Manifesto do Afirmacionismo
“Nossa capacidade de resistência e invenção requer que renunciemos aos nossos prazeres das margens, na obliquidade, na desconstrução infinita, no fragmento, na exposição trêmula da mortalidade, na finitude e no corpo. Em prol do pobre século que se inicia, devemos – e iremos – declarar a existência do que não existe mais na arte: a construção monumental, o projeto, a força criativa dos fracos, a destruição dos poderes estabelecidos.“
Entreguei uma versão deste texto, muito mais extensa e em uma veia diferente, em 2001 em Veneza, na conferência “A Questão da Arte no Terceiro Milênio”, organizada pelo GERMS (Groupe d’Étude et de Recherche des Médias Symboliques), sob a direção de Ciro Bruni. Uma versão ainda mais longa, provavelmente com um estilo sarcástico, foi publicada em 2002 pelo GERMS nos anais do colóquio em questão, intitulado Utopia 3. A presente versão, temperada, abandonando a retórica do Império (excessivamente influenciada naquela época pelo best-seller de Negri), é composta pelos elementos essenciais de uma intervenção no Drawing Center em Nova York, feita a convite de sua diretora, Catherine de Zegher, para o lançamento do número 22 da lacanian ink, dirigido por Josefina Ayerza, no qual foi publicada a tradução para o inglês do meu pequeno livro, “Of an Obscure Disaster” (D’un désastre obscur), publicado em francês em 1991 pela Aube. Provavelmente, haverá ainda mais versões. “Trabalho em andamento.”
Nossa capacidade de resistência e invenção requer que renunciemos aos nossos prazeres das margens, na obliquidade, na desconstrução infinita, no fragmento, na exposição trêmula da mortalidade, na finitude e no corpo. Em prol do pobre século que se inicia, devemos – e iremos – declarar a existência do que não existe mais na arte: a construção monumental, o projeto, a força criativa dos fracos, a destruição dos poderes estabelecidos.
Devemos opor-nos a todos aqueles que desejam apenas o fim, essas coortes de homens esgotados e parasitários. O fim da arte, da metafísica, da representação, da imitação, da transcendência, da obra, do espírito: chega! Vamos declarar de uma vez por todas o Fim de todos os fins e o possível começo de tudo o que é, de tudo o que foi e será.
Contra seu declínio atual para a multiplicidade inconsistente e para uma energia imoral, incontrolada e, se bem-sucedida, fundamentalmente não humana, a vocação da arte, em todas as suas formas, é reafirmar a afirmação.
Vamos declarar novamente, em nome da humanidade, os direitos artísticos do verdadeiramente não humano. Vamos aceitar novamente ser arrebatados por uma verdade (ou uma beleza: é a mesma coisa), em vez de calcular até o último centavo os modos menores de nossa expressão.
Trata-se de afirmar. E é por isso que este rascunho é um manifesto do Afirmacionismo.
A DOMINAÇÃO DO FORMALISMO ROMÂNTICO
Vamos chamar de “pós-moderno” – por que não? – qualquer representação da produção artística feita sob o signo da espetacular exposição de desejos, fantasmas e terrores. Sob o signo de uma abolição douniversal. Sob o signo da exposição total dos particularismos. Sob o signo da igualdade histórica dos métodos formais.
Sim, é assim: pode-se chamar de “pós-moderno” tudo o que exibe uma ascendência caprichosa e ilimitada das particularidades: o comunitário, étnico, linguístico, religioso, sexual e qualquer outra
particularidade. E a particularidade biográfica, o “eu”, conforme se imagina que pode e deve ser “expresso”. Eu afirmo que esses produtos pós-modernos representam a última forma de escravidão da arte à particularidade. Podemos distinguir, assim, se me permite dizer, os produtos étnicos e comunitários por sua fundamentação sexual e os produtos “eu-ísticos”.
Os produtos mais procurados pelos versados no comércio são os que combinam facilmente as duas variedades: em uma categoria étnica e sexual reconhecível, tais produtos são, no entanto, de um “eu-ismo” bastante lúdico.
Não denunciemos ninguém; cada um com o seu.
Eis nosso diagnóstico: revisitados em uma longa perspectiva histórica, os produtos pós-modernos, vinculados à ideia do valor expressivo do corpo, no qual postura e gesto lhe conferem consistência, são a forma material, poderíamos dizer, de um mergulho puro e simples no Romantismo.
