas se encaixam nos três critérios que elenquei.

Então, por que o feminismo lésbico (ainda) é importante? Em resumo, porque a heterossexualidade ainda é central à dominação patriarcal, e o lesbianismo ainda oferece insights interessantes para resistir a isso.

Em Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica, a feminista lésbica Adrienne Rich sugere que a heterossexualidade compulsória é um “viés” que apaga a existência das lésbicas, ao insistir “que as mulheres seriam dirigidas sexualmente de modo ‘inato’ para os homens.” Adicionalmente, a via da heterossexualidade compulsória sugere que lésbicas na verdade são impulsionadas por um ranço diante dos homens, e portanto permanece no conceito de lésbica a ideia de uma orientação inata por homens. Rich afirma que este viés infiltrou-se até mesmo no pensamento feminista, empurrando a existência lésbica pro banco de reservas, como algo a ser tolerado mas não adotado. Deste modo, Rich insiste que “a teoria feminista não pode mais se dar ao luxo de meramente exclamar uma tolerância do ‘lesbianismo’ como um ‘estilo de vida alternativo’, ou fazer alusões simbólicas a lésbicas. Uma crítica feminista da orientação heterossexual compulsória [imposta às] mulheres já é devida há muito tempo.”

Rich afirma que o patriarcado investe na heterossexualidade compulsória com o fim de garantir que as mulheres sejam subjugadas por meio de relações familiares de provisão de cuidado emocional material apenas aos filhos e maridos. Além de analisar a exploração doméstica, Rich se volta ao trabalho de Catharine MacKinnon com vistas a investigar a função econômica da heterossexualidade compulsória na força de trabalho. Ela explica que:

[MacKinnon] cita um material muito rico que documenta o fato de que as mulheres não são somente segregadas em empregos de serviço malpago (como secretárias, empregadas domésticas, datilógrafas, operadoras de telefone, babás, garçonetes), mas a própria “sexualização das mulheres” faz parte do trabalho. Central e intrínseca às realidades econômicas das vidas das mulheres é a exigência de que elas irão “comercializar atratividade sexual para os homens, que tendem a manter o poder e a posição econômica para garantir suas predileções”.

Por isso, para Rich e MacKinnon, a disparidade econômica enfrentada pelas mulheres sob o capitalismo não resulta simplesmente em diferenças salariais, mas possui o próprio desejo masculino acoplado a si mesma, forçando as mulheres a se venderem para obter acesso a qualquer tipo de emprego.

Esta percepção da relação entre o patriarcado e a opressão econômica das mulheres é central ao feminismo lésbico, e oferece importantes discernimentos hoje em dia. Com as crescentes acusações, contra atores e outros profissionais masculinos, de contínuo assédio sexual daquelas que trabalham para eles e ao redor deles, precisamos de uma teoria que possa explicar como ambientes de trabalho fomentam este tipo de assédio. A formulação de Rich nos permite entender como homens em posição de poder, em especial poder de conceder empregos, impõem a disponibilidade sexual como um pré-requisito para a própria entrada no espaço de trabalho. Por essas razões, a opressão econômica das mulheres no ambiente de trabalho, pautada nas diferenças salariais e na segregação empregatícia, é indissociável da dominação heterossexual.

Sob esta formulação, não se pensa a heterossexualidade como uma orientação sexual individual possuída por alguns indivíduos, mas como um princípio social estruturante e como um destino imposto contra o qual as mulheres não possuem outra escolha a não ser se adequarem. Ao entendermos a heterossexualidade de maneira estrutural, podemos revelar como o desejo masculino, e o pôr-se à venda feminino em relação a esse desejo, não é constitutivo de escolhas e ações individuais, mas de incentivos estruturais e econômicos os quais mantêm a dominação masculina das mulheres. Tais abordagens não-individualizadas e estruturais são cruciais para rebater padrões neoliberais de feminismo de escolha e empoderamento, os quais abandonaram a libertação coletiva das mulheres, pondo em seu lugar o empoderamento pessoal via consumo de produtos e mídia capitalista “feminista”. Estes insights continuam pertinentes.

