A esquerda atual tem sempre, de antemão, pavor de fazer quaisquer atos radicais — mesmo que esteja no poder, fica temerosa o tempo todo. Mas ela precisa lutar para construir um novo consenso em torno do welfare state social-democrata.
Sucedeu uma série de eventos nos EUA recentemente: a confusão advinda da nomeação de Brett Kavanaugh para a Suprema Corte, pacotes suspeitos enviados para Democratas liberais ilustres, o ataque à sinagoga de Pittsburgh, a crescente acidez da retórica de Trump — da caracterização das mídias públicas principais dos Estados Unidos como inimigas do povo, até os indícios de que se os Republicanos sofrerem uma derrota nas próximas eleições de meio de mandato, ele não dará reconhecimento ao resultado, já que será fruto de fraude.
Já que todos esses fenômenos ocorreram do lado Republicano do espaço político estadunidense, e considerando que a cor do Partido Republicano é vermelha, é possível ver como o velho mote anti-Comunista da Guerra Fria — “Antes morto que vermelho” — ganha um significado inesperado atualmente. Mas deve-se ser mais preciso: o que realmente acontece nesta erupção de vulgaridade em nosso espaço político?
Tal como Yuval Noah Harari observou em seu livro Homo Deus, as pessoas sentem-se ligadas às eleições democráticas apenas quando compartilham um elo forte com a maioria dos outros eleitores. Se a experiência dos outros eleitores é alheia e estranha à minha, e se acredito que eles não entendem meus sentimentos e não se preocupam com meus interesses vitais, então mesmo que eu seja vencido, em votos, por 100 a 1, não terei a menor razão para aceitar este veredito. Eleições democráticas usualmente funcionam apenas em populações que possuem alguma ligação em comum, como crenças religiosas e mitos nacionais. Elas são um método de resolver desavenças entre pessoas que já concordam nos aspectos essenciais. Quando este acordo mais básico falha, o único procedimento em nossas mãos (além de guerra total, claro) são negociações. É por isso que os conflitos do Oriente Médio não podem ser solucionados por eleições, mas apenas pela guerra ou por negociações.
Entretanto, o crescente desacordo quanto ao essencial nos EUA e em outros lugares não diz respeito primariamente à diversidade étnica ou religiosa, ela atravessa o corpo político inteiro: ela confronta duas visões da vida política e social, populista-nacionalista e liberal-democrata. Esta confrontação espelha o conflito de classes, mas deslocadamente: os populistas direitistas apresentam-se como a voz da classe trabalhadora oprimida, enquanto que os liberais de esquerda são a voz das novas elites.
Neste caso não há, no fim das contas, a possibilidade de resolução pela negociação: um lado tem que vencer, ou o campo tem que ser transformado por inteiro.
Uma ruptura está portanto se realizando naquilo que os filósofos chamam de “substância ética” da nossa vida. Aquela está ficando forte demais para nossa democracia normal, e gradualmente se desloca em direção a uma espécie de Guerra Fria civil. A “grandeza” perversa de Trump é que ele, com efeito, age — ele não tem medo de quebrar regras silenciosas (e escritas) para impor suas decisões. Nossa vida pública é regulada por uma densa rede de costumes não-escritos, regras que nos ensinam como praticar aquelas que são explícitas (escritas). Enquanto Trump (até certo ponto) não desvia das regras legais explícitas, ele tende a ignorar os pactos silenciosos e não-escritos que determinam como nós devemos praticá-las. A maneira como ele lidou com Kavanaugh foi apenas o exemplo mais recente.
Apenas de simplesmente culpar Trump, a esquerda deve aprender com ele e fazer o mesmo. Quando a situação demandar, deveremos fazer o impossível e quebrar as regras silenciosas. Infelizmente, a esquerda atual tem sempre, de antemão, pavor de fazer quaisquer atos radicais — mesmo quando está no poder, ela se preocupa o tempo inteiro: “Se fizermos isso, como o mundo reagirá? Será que nosso ato causará pânico?” Lá no fundo, este medo: “Será que nossos inimigos ficarão enfurecidos e reagirão?” Para agir na política, é necessário superar este medo e assumir o risco, dar um passo em direção ao desconhecido.
