[1]A versão em inglês que utilizamos para a presente tradução tem por título “The mobile factory”. Acreditamosque o tradutor se utilize da polissemia da palavra “mobile”, que em português … Continue reading
As formas – contemporâneas de produção do espaço parecem presas em dois movimentos contraditórios. Por um lado, apresentam-se como um movimento em direção as tradicionais tendências de concentração espacial: o parque industrial como um tipo de estágio final da grande indústria com diversos processos de produção unidos no mesmo lugar e, em certos momentos, conectados. Por outro, ao contrário, caminha numa direção oposta à industrialização, seja através da retomada de formas tradicionais de espaços de produção (como oficinas rurais ou trabalhos em residência), através de uma sofisticada reemergência do sistema putting-out, ou, mais frequente, através de uma relativa deslocalização de certas atividades produtivas.
No primeiro caso, o parque industrial é uma super-fábrica. No segundo, a fábrica está espalhada, por vezes aparecendo como uma anti-fábrica. De um lado: a vertigem do tamanho. Do outro, a beleza do detalhe.
Essas duas tendências são realmente contraditórias? A tese a seguir é de que não são, já que ambas anunciam o fim de um paradigma – o da fábrica-fortaleza – e o nascimento de uma nova figura: a produção do espaço caracterizado pela fluidez e mobilidade. Essa mobilidade dos objetos e meios de trabalho, dos produtos e dos indivíduos, assim como das relações sociais, aparecem ambas como uma sistematização de tendências anteriores e como um elemento fundamental nos esforços de resolver a crise contemporânea da fábrica.
Devemos primeiro tentar definir a fábrica para além do termo genérico que se refere a qualquer lugar onde a capacidade de trabalho está em uso; ou, em outros termos, definir o modelo dominante da fábrica do século XIX em diante. É esse modelo que Marx designou inequivocadamente como “a fábrica”. Os historiadores geralmente caracterizam esse espaço de acordo a dois critérios: a concentração da produção e o lugar em que a disciplina do trabalho está estabelecida. Os economistas dificilmente a definiriam de uma forma diferente de Marx: a fábrica é o lugar de uma recomposição maquinal do processo de trabalho, no qual a unidade do ofício (instrumentos de trabalho + força de trabalho) dá lugar a unidade do “maquinismo” (instrumentos de trabalho + objeto de trabalho).
A forma-fábrica é em geral a do confinamento: a fábrica fecha-se em quatro paredes, protegendo uma superfície de espaços funcionalizados (oficinas e escritórios). Essa forma é suscetível de diversas interpretações, sendo importante refletir sobre suas funcionalidades. Nada indica a priori que essa forma é realmente funcional. Pelo contrário, podemos ver nela a expressão de coações ligadas ao tipo de espaço utilizado pela indústria no começo do seu desenvolvimento.
Em geral, podemos dizer que a fábrica é um modelo de posicionamento espacial do locus produtivo. É através da fábrica que o capital marca seu território, assim como um nobre marcava sua presença pelas torres do seu castelo ou como o estado abre caminho através de suas delegacias.
O capital identifica seu território e através dele identifica a si. Contudo, a era em que a construção de um espaço de produção autônomo era um empreendimento fundamental acabou. Vivemos num momento em que se tornou claro que o capital deve, daqui em diante, reconquistar a totalidade do espaço social do qual o movimento anterior tinha ainda uma tendência de separação. Se nos seus primórdios a fábrica desvencilhou-se do corpo social e tendia a se separar dele como forma de elaborar suas próprias regras de operação; agora, é preciso que ela reincorpore o corpo social de modo a dominá-lo ainda mais (isto é, fábrica no senso comum: espaço de utilização de força de trabalho, localização do trabalho assalariado). Vamos à fábrica em sinal de submissão que, todavia, ainda contém algo de vontade própria, algo de um movimento livre: podemos escolher nossos meios de transporte e, em casos privilegiados, nossas horas de trabalho. Entretanto, a submissão só se completa quando o trabalho assalariado se apodera de toda a vida e passa a regular não só o trabalho, mas – sendo a distinção entre ambos não mais válida – a vida fora do trabalho. A diferença entre tal forma e o trabalho que tinha a casa como espaço no século XIX é clara: no século XIX, trabalho e não- trabalho não podiam ser diferenciados, pois eles designavam apenas dois modos diferentes de utilização do tempo não governados pelos salários. Agora, entretanto, eles não podem ser diferenciados, pois são ambos governados pelos salários.