Essa questão é de extrema importância para nós. Da vasta quantidade de referências que os Afirmacionistas do futuro irão reunir e publicar, permitam-me, de maneira narcisista, isolar um dos meus próprios textos. No primeiro capítulo do “Petit manuel d’inesthétique”, proponho a distinção, no que diz respeito à relação entre arte e filosofia, entre três sistemas essenciais. O primeiro, que chamo de “Didático”, pretende, de maneira platônica ou stalinista, submeter a atividade artística ao imperativo externo da Ideia. O segundo, “Clássico”, coloca a arte sob a regra natural de formas agradáveis e lhe confere, à maneira de Aristóteles ou Luís XIV, a virtude prática da temperança da paixão, em vez de uma missão de verdade. O terceiro, o “Romântico”, ao contrário, vê na arte a única forma livre de descida da Ideia infinita para o sensorial e pede, assim, à maneira de Heidegger e de certos fascismos, que a filosofia se curve diante da arte.
Sustento que o século XX não foi verdadeiramente inovador no que diz respeito à conexão decisiva entre gesto material e idealidade; que não propôs realmente nenhuma nova figura da arte como pensamento independente. Aqui está o texto:
Concluí um pouco mais adiante:
Os Afirmacionistas, é claro, defenderão a totalidade da produção artística contemporânea contra os ataques reacionários atuais. Desconfiaremos de todos aqueles que tentam usar fraquezas teóricas provisórias para impor a restauração de uma herança pomposa, ou algo ainda pior. Mas não devemos desatender ao problema que temos em comum: a dominação das artes por todas as figuras da expressividade “eu-ísta” ou comunitária, que nada mais são do que um Didático-Romantismo degradado, uma espécie de vanguardismo sem vanguarda. De certa forma, combina com uma pomposidade recorrente. A pomposidade propôs como afeto uma decoração violenta, tecnologizada e grandiosa, e domina o cinema de Hollywood e até certos setores de arquitetura ou design multimídia. Mas os artistas do circuito pós-moderno somente se opõem a ela por meio de um anti-Classismo débil cujo único recurso é a frase de Spinoza: “Não sabemos o que um corpo pode fazer”. Com este magro viático, alguns deles (a maioria?) continuam a buscar, em uma particularidade paroxística, seja étnica ou “eu-ísta”, algo para afirmar a ruína tanto da concepção Clássica da arte quanto da afirmação absolutista da expressão subjetiva, privada ou pública. Agora, o motivo da expressão, sejam quais forem suas modalidades, satura o gesto artístico com um Romantismo cujas únicas variantes conhecidas são o Romantismo fúnebre ou o Romantismo lúdico, anunciando o fim melancólico da raça humana ou fingindo celebrá-lo.
Não podemos entender o que nos envolve e nos faz desesperar se não voltarmos repetidamente ao fato de que nosso mundo de forma alguma é uma democracia, mas sim um conservadorismo imperial sob a aparência da fraseologia democrática.
O que dizer do mundo de hoje? Um poder solitário cujo exército aterroriza o planeta todo dita sua lei sobre a circulação de capital e de imagens e proclama em todos os lugares, com a violência mais extrema, os Deveres e Direitos de todos. Por trás dele correm serviçais e rivais, europeus, russos, chineses… Muitas vezes discordando sobre os meios, eles nunca cessam de testemunhar seu acordo básico. Porque não têm outra ideia de como dar valor ao mundo.
Sob o nome imposto de “terrorismo”, aqueles mais violentamente opostos a essa hegemonia do Ocidente brutal, para o qual a “democracia” é um ornamento espiritual, são, na realidade, parte dela. Alguns criminosos niilistas mataram aleatoriamente milhares de habitantes de Nova York. Esse crime em massa é, evidentemente, um avatar de uma patologia contemporânea. É uma encenação fria de um tema banalizado: a fúria de um barbarismo inspirado contra um imperialismo saciado. O exército americano e os “terroristas” reencenam a velha e sangrenta cena histórica da civilização cercada por brutos. Basta nos lembrar de Roma: um poder solitário, que aos seus próprios olhos encarna a civilização, dispõe a arte em duas direções. Por um lado, uma espécie de celebração extravagante de seu próprio poder, uma embriaguez mórbida e repetitiva, proposta ao povo como um ópio para sua passividade. Esses são os jogos de circo, dos quais hoje os esportes profissionais e a indústria cultural, seja musical ou cinematográfica, nos dão o equivalente exato. Esse tipo de entretenimento funciona em grande escala. Aos nomes de vítima e gladiador correspondem hoje o comércio de orçamentos midiáticos colossais e o doping nos esportes. Essa arte é a arte da pompa que faz do poder fúnebre do Império o material de jogos e ficções cada vez mais alegóricos e bombásticos. O herói natural dessa arte é o Assassino, o torturador-assassino em série. Em resumo, o gladiador perverso.
