Vini Jr. e a política da insubordinação
Ontem, no dia 28/10/2024, o mundo do futebol — o esporte mais popular do mundo — acompanhou, com incredulidade ou revolta, o desenrolar da 68º premiação anual do Ballon d’Or (ou Bola de Ouro), criado e organizado pela France Football. Apesar da expectativa massiva de que Vini Jr. receberia o prêmio de melhor jogador da temporada 23/24, foi surpreendentemente Rodri o escolhido. Teoricamente, a escolha funciona da seguinte maneira: a revista envia uma lista prévia com 30 nomes para os jornalistas selecionados de cada um dos países, dentre os 100 primeiros no ranking da FIFA 1 onde, diga-se de passagem, aproximadamente 40% são países europeus 2, e que organizam assim, cada um, seu próprio ranking de 10 integrantes, que irão pontuar de acordo com cada posição 3. Nosso ponto aqui não é questionar o procedimento de votação, mas criticar a ideologia cínica que o gonçalense desafiou.
Para além do método questionável, é preciso pontuar algumas coisas óbvias. A primeira e principal delas é a seguinte: como já foi notado por alguns, Vini não perdeu o prêmio por questões intra-campo, mas por fatores extra-campo. Essa (não) premiação tentou atingi-lo quase como uma “medida disciplinar”, por ousar expor as regras não-ditas de um jogo muito maior, no qual o futebol está inserido — e, diríamos, detêm importância cultural fundamental —; o jogo político-econômico de uma indústria eurocêntrica multibilionária, onde as regras são dadas por inquestionáveis instituições que, para operarem à partir de seus pressupostos, precisam ocultar constantemente a dimensão social e política do futebol. Vinicius José Paixão de Oliveira Júnior cometeu um crime imperdoável para os donos do espetáculo: lembrar aos espectadores que não só o esporte existe na sociedade, não só indivíduos vão consumir nos estádios, mas a própria sociedade existe e se manifesta no futebol — e assim, também abre-se margem para a política, contrariando a antipolítica imposta pelos “donos” do jogo e defendida pelos seus representantes.
Não contente com isso, Vini fez questão de negar o politicismo cínico que é esperado dos jogadores — especialmente os não-europeus, negros, latinos, de origem pobre — que deveriam, supõe-se, aceitar toda e qualquer “intempérie” por gratidão ao que supostamente lhes foi agraciado (fama, salários milionários, o tipo de reconhecimento que deriva-se disso, etc). Vini “Malvadeza” foi, como diria o jargão militar, insubordinado. Pior ainda, ousou segurar um espelho em frente à sociedade europeia e mostrar a verdade escondida em uma suposta paixão pelo futebol, que teria suas provocações, seus excessos, como elementos “banais” a serem relevados pelos “profissionais” do esporte — e que não o foram. Pelo contrário, foram nomeados pelo que realmente são. Seria fácil piscar e debochar para um racista aos berros, embriagado pelo ódio plenamente autorizado pela plateia e também pelas instituições europeias — “são provocações do jogo, não caia”, diz-se em tom de bom conselho. Poderia descascar e comer uma banana atirada a ele em provocação, por que não?!
Diferente do que sugerem muitos racistas, declarados ou não, Vinícius negou o caminho fácil da autopromoção através de uma mercantilização “da causa” — uma das coisas mais difíceis hoje em dia, diga-se de passagem, não só por ética ou “fibra moral” pessoal, mas pela própria impossibilidade da política em uma cena arquitetada para que tudo retorne ao espetáculo. Vini, para piorar sua situação frente aos grandes acionistas e ideólogos do esporte (contingentemente) bretão, expôs tanto a si mesmo, não enquanto atleta, mas enquanto pessoa, ao mesmo tempo em que fez a manobra política necessária — porém arriscada — de expor também as próprias instituições. Sua insubordinação revelou a conivência das instituições europeias de futebol com o racismo cotidiano que visita, frequenta e se retroalimenta nos estádios. Seria realmente “mais fácil” ignorar a dimensão real do que anunciam essas “provocações” e apenas, de modo impessoal, contentar-se com a vida de elite, minimizando a gravidade e o significado destes episódio no todo, aceitando as migalhas na forma de condolências e notas oficiais que não possuem nenhum efeito prático além de uma desimplicação simbólica dos emissores.