Confinamento enquanto limitação
Duas características, segundo os historiadores, que distinguem a fábrica enquanto forma histórica: a concentração do capital e a disciplina do trabalho. E é justamente através dessas características que a fraqueza do modelo aparece. A fábrica rapidamente torna-se o lugar onde a concentração do capital (em todas suas dimensões: capital produtivo, capital financeiro, “capital humano”) é, ao mesmo tempo, forte e fraca.
Forte: as capacidades de produção são sempre excessivas, os equipamentos nunca são utilizados até os seus limites. Embora a fábrica necessite desse alcance potencial, seu resultado é, em geral, a imobilização.
Fraco: a fábrica nunca dispõe de capital suficiente para permitir que escape da dependência de fatores externos. Isso age como um obstáculo no qual, apesar de intransponível, tentar-se-á sempre a superação.
Disciplina do trabalho: o desenvolvimento produz lentamente efeitos contraditórios, incompatíveis com o ganho em produtividade do trabalho. A disciplina do trabalho que apareceu na grande indústria tem como consequência a formação de um trabalhador não- qualificado, cuja única especialidade é a sua “mobilidade”, isto é, sua habilidade de constantemente metamorfosear-se para realizar tarefas que não são tarefas, que não possuem nenhuma unidade cognitiva, que são só atividades parcelares aprendidas em quatro dias por um trabalhador inculto que nem mesmo fala um idioma, como dizia Henry Ford.
Essa disciplina, produtiva nos primórdios, alcança seus próprios limites no momento em que o trabalhador aprende a utilizar tal situação como forma de luta, intensificando ao extremo a tendência geral em direção ao próprio fim da especialização. As lutas dos trabalhadores da produção em massa afirmam esta tendência resultando na crítica do trabalho em si: em vez de demandar uma especialidade, de forma análoga aos trabalhadores que a possuem, eles por vezes lutam contra a aquisição de qualquer uma. Assim, concebidas no princípio enquanto formas de luta contra o coletivo profissional, tais formas de disciplina só levam a formação, em tempos de produção massiva, de outros coletivos de trabalhadores. Divididos, separados desde o começo de acordo a tarefa que devem cumprir, esses coletivos reconstituem-se, pouco a pouco, de acordo a outros princípios. De certo modo, a fábrica facilita esse movimento pois fornece uma base territorial na qual, do contrário, sua existência seria impossível. A base territorial das lutas dos trabalhadores do século XIX não foi, com efeito, a fábrica (ou aquilo que servia como tal), mas essencialmente a cidade, já que era a cidade que representava a vida comum.
A fábrica se tornou a base territorial das lutas trabalhistas através de um duplo movimento: primeiro, interno ao capital, tendeu a isolar, a autonomizar a fábrica como um local de produção. O segundo, externo ao capital, tende a reconstituir os coletivos de trabalhadores de acordo aos meios disponíveis – dentro da quase artificial unidade social constituída no interior da fábrica, dentro da caricatura de relações sociais que a fábrica gradualmente codifica.
Aqui, as contradições intrínsecas ao modelo da fábrica aparecem mais claramente. Como lugar de submissão à produção, de alienação diária do ato produtivo, a fábrica não pode permanecer como espaço de mobilização perfeito. Ao participar nesse movimento geral do capital em direção a uma perfeita mobilidade das relações sociais as quais domina, a fábrica inevitavelmente engendra as tendências mais contraditórias.
O modelo de confinamento, altamente simbólico nos primórdios da industrialização, torna-se, mais do que nunca, pelas contradições que gera, um limite. Confinamento: primeiro, como símbolo da violência inerente ao ato de pôr pessoas a trabalhar, logo passa a simbolizar a existência de uma fortaleza-trabalhadora. Mais uma vez, o que o capital deve fazer é acabar com a coletividade dos trabalhadores. Ainda assim, ela não poderá ser quebrada como nos tempos do taylorismo e dos seus sucessores.
O capital só pode acabar com a coletividade acabando com a fábrica, pois a fábrica passa a aparecer, mais do que nunca, como o modelo de uma fixação espacial, como o produto de um estranho laço: o capital, perfeitamente móvel por natureza, e a força de trabalho, socialmente desconfiada da mobilidade, vinculada a sua territorialização, móvel apenas pela submissão ou por seu contrário, a revolta.