Na outra direção, uma sofisticação magra, finamente elaborada por meio de um excesso formalista, tenta opor à massividade pomposa o discernimento untuoso e a perversidade sutil de pessoas que podem, sem sofrer muito com isso, fingir retirar-se da circulação geral. Esta arte é Romanticamente melancólica: expressa impotência e a retrata como deleite niilista. Ela reivindica livremente grandes florestas, nevascas eternas, corpos suavizados através de uma sabedoria nativa ou oriental. Mas essa arte está ao mesmo tempo vinculada ao crepúsculo da arte pomposa, como a combinação de chifres de circo com os epigramas deliciosamente obscenos de Marcial. Ou a retórica extravagante dos generais com o sermão ascético dos cristãos nas catacumbas.
A desolação multiforme de seções inteiras da arte contemporânea advém do que é, em completa simetria com a arte pomposa do comércio cheia de imagens massivas, um formalismo romântico. Formalismo, na medida em que uma única ideia formal, um único gesto, uma única habilidade humilde são considerados como suporte de diferenciação da categoria comercial. Romântico, na medida em que cada vez que se desempenha o ofício, mesmo em crescente anonimato, o motivo de expressão inédita, da mise-en-scène supostamente e sublimemente singular assume particularidades étnicas ou “eu-ístas”. Romântico, na medida em que a energia do corpo é supostamente a graça salvadora da desincorporação conceitual. Por meio disso, no tédio de gestos precisos —mas desta vez sem milagre, seja a ligação da arte com um propósito redentor ou a arte como exposição sofrida e radiante da Carne — a arte retorna como construção carnal da finitude.
Para ser específico, o formalismo romântico sempre foi uma orientação artística de dominações enraizadas e terminais. E assim o é em nosso tempo: o de uma doutrina única e multiforme (liberalismo econômico e eleitoralismo político), integrando pela primeira vez a quase-totalidade da espécie humana na distribuição e restrição de sua fortuna. Sim, nosso tempo é o da doutrina única e do consenso que é criado em torno dela sob o estranho nome de “democracia”. Qualquer doutrina única desse tipo é desesperada, niilista, porque só propõe à multiplicidade humana a perpetuação absurda de sua ordem obscena. E a subjetividade artística a que ela conduz é a desse niilismo e dessa obscenidade. Trata-se de formalizar a sublime desesperança do corpo entregue à jouissance do Único. Lênin mesmo observou que, nos períodos em que a atividade política crítica e revolucionária é muito fraca, a triste arrogância dos imperialismos produz uma combinação de misticismo e pornografia. Isso é exatamente o que está acontecendo conosco hoje, na forma do vitalismo formal romântico. Temos sexo universal e temos sabedoria oriental. Uma pornografia tibetana – é isso que a esperança desta era, que ainda tem de descobrir um amanhecer, realizou.