Monique Wittig utiliza a heterossexualidade para entender a opressão das mulheres, referindo-se à sociedade patriarcal como sociedade heterossexual. Para Wittig, a dominação masculina é mantida por meio de noções de diferença sexual as quais persistem em afirmar que homens e mulheres são inatamente diferentes, numa maneira complementar, e que insiste em dizer que o lugar correto para ambos é estar dentro de uma relação heterossexual um com o outro. Ser uma mulher, para Wittig, é ser um sujeito heterossexual disponível sexualmente e destinado a subordinar-se aos homens.

Por causa disso, Wittig sugere que “lésbicas não são mulheres.” O que ela quer dizer com tamanha afirmação? Em essência, como ser uma mulher significa ser heterossexual, rejeitar a heterossexualidade é falhar em ser uma mulher. Para a autora, esta falha revela as maneiras pelas quais o lesbianismo existe como uma forma de resistência, não apenas à supremacia masculina, mas à ideia de homens e mulheres como gêneros distintos. O lesbianismo se torna uma alternativa de resistência que nos permite avançar em prol da abolição de gênero, ao permitir às mulheres organizarem-se fora do modelo de mulher heterossexual.

A formulação wittigiana é importante por nos dar um arcabouço conceitual para entendermos como a violência heterossexual é perpetrada. Em A Mente Hétero, Wittig atenta-se às maneiras em que a autoridade de especialistas psicanalíticos (e em sua maioria homens) é utilizada para falar em lugar das mulheres e redefinir o que significa a existência lésbica, e para retratá-la como um defeito ou como uma forma de ranço contra homens. Tais especialistas tentam heterossexualizar a resistência feminina por meio de uma “censura” dos relatos das próprias mulheres sobre suas experiências. Este insight ainda é fundamental atualmente, pois ele nos permite entender as formas em que a heterossexualidade é imposta nos dias de hoje. Os grandes meios de comunicação ainda retratam, para garotas do mundo inteiro, a princesa encontrando seu príncipe e vivendo feliz para sempre, e o sucesso feminino ainda é retratado numa perspectiva heterossexual. Espera-se que até mesmo mulheres trabalhadoras entrem em uniões heterossexuais, e Wittig nos permite entender que essas expectativas, esses destinos impostos, são uma parte central da dominação patriarcal.

Quando analisamos algumas das afirmações centrais do feminismo lésbico, torna-se claro que este permanece relevante nos dias atuais, pois a heterossexualidade ainda é um dos pilares da opressão das mulheres. Estas deduções não estão antiquadas; na verdade, elas passaram por uma década de abandono, e tem o potencial de nos oferecer insights importantes e esquecidos para embasar a teoria e práxis feminista atual.

Heterosexualizando mulheres trans

Então, agora que demonstrei as maneiras pelas quais o feminismo lésbico ainda oferece importantes discernimentos ao feminismo atual, quero mostrar que ele não precisa necessariamente ser antagônico ao transfeminismo, e que mulheres trans precisam utilizar as compreensões construídas pelo feminismo lésbico para entenderem suas próprias experiências e resistirem à nossa opressão por parte homens.

Mulheres trans têm uma relação particularmente complicada com a psicologia e a medicina. Desde o próprio começo da teoria trans ocidental contemporânea, o que significa ser trans foi definido por homens psicólogos, cirurgiões, clínicos e sexologistas. Mulheres trans continuamente sofrem censura de suas próprias experiências por meio dos discursos desses homens especialistas, os quais alegam entender a verdade dessas experiências.

Nos Estados Unidos, o dr. Harry Benjamin foi particularmente importante para a medicina trans. Ele não apenas revolucionou as intervenções cirúrgicas para mulheres trans, mas também teorizou o que significava exatamente ser trans. Tal como era popular naquela época, o dr. Benjamin apresentou uma tipologia para categorizar os diferentes tipos de mulheres trans que um médico poderia encontrar.

