Um crítico musical norte-americano, conhecido posteriormente como Amiri Baraka, escreveu certa vez sobre John Coltrane: “sua música é uma das razões pelas quais o suicídio parece uma coisa tão enfadonha”. [1] LeRoi Jones. Black Music. Nova York: William Morrow & Company, Inc, 1970, p. 64. Ele resenhava o disco “Live at Birdland”, entre cujas composições está “Alabama”, uma meditação sobre a tragédia em que quatro garotas negras foram assassinadas em um atentado racista a bomba no sul dos Estados Unidos.

Ouvi incontáveis vezes esse disco ao longo dos últimos meses, aprendendo a lidar com a perda do Lucas, assegurando a mim mesmo de que ele estava errado e que em nossa raiva e em nossa tristeza nós, que permanecemos, é que estávamos certos.

Lucas e eu éramos radicalmente diferentes. Ele era negro (se descobriu negro na universidade). Vinha da periferia. Carregava uma dor imensa pelas dificuldades que viveu desde a infância. Hábil escritor, enxergou na filosofia uma chance de desenvolver suas aptidões e de se encaminhar na vida. Eu sou branco. Nasci em casa de médicos. Enxerguei na filosofia uma fuga da vida medíocre e mesquinha em que cresci, aceitando o rebaixamento social que acompanhava essa decisão. Para minha família foi uma espécie de tragédia. Meses antes de prestar o vestibular eu tentei tirar minha própria vida. Apesar das trajetórias sociais inversas, eu e o Lucas tínhamos muito em comum: encarávamos a atividade intelectual como uma oportunidade de viver.

Essa frase de Amiri Baraka, zombando da morte e saudando com entusiasmo a expressão do espírito humano na música de John Coltrane, me faz pensar muito no Lucas. Como uma obsessão terrível, a possibilidade de tirar a própria vida nunca lhe foi estranha. Paradoxalmente, a radicalidade com que encarava a existência fazia-o entusiasmar-se por uma infinidade de coisas. Para aqueles que não tiveram a felicidade que eu tive, de conviver um bocado com ele, preciso testemunhar a alegria com que recebíamos o Lucas em nossa casa para fazer o que ele mais gostava: jantar com os amigos e poder compartilhar, entre um copo de cerveja e outro, as novas leituras que havia feito, as novas séries e filmes que tinha assistido, as novas pessoas que havia conhecido, o novo texto que havia escrito. Não bastava contar. Nós tínhamos que conhecer de fato cada uma dessas coisas: e então ele se punha a ler, ou insistia para assistirmos algo, ou marcava o próximo encontro no Bar do Luizão, na Santa Cecília, para que nos apresentasse aos seus novos ou antigos amigos.

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Feita essa introdução, queria agradecer o convite para participar dessa cerimônia. Trata-se, afinal, da defesa da dissertação de mestrado do Lucas. Na sua ausência, fico feliz de poder defender esse meu querido amigo, a quem aliás acorri para defender algumas outras vezes. Me sinto verdadeiramente honrado de poder expressar toda a admiração que tenho por ele, de falar um pouco sobre as suas angústias e também de disputar o seu legado.

Sem dúvidas, a característica mais marcante do Lucas era a sua ousadia. Dotado de senso de humor ácido e de uma disposição aguerrida para defender suas posições, com uma certa frequência ele se via metido em confrontos virulentos. Sendo ao mesmo tempo uma pessoa profundamente exigente e um camarada comprometido com aqueles a quem considerava parceiros, nunca lhe faltaram amigos com quem pudesse contar nessas horas. Eles eram muitos, uma verdadeira legião, não por acaso esta sala hoje está cheia. Há ainda muitos outros que não compareceram a este evento. Menciono textualmente a Mariana Luppi e Umê Morita, figuras de um círculo de amizades mais amplo, formado por ex-estudantes de filosofia cujo convívio se estabeleceu sobretudo fora das salas de aula e que por isso mesmo perdurou no tempo.

Andávamos muito preocupados com o Lucas, que vinha se queixando recorrentemente do seu sofrimento psíquico nas semanas anteriores à sua despedida. A demanda por apoio era tão intensa, que organizamos um grupo para garantir que haveria sempre alguém em contato com ele, dissuadindo de suas ideações mórbidas e incentivando-o a procurar ajuda especializada. Uma semana antes da notícia que escandalizou a todos nós, fomos em grupo visitá-lo. Pusemo-lo no carro, fomos tomar um farto café da tarde e depois passear por um parque à beira da represa Guarapiranga. Estirados na grama, nosso papo era acompanhado pelo ruído de uma linha de transmissão que cortava o céu. A Mari eternizou esse momento, o último que estivemos ao lado dele, em um poema que gostaria de ler para vocês:

Você nunca vai envelhecer
Seu sorriso tranquilo
Dissolvido na grama
Vai prevalecer
E quando eu arriscar esquecer
Vou lembrar
Das águas tranquilas
Do dia em que a eletricidade zunia
Na periferia
E você sempre estará
Fumando seus fortes cigarros
Tirando sarro
De tudo que merecia
Da política, das pessoas,
Da filosofia.