AFIRMANDO O GRANDE SÉCULO XX
Alguns artistas há muito pensam que a destruição persistente do esquema romântico e de todo o seu aparato naturalista e vitalista era o imperativo do momento. Os Afirmacionistas exigem a singularidade de uma genealogia crítica. Em todas as artes do século XX, grandes artistas tentaram desfazer a empreitada da expressividade romântica e dar à arte sua indiferença necessária (froideur), no mesmo sentido em que Mallarmé reivindicou para a Ideia poética: que ela deveria surgir, indiferente ao desprezo e à obsolescência, como uma Constelação. Esses artistas, muitas vezes isolados, compuseram lentamente configurações compreensíveis apenas hoje. Eles mantiveram a vontade de um conceito de arte que não tolera nem finitude, nem carne, nem redenção. Uma arte completamente alérgica à hipnose obscurantista, bem como às estupidezas pornográficas de performances festivas. Uma arte que não é a de Buda, nem a de um desejo dilacerado entre o festival e a morgue. Uma arte efetivamente divorciada do Romantismo. Uma arte que poderia ser o equivalente do que o poeta Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, chamou de “matemática do ser”.A arte mais tensa e verdadeira do século XX tentou mostrar, como diz Álvaro de Campos, que “o binômio de Newton é tão belo quanto a Vênus de Milo”. O que significa: ela tentou apreender o real com o mesmo rigor impessoal que aquele da matemática. Poderíamos citar alguns heróis dessa tentativa, constantemente opostos à sucessão de neo-Romantismos, como a dos Surrealistas e, pior ainda, a dos Situacionistas, para não mencionar os Corporealistas e Vitalistas contemporâneos. A lista – limitamo-la aos desaparecidos – é arbitrária; ela indica apenas a aparente ausência de contorno naquilo que delineia, nos céus mortos do século, nossa constelação. A constelação Afirmação. Aqui estão os grandes Afirmacionistas, os melhores, sem necessariamente saber que assim o eram: aqueles que desenvolveram por si mesmos, por meio de sua arte, uma configuração completa em princípio e execução. Fernando Pessoa para poesia, Picasso para pintura, Arnold Schoenberg para música, Bertolt Brecht para o teatro, Ossip Zadkine para escultura, Charles Chaplin para o cinema, William Faulkner para o romance, Merce Cunningham para dança…
Mas não podemos esquecer Wallace Stevens, que afirma a possibilidade do poema capturar o ser a partir do aparecer; Osip Mandelstam, que agarra todos os signos sagrados na imensidão do cadáver do Tempo; Paul Celan, que afirma a possibilidade transpoética com o poema “Depois de Auschwitz”. Celebramos Alban Berg, que afirma a possibilidade integral da ópera além de sua evidente morte; e Bela Bartok, que perpetua a força experimental, contrapontística e rítmica do quarteto de cordas. Ou Olivier Messiaen, afirmando a incorporação de uma espécie de lentidão sonora, através de massas sutis e emaranhados temporais, da vida contemplativa inocente, enquanto Anton Webern constrói o valor místico de silêncios sofisticados.
Vamos elogiar a Afirmação: de Malevich ou Mondrian, pela certeza ontológica das geometrias; de František Kupka ou Mark Rothko, pelo seu poder – ó, draperias da alma! – dos grandes e puros contrastes de cores suficientes. Diremos: Kandinsky, legitimador da conexão de signos! Jackson Pollock, efervescência contida do gesto infinito! Saudamos você, Pirandello, decisão fecunda da duplicidade, aptidão para a verdade da ilusão! E Claudel igualmente, língua maldosa da insatisfação conservadora ao cume dos céus.
Os insetos idólatras de Germaine Richier, as maternidades colossais de Henry Moore, os puros signos de Brancusi!
Ainda outras Afirmações: a visão envolvente de totalizações efêmeras de Woolf, a bênção matinal de Katherine Mansfield, a perseverança ascética do desejo de existir de Beckett. E você, irmão Malraux, você que levou a História aos limites de sua celebração retórica.
Friedrich Wilhelm Murnau, revelação da força do sonho detida pela união de cenário e luzes. Orson Welles, desenho de uma poética tortuosa da visibilidade… Vamos encerrar este exercício, aparentemente absurdo, que mostra que nada nesta lista está inscrito sob uma designação reconhecida por escolas. É apenas que a singularidade das obras mostra o desejo, em direções díspares, contra todo Romantismo e, aos olhos do século tenebroso, pelo que pode finalmente tomar a forma de uma Afirmação terrestre.
PROCLAMANDO AS MÁXIMAS DO AFIRMACIONISMO
Ao nomear o que estamos examinando e o que pode ser útil para nós, não pretendemos distribuir valor. Pretendemos tornar perceptível a genealogia de um axioma. Um axioma que coloca o seguinte:ao amanhecer do século, devemos restaurar o valor artístico ao seu rigor incorpóreo, à sua despaixão anti-Romântica, a uma operação subtrativa por meio da qual ele se aproxima mais do real sem imagem, que é a única causa da arte. Subtração por meio da qual ele elimina qualquer empreendimento de particularidade, pois o real que encontra é destinado a todos. Subtração que é o método moderno de afirmação integral do universal.