Tabela 1. Escala de Orientação Sexual (E.O.S.)
Desorientação e Indecisão de Sexo e Papel de Gênero (Homens)
Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3
Perfil

“SENSAÇÃO DE GÊNERO”
Tipo I
TRAVESTI

Pseudo

Masculino
Tipo II
TRAVESTI

Fetichístico

Masculino
Tipo III
TRAVESTI

Verdadeiro

Masculino (mas com menos convicção)
Tipo IV
TRANSSEXUAL

Não-cirúrgico.

Indeciso. Pendendo entre TV e TS.
Tipo V
TRANSSEXUAL VERDADEIRO

Intensidade moderada.

Feminino (“Preso em um corpo masculino”)
Tipo VI
TRANSSEXUAL VERDADEIRO

Alta intensidade.

Feminino. Inversão psicossexual total.
HÁBITOS DE VESTIMENTA E VIDA SOCIAL Vive como homem. Pode sentir prazer ocasional ao “travestir-se”. Não é verdadeiramente TV. Vida masculina normal. Vive como homem. “Traveste-se” periodicamente ou em parte de seu tempo. “Traveste-se” por debaixo de roupas masculinas. “Traveste-se” constantemente ou o tanto quanto for possível. Pode viver e ser aceito como mulher. Pode “travestir-se” por debaixo de roupas masculinas, se não puder de outra forma. Traveste-se” o tanto quanto for possível, com alívio insuficiente de seu desconforto de gênero. Pode viver como homem ou mulher; às vezes alternando. Vive e trabalha como mulher se possível. Alívio insuficiente ao travestir-se. Pode viver e trabalhar como mulher. “Travestir-se” dá alívio insuficiente. O desconforto de gênero é intenso.
ESCOLHA DE OBJETO SEXUAL E VIDA SEXUAL Hétero, bi ou homossexual. “Travestimento” e “mudança de sexo” podem ocorrer em fantasias masturbatórias majoritariamente. Pode gostar apenas de literatura de TV. Hétero, bi ou homossexual. “Travestimento” e “mudança de sexo” podem ocorrer em fantasias masturbatórias majoritariamente. Pode gostar apenas de literatura de TV. Hétero, bi ou homossexual. “Travestimento” e “mudança de sexo” podem ocorrer em fantasias masturbatórias majoritariamente. Pode gostar apenas de literatura de TV. Libido muitas vezes baixa. Assexual ou auto-erotista. Pode ser bissexual. Pode também ser casado e ter filhos. Libido em baixa. Assexual, auto-erotista, ou atividade homossexual passiva. Pode ter sido casado e ter filhos. Deseja intensamente ter relações com homens normais como uma “mulher”, se jovem. Posteriormente, diminuição da libido. Pode ter sido casado e ter filhos, ao usar fantasias durante o coito.
ESCALA DE KINSEY* 0-6 0-2 0-2 1-4 4-6 6
OPERAÇÃO CIRÚRGICA DE CONVERSÃO Não é considerada na realidade. Rejeitada. Na verdade rejeitada, mas a ideia pode ser atraente. Atraente, mas não é requisitada, ou a atração não é admitida. Requisitada. Usualmente indicada. Urgentemente requisitada e usualmente obtida. Indicada.
ADMINISTRAÇÃO DE ESTROGÊNIO Não se interessa. Não indicado. Raramente se interessa. Ocasionalmente útil para reduzir a libido. Atraente como um experimento. Pode ser emocionalmente positivo. Necessária para confortar-se e ter equilíbrio emocional. Necessária como substituta da ou preliminar à cirurgia. Necessária para alívio parcial.
PSICOTERAPIA Não desejada. Desnecessária. Pode ser bem-sucedida (em um ambiente favorável). Se tentada, geralmente não é bem-sucedida em curar. Apenas como orientadora; de outra forma é rejeitada ou mal-sucedida. Rejeitada. Inútil como cura. Orientação psicológica permissiva. Orientação psicológica ou psicoterápica apenas para alívio sintomático.
OBSERVAÇÕES Interesse em “travestir-se” é apenas esporádico. Pode simular dupla personalidade (masculina e feminina) com nomes masculinos e femininos. Pode assumir uma dupla personalidade. Tendência ao transsexualismo. Vida social dependente das circunstâncias. Operação cirúrgica desejada e buscada. Frequentemente obtida. Enoja-se de seus órgãos sexuais masculinos. Perigo de suicídio ou de automutilação, se frustrado por longo período.
*Ver explicação no texto adjunto.