A Mari, que passou por esse departamento para nunca mais voltar (e fez, como vocês podem perceber, uma excelente escolha pela literatura), jamais faria a concessão de dar um lugar tão destacado à filosofia em sua homenagem poética ao Lucas. Originalmente o verso final era “poesia”, mas me concedo essa liberdade de tirar sarro da filosofia porque é um gesto que o Lucas sem dúvidas permitiria a si próprio e aprovaria, com uma grande gargalhada, que eu fizesse.

Rir da filosofia para o Lucas era algo menos bentopradiano do que situacionista. Tendo entrado alguns anos depois de mim no curso, ele participou do Centro Acadêmico e de grupos de leitura sobre a universidade em uma turma posterior a que eu mesmo compus. Nesses espaços ele passou a conhecer uma extensa bibliografia crítica da universidade. Essa formação paralela à sala de aula impregnou sua personalidade, organizou seu círculo de convívio e sua atitude com relação a esta instituição. Bem ao estilo do próprio Lucas, eu gostaria de também ler para vocês uma montagem de fragmentos do texto que certamente mais o marcou nessas vivências, um libelo situacionista intitulado “Da miséria no meio estudantil”,[2]Internacional Situacionista. Situacionista: teoria e prática da revolução. Tradução de Francis Wuillaume e Leo Vinicius. São Paulo: Conrad, 2002, pp. 27-59. que ele frequentemente mencionava nas nossas conversações.

Pode-se dizer, sem grandes riscos de errar, que o estudante é, depois do policial e do padre, o ser mais universalmente desprezado. É duro olhar de frente a realidade estudantil. Numa “sociedade de abundância”, o status do atual estudante é de extrema pobreza. A miséria do estudante está aquém da miséria da sociedade do espetáculo, da nova miséria do novo proletariado. Mas as razões que fundamentam o nosso desprezo pelo estudante são de outra ordem. Elas não se referem apenas à sua miséria real, mas também à sua complacência com relação a todas as misérias, sua propensão doentia a consumir alienação em sossego, nutrindo a esperança, face à falta de interesse geral, de chamar a atenção para a sua miséria particular.
Continua então a ouvir respeitosamente seus mestres, com a vontade consciente de perder qualquer espírito crítico de modo a melhor comungar da ilusão mística de ter se tornado um “estudante”, alguém que está tratando seriamente de aprender um conhecimento sério, na esperança de que irá realmente receber o conhecimento das “derradeiras verdades”.
Tirando proveito das falhas do controle, que obriga aqui e agora a conservar um pequeno setor puramente intelectual, a “pesquisa”, eles vão tranquilamente elevar a turbulência ao mais alto nível: seu desprezo declarado pelo sistema caminha no mesmo passo que a lucidez que lhes permite justamente serem mais fortes que os serviçais do sistema e, em primeiro lugar, mais fortes intelectualmente.
O estudante é um produto da sociedade moderna, tanto quanto Godard ou a Coca-Cola. Sua extrema alienação só pode ser contestada pela contestação de toda a sociedade.
A revolução, tal qual a vida que ela anuncia, deve ser reinventada. O proletariado, que já era no século XIX o herdeiro da filosofia, tornou-se agora, além disso, o herdeiro da arte moderna e da primeira crítica consciente da vida cotidiana. As revoluções proletárias serão festas ou não serão nada, pois a vida que anunciam será, ela própria, criada sob o signo da festa.

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Passo agora a comentar brevemente a dissertação de Lucas sobre Benjamin, que é o pretexto para estarmos hoje reunidos.

Ainda nos anos 1920, Benjamin se colocou como um dos mais refinados leitores da literatura alemã, ao escrever seu ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe. Debruçou-se sobre o barroco, o romantismo, o romance, a poesia e o teatro de vanguarda, foi o primeiro tradutor de Proust em língua alemã. Articulou alegoricamente a crítica literária, o marxismo e a teologia em uma visão histórica única, solidária da tradição revolucionária e do modernismo mais recente, cuja força social se empenhou em dissecar. Uma década após sua catastrófica morte em 1940, a reunião de seus escritos se impunha como documento de uma das consciências mais agudas do seu tempo.