Axioma, assim, de uma arte que não é nem étnica nem “eu-ísta”. Uma arte não localizada, tão ambiciosa quanto impessoal, tão nua para o pensamento universal quanto a linha que desenha o sinal atemporal de um bisão e um tigre há trinta mil anos na sombra de uma caverna. E que, nessa mesma nudez, afirma para sempre a não-humanidade do Belo. O axioma afirmacionista estabelece apenas condições mínimas, ainda completamente abstratas, mas amplamente e ativamente distribuídas pela constelação ainda não projetada pelos artistas deste século; condições para que a arte possa se rebelar contra o poder imperial ao mesmo tempo que supera a duplicidade Romântica do funerário e do lúdico. Uma duplicidade que Victor Hugo usava para reivindicar o sublime e o grotesco. Pois se ele não era pomposo, a arte de hoje o é completamente: o sublime obtido à força por meio do grotesco. A careta estéril de uma sacralização ausente. A gesticulação insípida do Eu.
É contra essas colorações apressadas de uma devoção insuficiente à não-humanidade do verdadeiro que tentamos restaurar os direitos de uma Afirmação independente.
1. A arte não é a descida sublime do infinito para a abjeção finita do corpo e da sexualidade. Pelo contrário, é a produção de uma série infinita subjetiva por meio dos meios finitos de uma subtração material.
Afirmamos que só existem obras de arte. E que uma obra é sempre finita, terminada, o mais acabada possível. O mito do não-trabalho é pós-Romântico, é o tédio do finito em nome do vago infinito. A característica distintiva da arte é levar a uma possibilidade subjetiva infinita ligada à finitude da obra. Tudo o que nos faz ainda pensar em Ésquilo ou Lucrécia, usando uma subjetividade recriada, é bom. A ideia do efêmero é considerada nova, mas é apenas a aliança da arte com a circulação de mercadorias consumíveis e com a usura de produtos, que é a base material do Império. Resistir ao Império é afirmar a obra, evitando ao mesmo tempo o elogio pomposo de seu poder. Afirmar a poderosa impotência da obra, sua singularidade frágil e implacável.
2. A arte não pode ser a expressão de mera particularidade, seja étnica ou “eu-ísta”. É a produção impessoal de uma verdade dirigida a todos.
O esquema da expressão pressupõe que cada um, como artista, é uma espécie de singularidade inefável. Como dizem hoje: “Quero ser eu mesmo” – ou, na versão tribal: “Queremos criar, recriar, nossa própria cultura”. Infelizmente, esse desejo é predeterminado, e o “eu” que aparece não pode ser distinguível de “todos”. E “culturas” não passam de produtos restaurados, coisas antigas recicladas. Tudo isso é desesperadamente médio. Os poderes estabelecidos adoram estatísticas e pesquisas porque sabem que nada é mais inocente e incapaz do que a média. Eles sabem que cada um, qualquer um, é apenas um animal intercambiável. Afirmamos que esse animal, por meio do trabalho artístico, fornece o fundamento transfixante para um endereço universal. O animal humano não é de forma alguma a fonte, mas apenas o local, ou um dos locais. O artista como indivíduo é apenas matéria viva emprestada a um sujeito que, por ser um sujeito sensorial, na forma da obra de arte, precisa dessa matéria. Mas uma vez que o sujeito-obra está completo, podemos esquecer completamente seu suporte individual transitório. A única coisa afirmativa é a obra. O artista é o elemento neutro dessa afirmação.
3. A verdade da qual a arte é o processo é sempre a verdade do sensorial, como sensorial. O que significa: transformação do sensorial em evento da Ideia.
O que, entre os processos de verdade, é singular na arte, é que o sujeito da verdade é trazido lá pelo sensorial. Enquanto o sujeito da verdade na ciência é deduzido pelo poder da letra, na política pelos recursos infinitos do coletivo, e no amor pelo sexo como diferenciação. A arte faz evento daquilo que é a quintessência do dado, a indistinção sensorial, e é assim que a arte é Ideia: pela mudança do que está lá para o que deveria acontecer à sua própria finitude. A Ideia, na arte, é imposta pela transformação do manifesto em um imperativo improvável. Somos obrigados a ver, como se fosse quase impossível, o que de outra forma é obviamente visível – isso é, por exemplo, a pintura. A arte afirma que no ponto exato de um impossível de sentir, a Ideia acontece, é sentida novamente, no efeito sensorial da obra.
4.Há uma necessária pluralidade das artes, e qualquer interseção imaginável, por si só, é inimaginável.