Tipo 0: orientação sexual e identificação normais, heterossexual ou homossexual. A ideia de “travestir-se” ou de “mudar de sexo” é estranha e desagradável. Grande maioria das pessoas.

Tipologia benjaminiana das mulheres trans.

Como você pode ver na tabela acima, Benjamin criou uma escala que se estende de travesti tipo 1 (travestimento fetichístico ocasional) a transsexual verdadeiro tipo 6. Uma breve olhada no quadro anterior revelará algo interessante: para que alguém possa ao menos conseguir se qualificar como um transsexual, antes mesmo de ser um verdadeiro transsexual, essa pessoa precisa atrair-se sexualmente por homens. Permite-se aos transsexuais serem bissexuais nessa tipologia, mas transsexuais verdadeiros precisam ou ser assexuais ou totalmente atraídos por homens. Para o dr. Benjamin, a mulher trans ideal é uma mulher trans inteiramente heterossexual. Uma mulher trans lésbica, em sua teoria, seria apenas uma mera travesti ou fetichista.

Para os pacientes do dr. Benjamin, o lugar em que eles se encaixassem dentro deste esquema poderia ser um fator crucial no acesso à assistência médica trans. Apenas transsexuais verdadeiros são considerados transsexuais cirúrgicos na teoria benjaminiana. Por isso, muitas mulheres trans admitiram terem mentido para conseguir acesso à cirurgia, insistindo que eram exclusivamente hetereossexuais, apesar de, na verdade, serem lésbicas.

Apesar das teorias do dr. Benjamin não serem universalmente aceitas, alguns teóricos mais recentes reformularam-nas. Ray Blanchard e J. Michael Bailey, por exemplo, construíram uma teoria da autoginefilia (amor a si mesmo como mulher) a qual insiste que mulheres verdadeiramente trans são aquelas atraídas por homens, enquanto que as que afirmam serem atraídas por outras mulheres são na verdade fetichistas atraídos sexualmente pela ideia de si mesmos como mulheres. Se nos pautarmos neste arcabouço teórico, ser uma trans lésbica será impossível. Lésbicas trans apenas se dizem atraídas por mulheres, afirma Blanchard, porque elas não compreenderam direito sua própria atração autoerótica em relação a si mesmas.

Segundo ambas teorias, é impossível ser uma mulher trans e uma lésbica. Especialistas homens insistem em afirmar que sabem mais do que as mulheres trans lésbicas, e que na verdade o lesbianismo das mulheres trans de fato orienta-se em torno dos homens, e não verdadeiramente como uma orientação sexual em direção à outras mulheres.

Dada esta situação, parece-me patentemente óbvio que os discernimentos obtidos pelo feminismo lésbico podem ajudar o transfeminismo a explicar a razão desta modalidade de discursos médicos surgir. As teorias de Benjamin, tanto quanto as de Blanchard, são exatamente o tipo de censura criticada por Wittig. Ambas procuram, seja heterossexualizar as mulheres trans ao tornar a ideia de uma lésbica trans impossível (ou dar a essa ideia o custo de equivaler a uma renúncia do acesso à assistência médica), seja fazer o lesbianismo trans ser na verdade algo relacionado aos homens. Portanto, estes fenômenos também são melhor explicados pela teoria da heterossexualidade compulsória de Rich, imposição a qual torna a própria possibilidade de amor sexual mútuo entre mulheres impossível, insistindo que mulheres (incluindo as trans) são inatamente atraídas sexualmente por homens.

Para as muitas mulheres trans que amam outras mulheres, o feminismo lésbico pode explicar a censura e a opressão [por estas sofridas] baseado na experiência particular e única do lesbianismo trans. Para enfrentar a dificultação ou mesmo impedimento de acesso à assistência médica, as mulheres trans precisam incorporar a crítica feminista lésbica.