O modelo do fluxo
Do ponto de vista da mobilidade, as indústrias de processo contínuo providenciam uma espécie de paradigma. Em certo sentido, elas fornecem uma imagem das tendências profundas da mobilização capitalista. É nessas indústrias que as primeiras aplicações dos princípios destinados a economia de tempo e espaço podem ocorrer, tendo como motivos principalmente a própria natureza dos processos colocados em marcha: esses processos lidam com fluxos cuja natureza química, frequentemente perigosa, proíbem os indivíduos da manipulação direta. Encontramos duas grandes categorias de trabalhadores nessas indústrias: um círculo privilegiado e um grupo muito difuso de trabalhadores secundários.
O trabalho do primeiro grupo é essencialmente o controle e manutenção. Isso significa que nenhuma relação direta existe entre o seu trabalho e a quantidade produzida, o volume manipulado, o “composto”. Por outro lado, o número de tarefas que eles devem realizar está diretamente relacionado com um declínio na produção, e a produção está em seu melhor funcionamento justamente quando eles não precisam intervir. Desse ponto de vista, a forma em que o trabalho está dividido entre o primeiro grupo de trabalhadores, a codificação das suas relações hierárquicas – basicamente, todos os elementos da disciplina do trabalho que são específicos a eles – são determinados primeiramente pelas tarefas demandadas em caso de ruptura de um “composto”, em casos de não-produção, no caso de um distúrbio que é alheio ao que normalmente caracteriza a fábrica. Contudo, podemos pressupor que a maioria desses trabalhadores serão condenados a extinção logo que as tecnologias de controle remoto (robótica) se aperfeiçoem. A disciplina a qual esses trabalhadores estão submetidos terá uma chance ainda maior de assumir uma forma “democrática”, já que aqueles que permanecerem desempenharão um papel fundamental na valorização do capital – por exemplo, na recuperação das receitas do petróleo. Quanto mais a fábrica petroquímica está próxima do gasoduto que a alimenta, mais é provável que essa tendência se torne forte. Mas então, onde estará a fábrica?
Os trabalhadores “secundários” das indústrias de processo contínuo, por outro lado, prenunciam o tipo de trabalhadores necessários num processo de produção que controla melhor o espaço e o tempo de sua própria operação. Suas tarefas tornam-se incertas, ligadas as contingências da produção, contingências do fluxo. Dessa forma, essas tarefas só podem ser reguladas pela institucionalização da flutuação. Retorna-se, assim, as tradições mais grotescas da organização do trabalho demandando total disponibilidade por parte dos trabalhadores. As próprias tarefas constituiriam áreas alheias ao direito, áreas de legal subversão da lei.
Esse é apenas um paradigma, embora corra o risco de tornar-se o paradigma de toda indústria: a obsessão com a economia do tempo, do espaço e da velocidade faz a mobilidade do processo de produção o modelo de referência.
A crise da fábrica é fundamentalmente o resultado dessa corrida em direção à fluidez. A fábrica dentro de quatro paredes – uma fixação territorial – corre o risco de tornar-se incapaz de resistir a esta tendência. “Queimar a gordura” ao despedir funcionários também significa: possibilitar ainda mais a mobilidade. Nos movemos mais facilmente sem o excesso de gordura. Para além da metáfora fisiológica, a questão da mobilidade levanta questões que afetam a totalidade das relações sociais.
Um bom exemplo desse fenômeno é a fantasiosa utopia que está tomando os meios de comunicação. Cada vez mais as atividades, assim ouvimos, perdem a capacidade de afetar as coisas e o fluxo material, tornando-se apenas informação, notícia. O mesmo é verdadeiro para todo o setor de serviços. No centro do setor bancário ou na administração pública, o que é partilhado entre colegas, entre funcionários de médio e alto escalão, entre supervisores e subordinados, são todo tipo de informação. O que é interessante ver aqui é que as próprias relações sociais estão sendo manipuladas e, pela mesma razão, sua própria natureza está sendo transformada.
Quando um subordinado conversa com um chefe de setor, é verdade que a informação caminha em ambas as direções: informação, num sentido literal, numa direção; instruções, ordens e decisões, na outra. Entretanto é claro que esta conexão polariza a informação e que a informação se torna nada mais que um modo de existência e uma manifestação de uma relação hierárquica.