Apesar da magnitude que Walter Benjamin representa, é por um viés resolutamente defensivo que Lucas fala dele em sua dissertação. Dono de uma ousadia intelectual singular e de uma independência que não fazia concessões, o experimentalismo crítico de Benjamin não foi acolhido, em seu tempo, com a mesma generosidade que ele próprio exerceu frente aos fenômenos que lhe despertavam êxtase. Benjamin era também e sobretudo um pobre diabo e um flâneur solitário, colecionando fracassos ao longo da vida. Um estudante, em suma.

Ao demonstrar que a “montagem” era o dispositivo teórico mais avançado da geração de Benjamin, permitindo agarrar pelos chifres a atualidade desconcertante das vanguardas heroicas, Lucas procura combater página a página o desdém institucional que marcou boa parte da recepção dos escritos de Benjamin, a começar pelo próprio Theodor Adorno – figura de proa da teoria crítica que Lucas detestava, jamais o perdoando pela cegueira teórica de ter desacreditado a teoria benjaminiana da montagem perante seus colegas do Instituto de Pesquisa Social.

Sabemos o quanto nossa tradição local de historiografia filosófica preconiza uma aliança provisória do leitor com o autor estudado, ensinando a interpretar os filósofos pela leitura rigorosa da trama conceitual elaborada por eles. Um dos méritos escolares da dissertação do Lucas é justamente esse. Ele pretende mostrar, documentando o itinerário conceitual do autor, como o empenho de Benjamin em elaborar uma analítica da modernidade capitalista por meio do conceito de montagem era a fornalha que alimentava a parte mais importante de sua produção crítico-teórica.

Quanto ao acerto exegético dessa leitura, pudemos ouvir opiniões mais credenciadas do que a minha. Neste momento, não consigo deixar de ler o seu texto sob um outro ponto de vista. Aproveito para mencionar que, a despeito das expectativas dos seus mestres, não estava claro para o Lucas se ele seguiria na área da pesquisa, uma vez concluído o mestrado. Dizia que, se fosse fazer um doutorado em filosofia, o que era improvável, seu objeto provavelmente seria Siegfried Kracauer, uma figura tão ou mais heterodoxa do que o próprio Benjamin, igualmente ligado ao que conhecemos como teoria crítica e que nos legou um amplo conjunto de escritos originais sobre o cinema.

Trinta anos depois da injustiça infligida a Benjamin, Adorno dedicou um breve ensaio à tentativa de esboçar algo como a personalidade intelectual de Kracauer. Sob influência de figuras da comunidade judaica de Frankfurt, o secundarista Adorno passou a ser aprendiz de Kracauer, dedicando-se a ler com ele regularmente nas tardes de sábado a Crítica da razão pura. Em seu testemunho, alega ter realizado com Kracauer um aprendizado decisivo: captar o momento de expressão da filosofia, isto é, dizer aquilo que vem à mente. Mais essenciais do que a continuidade do nexo de sentido, que a filosofia profissional, animada por uma mania de sistema, acentuaria por sua própria conta, eram as feridas que o conflito deixa na doutrina. Em Kracauer, diz Adorno,

aquilo que urgia à expressão filosófica era a quase ilimitada capacidade de sofrimento: expressão e sofrimento estão irmanados um com o outro. Sua relação com a verdade era de tal modo que o sofrimento, sem ser dissimulado e atenuado, entrava no pensamento […]. Ele me parecia, continua Adorno, embora não fosse em nada sentimental, um homem sem pele; como se tudo que é exterior acometesse sua interioridade indefesa; como se disso ele não pudesse se proteger senão ao dar voz a sua vulnerabilidade.[3]Theodor W. Adorno. O curioso realista. Tradução de Laura Rivas Gagliardi e Vicente A. de Arruda Sampaio. Novos Estudos, n. 85, nov. 2009, p. 6-7.

Em Benjamin e Kracauer, Lucas não procurava apenas ferramentas para o intento de se tornar um crítico refinado e sutil, mas também uma irmandade de espírito ao mesmo tempo sensível e radical.

Não consigo deixar de ler a dissertação de Lucas sem ser afetado pela má consciência que contaminava seus esforços. Embora não se satisfizesse com o papel de estudante dócil e aplicado, levava a sério o seu estudo monográfico, procurando reconciliar exigências contraditórias: esforçava-se em fazer justiça histórica ao pensamento livre, fértil e revolucionário de Walter Benjamin, almejava obter reconhecimento acadêmico e a garantia de uma sobrevivência material digna, pretendia demonstrar a natureza acanhada e conservadora do saber universitário, ansiava armar-se de um arsenal crítico que permitisse ultrapassar as compartimentações da pesquisa universitária e intervir politicamente em nosso tempo histórico.