Queria o destino que, no dia 28/10, dia de São Judas Tadeu — santo das causas perdidas (ou impossíveis, como bem lembrou Andrade, outro gigante flamenguista) e padroeiro do Flamengo, seu time do coração e pelo qual foi revelado — Vini Jr. fizesse algo já considerado não mais possível: contrariar o imperativo cínico do nosso tempo, ainda mais intenso na política não dita do futebol europeu. E isso é algo que fica patente em respostas de ex-jogadores, sobretudo brasileiros, quando questionados sobre o caso: os episódios de racismo não começaram com Vinícius. Seja para apoiá-lo, seja para minimizá-lo, é fato que realmente não começaram com ele. O que começa com Vinicius é a negação ao cinismo, à reação mandatória apaziguadora e “cordial”, ao deboche que pressupõe-se superior mas ignora a dimensão não-individual do problema. O que começa com Vinicius é a insistência, desde o futebol mais capitalizado e espetacularizado do mundo, em relembrar que a sociedade existe, e as nossas ações em relação ao esporte possuem uma dimensão política — o “extra-campo” é condição de qualquer esporte.
É difícil provar esse tipo de hipótese mas, caso Vini Jr. tivesse de fato escolhido o caminho da vítima, teria recebido o prêmio. Ao escolher não se reduzir à condição de vítima e, ao contrário, proclamar-se como algoz de racistas, os donos da premiação entenderam perfeitamente o risco dessa mensagem e fizeram questão de reduzir o Ballon d’Or de 2024 a uma tentativa de escrutínio e humilhação pública contra o jogador. Não é para menos: o jogador, nascido em São Gonçalo, recusou o contrato ideológico de regras não ditas, imposto pelo imperativo cínico dessa anti-política que é fundamental aos gestores do maior esporte do mundo. Pois nunca se tratou “apenas” de futebol, na medida em que Vinícius, mostrando não ter “dom pra vítima”, como diria Mano Brown, faz uma convocação política que abala a própria gramática europeia de gestão das identidades. O Ballon d’Or do dia 28 de outubro de 2024 não foi mesmo “só” sobre futebol, mas sobre os limites europeus — e também globais — de gestão das crises políticas pela gramática cultural vigente de denegação do social.
Todos que o chamam de “vitimista” o fazem também porque sabem disso, em alguma medida. O fazem porque são racistas ou teriam tomado o caminho fácil — e por vezes covarde — de olhar para o outro lado, desconversar, fingir indiferença gozando de seus bens, e assim, normalizando o inaceitável. Mas toda vez que Vinícius decide não tomar o caminho covarde, independente do que digam, algo maior do que qualquer Ballon d’Or ocorre. Sua insistência em uma causa que alguns chamariam de impossível o torna maior não só que o prêmio, mas também maior do que os pretensos donos do jogo.
- Um “detalhe” curioso é a distinção em relação à categoria feminina, que conta apenas com integrantes de 50 países do ranking — fazendo parecer assim que mulheres não votam na categoria masculina, e vice-versa. ↩︎
- https://www.ogol.com.br/ranking_fifa.php?pais=0&page=1 ↩︎
- https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2024/10/28/o-que-mudou-na-bola-de-ouro-para-2024-veja-criterios-de-votacao.ghtml ↩︎
Cian Barbosa
Cian Barbosa é sociólogo, mestre em psicologia (UFF) e doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), professor e coordenador no Centro de Formação, tradutor, ensaísta, integrante da revista Zero à Esquerda e colunista na revista Opera Mundi.