Escrevendo recentemente (aqui mesmo, na Folha)1 sobre a poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho, tentei circunscrever sua originalidade no ponto em que se cruzam as linhas de diferentes oposições: humor e ironia, entendimento e imaginação, racionalismo e romantismo. Mas, também, em que se cruzam, em tensão a tradição europeia (principalmente alemã) e a tradição brasileira da poesia. Por detrás desse escrito, ou nas suas entrelinhas, ecoava uma observação de Paulo Arantes sobre a apresentação que Antonio Candido fez da “Formação da Literatura Brasileira”. A ideia de Antonio Candido sublinhada era a de uma “causalidade interna”, instaurada no século 19 com um “sistema literário” que criou uma espécie de espaço interno capaz de assimilação criadora dos modelos importados da cultura europeia.
Nesse texto, sugeri que a proeza de Rubens, sua assimilação da tradição do romantismo alemão, tinha como pressuposto e condição a assimilação prévia (numa espécie de acumulação da acumulação) da melhor tradição poética local: a expressão mais madura do modernismo brasileiro em seu corte neoclássico final, com Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.
É bem com esse ponto de cruzamento que gostaria de focalizar novamente aqui, comentando agora alguns versos de um poema de João Cabral: “A Palo-Seco” (o “cante a palo seco” é um canto cigano – “flamenco” – não acompanhado pela guitarra”). O elogio da luz solar em sua maior crueza, como condição de verdade e de autarcia, é o ponto central do poema e nos remete desde já a uma “poética do entendimento” (da “Aufklarung”, em alemão, “iluminação”, mas também dissolução das trevas da não-Razão pela luz do entendimento”), em sua oposição à noturnidade da poética romântica, àquela noite na qual, segundo Hegel, “todas as vacas são pardas” (a contrapelo dos “Hinos à Noite” de Novalis, que se abrem com aquele verso extraordinário em que o poeta protesta contra a manhã e o despertar em geral: “Deverá sempre retornar o domínio do terrestre?”).
Essa apologia não poderia deixar de passar pela imagem do Mediterrâneo, onde esplende, a pino, o sol do meio-dia – e que fascinou, desde Goethe, antes e depois do romantismo, os escritores alemães, transformando a Itália numa espécie de “outra pátria” inquietante e inacessível.
Exportação do espaço pátrio que transparece também, mas de maneira feliz agora, no poema de João Cabral, no movimento que faz, por assim dizer, dobrar o mapa-múndi sobre si mesmo, numa inesperada “revolução” geográfica, para fazer superpor e coincidir o sul da Espanha e o nordeste do Brasil, Andaluzia e Pernambuco, Sevilha e Recife. Num lugar como no outro, para usar a linguagem dos pré-socráticos, a verdade que nele há de essencialmente insidioso; o atual e o visível não mais remetem a uma dimensão virtual ou potencial em que se refugiaria o maravilhoso e o espiritual. O imperativo implícito seria: “ Nada dever permanecer escondido; exuguemos nossa linguagem para limpar o mundo; o oculto é o i-mundo”.
“1.2. O “cante a palo seco”/ é o “cante” mais só:/ é cantar num deserto/ devassado de sol;// é o mesmo que cantar/ num deserto sem sombra/ em que a voz só dispõe/ do que ela mesma ponha”. Curiosamente, as estrofes vêm enumeradas mais ou menos como o “Tractatus”, de Wittgenstein, que concordaria que tudo o que pode ser dito pode ser dito “claramente”. A linguagem deve ser tão “seca” quanto o mundo para poder descrevê-lo com verdade, para torna-lo novamente visível, desfazendo as brumas que se interpõem entre os homens e as coisas.
É a paisagem nordestina que aqui recebe uma promoção por assim dizer “metafísica”, tornada paradigma da clareza “meridiana” a que aspira, sem sempre sabê-lo, nosso entendimento – mas uma promoção que parasita gesto semelhante operado pela poesia espanhola (como já bem observou Benedito Nunes, a poesia francesa também impregna a obra de João Cabral; não apenas Valéry, mas também Francis Ponge, em cuja poesia se entrecruzam, de maneira iluminadora, fenomenologia e semântica, multiplicando “lições de coisas”; a poesia como restituição simbólica da verdade material das próprias coisas, ali onde um bom uso da linguagem disciplina o olhar, permitindo-lhe discriminar as articulações naturais da experiência; (lembrar que “Lição de Coisas” é também o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade), pela poesia espanhola, repito, também fascinada pela verticalidade da luz solar. Basta pensar em Antonio Machado e Jorge Guillén; por exemplo, os seguintes versos deste último: “É o arrendondamento/ do esplendor: o meio-dia. / Tudo é cúpula. Repousa, central sem querer, a rosa,/ a um sol no zênite sujeita” (talvez esteja aqui registrada a memória do verso tão bem comentado por Heidegger, de Angelus Silesius: “A rosa é sem porquê”). Ou ainda “Oh, zênite: o uno, o claro, o intacto!”. Nem faltará, no prolongamento desse imaginário metafísico, na poesia de João Cabral, que tanto sofreu de enxaqueca, o elogio da aspirina, esse verdadeiro sol (pense, caro leitor, na forma circular da aspirina, tão semelhante ao Ser de Parmênides, o branco luminoso de sua substância, e seu poder de dissipar a dor de cabeça, como o faz o sol com as neblinas do amanhecer).
Poesia “metafísica”, que, na Espanha, como no Brasil, não ignora a dimensão da simpatia ética e política com as classes populares. Uma poesia “de esquerda”, se é possível dizê-lo (ou, pelo menos, avessa ao “ethos” das classes dominantes), como transparece em “Vida e Morte Severina”, bem como em “La Tierra de Alvargonzáles”, de Antonio Machado: esse “trampolim da tradição e da perenidade camponesa”, no dizer de José Maria Valverde.
No nosso poema a categoria “a palo seco” organiza todas as esferas da experiência e revela a identidade formal entre, por exemplo, os estilos da enxuta literatura do Nordeste e a clara arquitetura cordobenha “4.3. “A palo seco” existem/ situações e objetos:/ Graciliano Ramos, / desenho de arquiteto, // as paredes caiadas,/ a elegância dos pregos, / a cidade de Córdoba, / o arame dos insetos”. Mas a nossa categoria não delimita apenas uma ontologia regional (tipo de situações e objetos), ela esboça um projeto, digamos, de “hispanização” ou de “nordestificação” do mundo. Vocês já imaginaram como seria o mundo se a prosa lúcida de Graciliano Ramos invadisse os jornais, as televisões, os discursos políticos? A poética do sol do meio-dia é também, ou pressupõe, ética e política. Esse canto desarmado, desacompanhado de guitarra, amparado apenas na solidão de uma voz, que se improvisa a cada instante contra o silêncio, corresponde, de algum modo, à ideia de uma pobreza assumida por higiene ou por catarismo, antes de ser aceita como destino inelutável. Assim, depois de enumerar os exemplos do “ser-a-palo-seco”, o poema se encerra: “4.4. Eis uns poucos exemplos/ de ser “a palo seco”,/ dos quais retirar/ higiene ou conselho:// não o de aceitar o seco/ por resignadamente,/ mas de empregar o seco/ porque é mais contundente”.

Bento Prado Junior
Filósofo que ri da filosofia. Notório caminhante da cena filosófica noturna da Maria Antonia. Dizem que era possível saber as horas com exatidão conforme o filósofo flanava pelos bares.
- O texto em questão trata-se de um artigo do autor para Folha de São Paulo, publicado em janeiro de 1999. ↩︎