Entrar no curso de filosofia da USP foi provavelmente o acontecimento mais importante da vida do Lucas. Seus familiares estão aqui para confirmar. Apesar das inúmeras dificuldades que enfrentou, dos novos fantasmas que se avizinharam aos antigos, os encontros que este lugar proporcionou moldaram a personalidade e os sonhos do Lucas. Por esse motivo, culpar a universidade pela sua morte é uma violência contra a sua memória. Sabemos como são recorrentes os casos de suicídio entre estudantes universitários, e em especial de estudantes de filosofia. Mas é importante que se diga isso publicamente: ele abominava o gesto militante de transformar esses colegas em “vítimas” do pretenso descaso universitário, ou “mártires” da luta por melhores condições de estudo. A discussão sobre o atendimento de demandas socioassistenciais pela Universidade é urgente e necessária, mas não cabe ser feita nesse momento.

O que eu gostaria de dizer é que na homenagem que prestamos a ele como um pesquisador excepcional, como símbolo de excelência acadêmica, há também uma violência contra o seu legado. Ainda que Benjamin não fosse o seu tema de pesquisa, eu não deixaria de mencionar que todo documento de cultura é também um documento da barbárie, e a dissertação inacabada que eles nos deixa atesta tanto o vigor do seu espírito como as condições miseráveis em que nos encontramos na universidade. Não me refiro apenas à escassez de bolsas, à precariedade da moradia estudantil. Mas também ao fato de que a universidade segue sendo uma máquina de suscitar e de destruir pensamento, como escreveu certa vez Roberto Schwarz.

Em diversos momentos da dissertação, o enrijecimento tecnocrático da escrita, mesmo cínico, sinaliza o quanto a norma da pretensa excelência acadêmica oprimia o Lucas, ferreteava a sua imaginação como a de tantos nós. Contra as recorrentes ameaças que fragilizam as humanidades, aumentamos a dosagem do veneno que nos intoxica e nos deprime. Imprimimos um ar de seriedade branca e burguesa à nossa atividade intelectual; aceitamos escandir nossas vidas segundo prazos de entrega, como zelosos funcionários de uma organização qualquer. Talvez a universidade esteja fadada a não ser outra coisa. E é por isso mesmo que fazer do Lucas um acadêmico exemplar é um disparate e uma violência também.

É curioso enxergar suas palavras vacilando quando se trata de emitir um juízo em sua dissertação. O texto hesita, o argumento escapa entre os dedos. Seu estilo pessoal era inteiramente diferente. Apreciava emitir julgamentos peremptórios, não porque se satisfizesse com meras impressões do assunto em pauta, mas porque o efeito de choque era parte de sua retórica. Com o assentimento sumário ou a pronta contestação do seu interlocutor, passava então a desfiar os raciocínios que compunham sua visão, sempre esquadrinhada por referenciais teóricos claros.

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A preocupação com a sobrevivência material consumia a nós dois. Essa incerteza tornava angustiante a alternativa entre continuar insistindo na carreira acadêmica em filosofia ou abrir mão desse projeto e partir para outra. Como homem negro de origem modesta, qualquer alternativa impunha a ele dificuldades que não eram pequenas. No final da vida, ele chegou inclusive a preparar terreno para outras investidas: havia se colocado muito bem em um processo seletivo para um cargo relevante do Sesc, ligado à curadoria de artes da instituição, processo aliás que prestamos juntos e em que tive a alegria de ser chamado rapidamente. Era uma questão de tempo até que voltássemos a ser colegas em um novo lugar não menos contraditório. Além disso, ele passara algum tempo se qualificando para trabalhar como redator publicitário, algo que começara a desempenhar antes de entrar na Universidade. Em questão de poucos meses conseguiu uma vaga razoável na área, em que passou a trabalhar de maneira remota.
Resolveu que a vida não valia a pena ser vivida por volta das 17h de uma segunda-feira. Sentia-se fracassado e arrependido do esforço gasto com a filosofia. Estava lidando com efeitos colaterais de medicamentos antidepressivos, com o dissabor profissional e com memórias incômodas da infância.

Que o seu legado seja de irreverência crítica, de ousadia e de inteligência.



Mateus Castilha

Mateus Castilha é pesquisador em filosofia e fotógrafo. Trabalha atualmente na programação artística do Sesc-SP. Defendeu mestrado intitulado “Foucault e a deuxième gauche” pela FFLCH-USP. 


References
1  LeRoi Jones. Black Music. Nova York: William Morrow & Company, Inc, 1970, p. 64.
2 Internacional Situacionista. Situacionista: teoria e prática da revolução. Tradução de Francis Wuillaume e Leo Vinicius. São Paulo: Conrad, 2002, pp. 27-59.
3 Theodor W. Adorno. O curioso realista. Tradução de Laura Rivas Gagliardi e Vicente A. de Arruda Sampaio. Novos Estudos, n. 85, nov. 2009, p. 6-7.

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