Isso se aplica apenas à forma como a manifestação deve ser distribuída no sensorial. Nada unifica o sensorial, exceto o sujeito animal individual e seus órgãos. Mas essa unificação empírica é indiferente à arte, que lida com a região sensorial por região e produz seu próprio sujeito universal não empírico e não orgânico. Portanto, não pode haver arte sensorialmente indistinta nela. Afirmamos que o motivo multimídia de uma arte multisensorial é um motivo sem destino verdadeiro. Ele apenas projeta na arte a singularidade obscena do comércio, a equivalência monetária de todos os produtos.
5. Toda arte vem de uma forma impura, e a purificação dessa impureza molda a história e a extensão de sua verdade artística.
A forma é o que dá à manifestação sensível um novo tremor, de modo a dissipar sua evidência manifesta e transformá-la em um frágil dever-ser. Ela é sempre inicialmente impura, porque está suspensa entre a manifestação inicial e seu tremor, entre o reconhecimento e o equívoco. Por muito tempo, a figuração foi assim: isso é um boi, mas não exatamente, e além disso, era necessário ver para acreditar. Depois disso, a arte se esforçará para purificar o impuro, dedicando-se cada vez mais completamente ao seu dever de tornar visível, contra toda evidência visível.
6. Os sujeitos de uma verdade artística são as obras que a compõem.
Caso contrário, haveria os autores e suas manifestações ou expressões. E assim não haveria dever, nenhuma universalidade. Haveria apenas o reflexo de particularidades “eu-ístas” ou étnicas. O único verdadeiro sujeito é o que aparece: a obra, após a qual a manifestação é suspensa. O sujeito afirmativo da não-manifestação é a obra e somente ela.
7. Essa composição é uma configuração infinita que, no contexto artístico do momento, é uma totalidade genérica.
Estamos falando aqui de sujeitos iniciados por um evento histórico da arte, ou do complexo que compreende obras de uma série inovadora. Como obras seriadas na música, ou o estilo clássico entre Haydn e Beethoven, ou os anos em que o cubismo estava vivo, ou o poema pós-Romântico e milhares de outras coisas. Existem coleções subjetivas, ou constelações de obras que chamamos de configurações, que são a verdadeira figura das verdades artísticas. Uma configuração é aquilo que não era nem nominável nem calculável na situação anterior à arte em questão. É o que acontece inesperadamente, imprevisível. É por isso que a totalidade assim produzida é genérica: ela afirma, em um determinado momento, a arte como gênero universal puro, isento de qualquer classificação preliminar.
8. O real da arte é a impureza ideal como processo imanente de sua purificação. Em outras palavras, a arte tem como seu primeiro material a contingência puramente descritiva de uma forma. A arte é a segunda formalização do advento de uma forma informe.
Esta afirmação apenas recapitula a anterior de outro ângulo. Inicialmente, há uma ideia formalmente impura que transforma uma manifestação da percepção ou da intuição interior em um problema, um imperativo. Em seguida, há o refinamento da impureza, um desapego, cada vez mais amplo, da forma. É por isso que se pode dizer que o futuro de uma configuração artística, ou de uma verdade, é feito por uma segunda formalização, eliminando sua impureza na forma impura, eliminando o informe, ou fazendo forma do próprio informe. Até o momento em que nada do real é retido, falta de manifestação, falta de impureza. Quando uma configuração perde seu poder afirmativo, ela é bem-sucedida.
9. A única máxima da arte contemporânea é não ser “ocidental”. O que significa também que ela não deve ser democrática, se democrática significa: conformar-se à ideia ocidental de liberdade política.
Aqui entramos na situação atual. Sim, o único problema é saber se o imperativo artístico pode ser separado do imperativo ocidental, que é o do marketing e da comunicação. A democracia ocidental, de fato, é marketing e comunicação. Assim, a verdadeira arte é aquela que interrompe o marketing, aquela que não comunica nada. Imóvel e incomunicável, esta é a arte de que precisamos, a única que se dirige a todos, não circulando de acordo com nenhuma rede preestabelecida e não se comunicando com ninguém em particular. A arte deve aumentar em todos a força não democrática de sua liberdade.
10. Uma arte não ocidental é necessariamente uma arte abstrata, no seguinte sentido: ela abstrai de toda particularidade e formaliza esse gesto de abstração.