Militância trans e feminismo lésbico

Okay. Então, mostramos o porquê do feminismo lésbico ainda ser relevante atualmente, e também por que o feminismo lésbico pode informar o transfeminismo. Resta apenas demonstrar que o transfeminismo pode informar o feminismo lésbico. Para tal fim, me atentarei ao excepcional ensaio de Sara Ahmed, Vivendo uma Vida Lésbica.

Nesse texto, Ahmed busca fazer uma análise fenomenológica de como exatamente a vida lésbica é experienciada, e clama por um feminismo lésbico renascido e reorientado. Ahmed clama por um feminismo lésbico militante, e que encare o feminismo seriamente como um meio de mudar o mundo. Para a autora, as próprias experiências das mulheres trans nos permitem entender como seria o aspecto de tal militância.

Ahmed explica que “aquelas que precisam insistir em serem mulheres são mulheres voluntariosamente.”. Mulheres trans são obrigadas a constantemente insistirem que são mulheres, apesar dos ataques constantes advindos de dentro do feminismo, da direita, e de dentro de suas próprias comunidades. As mulheres trans entendem de insistência militante e organização porque ambas essas coisas foram necessárias à sobrevivência delas. Ahmed condena feministas que não se solidarizam com mulheres trans. Ela explica que elas agem como “varas de endireitar” que recentram normas heterossexuais e impedem uma vida lésbica.

Ahmed não apenas acredita que o transfeminismo é capaz de oferecer orientação e perspicácia em relação à militância para o feminismo lésbico, como também que ele deve existir em solidariedade com este último. Ela fala:

Quando eu peço por uma ressurreição da militância da figura do feminismo lésbico, eu estou imaginando este em uma fundamental e necessária aliança com o transfeminismo. Este último também trouxe o feminismo de volta à vida. E eu posso acrescentar aqui que uma postura anti-trans é uma postura anti-feminista; ela é contra o projeto feminista de criar mundos para apoiarem aqueles para quem o fatalismo de gênero (garotos serão garotos, garotas serão garotas) é fatal; uma sentença de morte. Nós temos que ouvir esse fatalismo como punição e instrução: ele é a história da vara com a qual aquelas que têm vontades rebeldes ou que desejam rebeldemente (garotos que não serão garotos, garotas que não serão garotas) são batidas. Nós não seremos abatidas. Nós temos que calar essas vozes anti-trans elevando a nossa própria voz. Nossas vozes precisam se tornar nossos punhos: Ergam-se! Ergam-se!

Já que, como Ahmed afirmou, sentimentos anti-trans são uma forma de endireitamento, de heterossexualização, de rebater a vida lésbica, feministas lésbicas devem ser solidárias à voluntariosa e militante resistência das mulheres trans.

Adicionalmente, eu sugeriria que a capacidade das mulheres trans de utilizarem o feminismo lésbico para explicar a discriminação médica e a censura fortalece o próprio feminismo lésbico e demonstra a utilidade de suas deduções, e expande nosso entendimento de como a heterossexualidade é central à opressão das mulheres, tanto das trans como das cis.

No fim das contas, é perceptível que o feminismo lésbico tem muito a oferecer à luta feminista contemporânea, e que ele não é uma forma antiquada ou inerentemente opressiva de feminismo. Na verdade, o feminismo lésbico é necessário para entender a própria experiência trans, e para enriquecer nosso entendimento de como todas as mulheres são oprimidas. Ele nos permite pensar a resistência contra o patriarcado não simplesmente como empoderamento ou escolha, mas como uma oposição militante e estrutural. Ele nos permite entender como mulheres amando outras mulheres serve como uma forma de resistência, e atesta a possibilidade de um outro mundo. Um mundo sem a dominação masculina.


Autora: Alyson Escalante
Publicado em: 17 de maio de 2018
Original: https://medium.com/@alysonescalante/rethinking-lesbian-feminism-1fa15a680a16
Tradução: Eliel Micmás [Tradutores Proletários]
Revisão: Arthur Bataille [Tradutores Proletários]

Arte de capa: Versão editada da imagem utilizada originalmente pela autora. Edição por Eliel Micmás [Tradutores Proletários]


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