Entre os anos de 1961 e 1962, a União Nacional dos Estudantes (UNE) criava o Centro Popular de Cultura, expressão dos tempos épicos do movimento estudantil, da crença nas Reformas de Base projetadas pelo governo Goulart, das passeatas, das greves, dos congressos de trabalhadores e de estudantes, do surgimento da nova educação popular. Em 1962, o Manifesto do CPC definia a cultura popular como aquela que não provinha diretamente da espontaneidade do povo, mas nascia da decisão de uma vanguarda de artistas e intelectuais que, recolhendo os materiais populares, ultrapassariam essa cultura alienada, primitiva e tosca, transformando-a numa arte revolucionária, encarregada de “conscientizar” as massas para a revolução social e política.

Feita sobretudo por universitários, essa arte almejava não somente levar os artistas ao povo, mas também identificá-los com o povo para melhor servi-lo. Teatro, cinema, literatura e música foram as atividades privilegiadas pelo CPC da UNE, de onde iriam brotar o Cinema Novo, os shows Opinião, o teatro de rua e a canção de protesto. No entusiasmo de quem acredita estar mudando o mundo, os jovens universitários percorriam o país inteiro e os CPCs da Une-volante proliferaram em toda parte.

Nos anos que se seguiram, após o gole de 31 de março de 1964, muitas críticas foram feitas ao CPC, particularmente ao seu vanguardismo de tintas autoritárias, à sua pretensão de produzir a consciência popular, como se as classes dominadas estivessem desprovidas de pensamento e precisassem recebê-lo de fora. Uma crítica particularmente aguda atingia o núcleo do projeto artístico estudantil: a imagem do povo construída pelo CPC não corresponde à realidade popular, mas à ideia que os universitários possuem do povo, colocando nas peças teatrais, nos filmes, nas letras das músicas e nas poesias estereótipos fixos e imóveis, verdadeiros “tipos sociais” provenientes muito mais de uma certa sociologia e de certas concepções vulgarizadas da revolução sócio-política do que da realidade diferenciada, móvel, imprevisível e perspicaz das classes populares.

A música nascida do CPC foi marcada pelo nacionalismo desenvolvimentista e pelo populismo, vivendo perpassada pelas contradições dessas ideologias, como tão bem aparecem em Influência do Jazz (de Carlos Lyra), tentativa irônica contra a bossa nova, que, refazendo a batida do samba e modificando a harmonia das canções, era considerada “influência perniciosa” a matar a nacionalidade do samba autêntico. Ora, a bossa nova representa um momento de internacionalização da música e de seu surgimento para o mercado de massa, isto é, exprime na arte o desenvolvimentismo da era JK. Para os nacionalistas do CPC, o caráter importado desse “pobre samba meu” deveria ser criticado e afastado, mormente porque, ao contrário do bolero, também em voga, não era uma importação qualquer, mas vinha do centro imperialista inimigo do Brasil, os Estados Unidos. No entanto, uma contradição surgia. Era preciso resgatar o samba e os ritmos nacionais e lhes dar um conteúdo social e político, mas era preciso, ao mesmo tempo, que essa volta à tradição autêntica fosse também um sinal de progresso, de luta contra o subdesenvolvimento. A bossa nova, ainda que importada, significava desenvolvimento, enquanto o velho samba permanecia marca registrada do atraso. A solução foi curiosa: grande sofisticação e refinamento musical (sobretudo na harmonia e na instrumentação) e empenho nos conteúdos sociais (nas letras), referidos à miséria, às dificuldades do subdesenvolvimento, às qualidades heroicas do povo, à força transformadora e ao dia melhor cuja chegada era prometida. Se tivesse havido humor e ironia nesse compromisso entre a sofisticação musical e poética e os conteúdos, talvez a música do CPC tivesse sido o primeiro lampejo do Tropicalismo. Isso, porém, era impossível. O CPC pretendia ser um engajamento político explícito e não implícito, um protesto e uma promessa, pois sua finalidade era “conscientizar” o povo alienado.

Aparece, aqui, o segundo componente dessa música heróica: o populismo. Assim como era preciso conciliar nacionalismo e desenvolvimento, era preciso conciliar arte e povo, enviar mensagens que despertassem a consciência popular para as mudanças históricas que poriam fim ao subdesenvolvimento. Os universitários-artistas possuíam ideias sobre a nação, o povo e o progresso, e com elas construíram a da consciência popular. A contradição anterior é agora refeita noutro nível: o povo do e para o CPC ocupava o lugar estranho de agente revolucionário e de alienação estagnante, oriunda da dominação política, cultural e econômica, não podendo realizar a missão a que estava destinado. Um duplo “povo” é protagonista das músicas, como tão bem aparece na Maria do Maranhão (de Lyra e Nélson Lins e Barros), que em sua miséria andante “não viu a estrela” que outros viram e que deverão mostrar a ela – quem viu, povo-revolução, deve fazer ver a quem não vê, povo-alienação. Os artistas-músicos, videntes clarividentes, deram a si mesmos o lugar do povo-revolução para desfazer o povo-alienação.

Mas o “povo” imaginado pelos artistas músicos-poetas pensava, sentia e agia como a imaginação dos jovens universitários queria que pensasse, sentisse e agisse – o povo do CPC musical (e das demais artes) eram os próprios artistas aspirando pela revolução, tal como desejavam que ela fosse. Talvez por isso, como observam alguns, a revolução imaginada era colocada num futuro indeterminado e realizada mágica e messianicamente, como essas “promessas de luz” de que fala a Marcha da Quarta-Feira de Cinzas (de Lyra e Vinícius), numa caminhada para os “azuis”. Azul que, sabemos, é a cor da bandeira da UNE.

Com todos os equívocos do populismo, porém, os jovens músicos do CPC inauguraram a música de protesto no Brasil, tentaram colocar o popular no centro da criação artística e fizeram surgir como temas da arte o pau-de-arara, o escravo, o operário, o flagelado, os sem-terra, o negro, os oprimidos e condenados da terra. Talvez por não terem percebido que seu público também era estudantil e intelectual que não alcançavam os destinatários populares que tematizavam, não chegavam a vislumbrar um outro lado da criação artística: aquele que possui uma força interna para engendrar seu próprio público, criando-o de si mesmo. Na sinceridade entusiasta de querer “ser povo” e “mais povo do que o povo”, foram atropelados por seu ardente desejo. Mas sua música ficou.

Além das inovações no plano da melodia, da harmonia e da instrumentação, os músicos do CPC exigiam a mais alta qualidade poética nas letras, desejando que a força das palavras vencesse as palavras da força e que a beleza pudesse ser fruída por todos. Modo rico de cantar a miséria, modo mágico de invocar a marcha da história, a música do CPC da UNE foi uma esperança malograda como política, mas um legado definitivo para a MPB. É um marco aquém do qual não é possível regressar e que aqueles que vieram depois puderam ultrapassar e negar, mas jamais ignorar.

Marilena Chauí

Escritora e filósofa.


  1. Trata-se de um texto escrito para o LP História da Música Popular Brasileira – Carlos Lyra, Bôscoli e Menescal. O álbum faz parte de uma série de lançamentos sobre a história da MPB publicados pelo selo Abril Cultural nos anos 80. ↩︎

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