O crescimento das tecnologias de comunicação nas atividades produtivas é interessante nesse aspecto, pois torna possível outras formas de configuração espacial das relações assalariadas e, como resultado, as intensifica ao torná-las autônomas em relação aos limites que, até o momento, pareciam ter dificuldade de escapar. Nesse sentido, a crise da fábrica não é o fim da fábrica, mas o começo de uma “fabricação” social e uma época em que os assalariados evadem os limites espaciais transformando suas relações com o tempo.
Examinando mais uma vez a indústria petroquímica: o operador na sala de controle em frente aos monitores é submetido a regras de segurança em que provavelmente não tem outro sentido se não assegurar a responsabilidade em caso de acidente. Ainda assim, além do cumprimento das regras, o fato é que não há trabalho aqui exceto em caso de interrupção ou acidente. O trabalho é, portanto, aleatório, sendo somente a vigilância constante.
Do ponto de vista capitalista, o ideal seria, sem dúvida, que esse tempo de produção fosse estatutariamente tão aleatório quanto os incidentes que o motivam. Dado o estado atual da tecnologia, ainda é impossível o controle total de trabalhadores a tempo integral, isto é, desenvolver um completo domínio das contingências ao ponto de apenas recrutamentos ocasionais serem necessários. O desenvolvimento extraordinário do mercado de trabalho secundário, contudo, indica que esta tendência é real: não apenas na “periculosidade” do trabalho, mas em sua “aleatorização” – ou seja, em sua adaptação às próprias modalidades de automatização do processo produtivo. Claro, a situação é muito mais complicada no caso de outros tipos de setores industriais, particularmente naqueles que ainda não podem – e talvez nunca possam – funcionar num processo contínuo devido a complexidade e a diversidade das operações realizadas. Entretanto, admitindo o modelo “móvel” como referência, podemos pontuar certas tendências. Mais uma vez, “queimar as gorduras” é o que faz algo que antes era pouco móvel ou imóvel, justamente móvel. O destino do trabalhador está, portanto, vinculado a um futuro no qual apenas duas possibilidades existem: ser um controlador do fluxo ou um elemento do fluxo?
Do ponto de vista capitalista, o ideal seria sem dúvida que esse tempo de produção fosse estatutariamente tão aleatório quanto os incidentes que o motivam. Dado o estado atual da tecnologia, ainda é impossível o controle total de trabalhadores a tempo integral, isto é, desenvolver um completo domínio das contingências ao ponto de apenas recrutamentos ocasionais serem necessários. O desenvolvimento extraordinário do mercado de trabalho secundário, contudo, indica que esta tendência é real: não apenas na “periculosidade” do trabalho, mas em sua “aleatorização” – ou seja, em sua adaptação àsas próprias modalidades de automatização do processo produtivo. Claro, a situação é muito mais complicadas no caso de outros tipos de setores industriais, particularmente naqueles que ainda não podem – e talvez nunca possam – funcionar num processo contínuo devido a complexidade e a diversidade das operações realizadas. Entretanto, admitindo o modelo “móvel” como referência, podemos pontuar certas tendências. Mais uma vez, “queimar as gorduras” é o que faz algo que antes era pouco móvel ou imóvel, justamente móvel. O destino do trabalhador está, portanto, vinculado a um futuro no qual apenas duas possibilidades existem: ser um controlador do fluxo ou um elemento do fluxo?
Jean-Paul de Gaudemar
Autor de inúmeras obras e artigos sobre economia do trabalho, economia industrial e planejamento regional, entre as quais:“Mobilização Geral” (1979), “Ordem e Produção” (1982), “Dimensão Regional e Competitividade Internacional” (1989) e “Mobilidade Laboral e Acumulação de Capital” (2015). É membro de vários conselhos editoriais de revistas científicas, mas também da Associação Francesa de Ciências Econômicas.
Ricardo Menezes
Escritor e tradutor. Membro da Zero à esquerda.
↑1 | A versão em inglês que utilizamos para a presente tradução tem por título “The mobile factory”. Acreditamos que o tradutor se utilize da polissemia da palavra “mobile”, que em português pode adquirir os seguintes significados: portátil, móvel, instável e, mais recentemente, celular (N.T.) |
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