Para combater a expressividade, para combater o formalismo romântico, só há a dinâmica da abstração. Esta é uma regra muito antiga, mas é especialmente necessária em nossa situação. Tudo se resume a isso: inventar uma nova abstração sensorial. É verdade que mal sabemos como fazer isso. O trabalho da ciência, e especialmente da matemática, pode nos instruir. Afinal, foi por este caminho que os artistas do Renascimento e os pintores do início do século se voltaram para a geometria. E nós também devemos nos voltar para a geometria, que mudou muito. Porque se trata menos de substituir as formas de seu esquema do que da lógica dos invariantes ocultos em sua completa distorção. Devemos afirmar, na arte, a ideia de distorções inteligíveis.
11. abstração na arte que é e que será não considera nenhum público em particular. Essa arte está ligada a uma aristocracia proletária: ela faz o que diz, sem precisar da aceitação de ninguém.
Afirmamos que todas as especulações sociológicas e institucionais sobre o público das artes devem ser abandonadas. A sociologia e a crítica são apenas e sempre auxiliares da democracia ocidental. A arte não deve se preocupar com sua clientela. Ela se dirige inflexivelmente a todos, e esse endereço não tem significado empírico. A arte é feita, diz o que faz, faz o que diz, de acordo com sua própria disciplina, e sem consideração pelos interesses de ninguém. Isso é o que eu chamo de sua aristocracia proletária: uma aristocracia exposta ao julgamento de todos. O grande diretor francês Antoine Vitez
tinha uma expressão encantadora para designar a arte do teatro. Ele dizia: “elitista para todos”. “Proletário” designa o que, em cada um, por meio da disciplina do trabalho, pertence à humanidade genérica. “Aristocrático” designa o que é protegido, em cada um, de qualquer avaliação pela média, pela maioria, pela semelhança ou pela imitação.
12. A arte que é e que será deve ser tão solidamente unida quanto uma demonstração, tão surpreendente quanto um ataque noturno e tão elevada quanto uma estrela. Aqui estão o que essas três imagens como abstrações confirmam.
A obra a vir deve ser tão solidamente unida quanto uma demonstração, porque ela deve opor à mobilidade de mercado perpétua do mundo imperial um princípio inflexível de consequência. A obra a vir despreza relativismos e suspeita da dúvida. Ela explora sua afirmação até o fim.
A obra a vir deve ser tão surpreendente quanto um ataque noturno porque faz um evento do real ignorado. Ela impõe violentamente esse real, esse pedaço do real em tudo o que ela alcança. Ela não o faz circular, não o comunica. Ela o impõe, com um toque necessário de terror.
A obra a vir deve ser tão elevada quanto uma estrela porque deseja uma indiferença não temporal à sua forma inventada. Ela não é fraternal, corpórea, ela não se instala na tepidez do compartilhamento. A obra de arte a vir está desvinculada do comércio imperial.
A dificuldade da arte hoje é que existem três imperativos, não apenas um. Há o imperativo da consequência, o imperativo lógico, o da matemática do ser. Há o imperativo da surpresa, o imperativo do real, ou da exceção. E há o imperativo da elevação, o imperativo do símbolo, ou da distância. Frequentemente, as obras são recebidas de acordo com um ou dois dos três imperativos. Mas o grande problema da forma hoje é juntar os três. Isso é o que decidirá a obra a vir. Deixamos as três últimas frases em sua nudez conclusiva.
13. A arte só pode ser feita hoje sobre o que, para a Comunicação (o meio e o comércio), não existe ou quase não existe. A arte constrói abstratamente a visibilidade dessa não existência. Isso é o que ordena, em todas as artes, o princípio formal: a capacidade de tornar visível para todos o que, para o meio e para o comércio, e assim também para todos, embora de um ponto de vista diferente, não existe.
14. Convencido de controlar toda a extensão do visível e do audível por meio de leis comerciais de marketing e leis democráticas de comunicação, o poder contemporâneo não precisa mais de censura. Ele diz: “Tudo é possível”. O que também pode significar que nada é. Abandonar-se a essa autorização para gozar é a ruína de toda arte, assim como de todo pensamento. Devemos ser nossos próprios censores impiedosos.
15. É melhor não fazer nada do que trabalhar oficialmente na visibilidade do que o Ocidente declara existir.
Texto Original: https://www.lacan.com/frameXXIV5.htm
Ubiratã Tubis
Revisor e mestrando em Estudos do Texto e do Discurso na Unesp de São José do Rio Preto.