Políticos como Andrew Cuomo fazem apelos desesperados para um retorno à civilidade, mas isto não é suficiente: não se toma em consideração o fato de que a ascensão do populismo brutal preencheu a lacuna aberta pelo fracasso do consenso liberal.
Então, o que fazer? Devemos citar Samuel Beckett aqui. Em Malone Morre, ele escreveu: “Tudo se divide em si mesmo, suponho.” A divisão básica não é, como Mao Tsé-Tung, aquela em que 1 se divide em 2; é a divisão de algo não-descrito em 1 e seu resto. Até a recente explosão populista, o “um” em que nossas sociedades se dividiram foi o consenso liberal com respeito aos costumes silenciosos estabelecidos de luta democrática partilhados por todos; o “resto” excluído foi os ditos extremistas nos dois lados — esses primeiros foram tolerados, mas impedidos de participar no poder político. Com a ascensão do populismo alt-right, a hegemonia do centro liberal foi minada: uma lógica política diferente (não tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, mas primariamente com relação ao seu estilo) impôs-se como parte do mainstream.
Uma situação como esta não pode durar indefinidamente, pois há uma necessidade de novo consenso — a vida política de nossas sociedades deverá dividir-se em um novo “um”, e este não está determinado de antemão. A situação vem com verdadeiros perigos — quem poderá imaginar as consequências da vitória de Bolsonaro no Brasil não apenas para este mas para todos nós? — mas no lugar de sair do sério e nos resignamos ao pânico, devemos tomar coragem e usar este momento perigoso como uma oportunidade.
Citando Mao uma outra vez: “Há grande caos sob o céu — a situação é excelente.”
O 1, o novo espaço comum, que a esquerda deve oferecer é simplesmente a maior conquista político-econômica da Europa moderna: o welfare state social-democrata. De acordo com Peter Sloterdijk, a nossa realidade é — pelo menos na Europa — “Social-Democracia objetiva”, em oposição à social-democracia “subjetiva”: deve-se distinguir a social-democracia como a panóplia dos partidos políticos e a Social-Democracia como a “fórmula de um sistema” que “descreve com precisão a ‘ordem das coisas’ política-econômica, que é definida pelo Estado moderno — o Estado dos impostos, o Estado-infraestrutura, o Estado do Império da Lei e, não menos importantemente, o Estado social e o Estado-terapia”: “Encontramos em todos os lugares uma Social-Democracia fenomenal e estrutural, uma manifesta e uma latente, uma que aparece como um partido e outra que é mais ou menos irreversivelmente construída nas próprias definições, funções e procedimentos da estatalidade moderna como tal.”
Estaríamos então apenas retornando ao antigo? Não: o paradoxo é que, na nova situação de hoje, insistir no velho welfare-state Social-Democrata é um ato quase revolucionário. As propostas de Sanders e Corbyn são costumeiramente menos radicais que aquelas de uma Social-Democracia moderada de meio século atrás, mas eles são de qualquer forma desacreditados como socialistas radicais.
Apesar da direita populista ser nacionalista, ela é muito melhor que a esquerda em organizar-se como uma rede internacional. Portanto, o novo projeto esquerdista só poderá vir à vida adequando-se ao populismo internacional e organizando-se como um movimento global. O pacto emergente entre Sanders, Corbyn e Varoufakis é um primeiro passo nessa direção. A reação do establishment liberal será violenta. A campanha contra o suposto anti-Semitismo de Corbyn é apenas uma primeira indicação de como o movimento por inteiro será vítima de uma campanha de descrédito. Mas não há outro caminho — riscos terão que ser tomados.
Em suas Notas para Definição de Cultura, o grande conservador T. S. Eliot afirma que há momentos em que a única escolha é aquela entre heresia e descrença, na qual a única maneira de manter viva uma religião é fazer uma cisão sectária e separar-se do seu corpo principal. Isto é o que precisa ser feito atualmente: a única maneira de realmente derrotar Trump e redimir o que vale ser salvo na democracia liberal é fazer uma cisão sectária e separar-se do corpo principal da democracia liberal.
Slavoj Žižek.
Traduzido por Eliel Micmás [CTP].