Restrições orçamentárias comprometem a estrutura de funcionamento de universidades e agências de fomento à pesquisa
O ano de 2020 ficará marcado em nossa história pela pandemia do coronavírus. Um vírus de alta complexidade com rápida dispersão e elevados índices de letalidade. A marcação temporal do ano de 2020 se dá dentro dos marcos da perplexidade da humanidade frente à novidade, o que coloca para ciência, que historicamente vêm cumprido o papel de universalizar e sintetizar todo o conhecimento produzido pela história do homem, a tarefa de conhecer o vírus e atuar sobre ele.
Tal tarefa do campo da ciência foi enfrentada, nos diversos países com diferentes níveis de estrutura de produção de conhecimento, em níveis de complexidade variados, que se refletem inclusive na política. Enquanto países da Europa e Ásia direcionam esforços científicos para a produção de vacinas contra a Covid-19, o Brasil , em uma constante que dura desde 2016, corta verbas essenciais para o funcionamento da produção de ciência.
A situação se agrava durante a gestão de Jair Bolsonaro (Sem Partido) no executivo federal, que já em seu plano de governo diz que a prioridade do seu mandato seria a educação básica em detrimento da educação superior, sendo a última de total responsabilidade da União. Tal direcionamento ideológico é interpretado como um golpe fatal à soberania nacional.
Já em 2019, em seu primeiro ano de mandato, o presidente bloqueou 30% das verbas para a educação, o que gerou protestos do setor em mais de 200 cidades brasileiras. No ano seguinte, anunciou ainda corte de R$4,2 bilhões em verbas no Ministério da Educação, fundamentais para o custeio das universidades brasileiras, prática política que se aprofundou na Lei Orçamentária Anual (LOA) para o ano de 2021.
Lei Orçamentária Anual 2021
Síntese de contribuições dos estados e municípios, assim como de ministérios que compõem o executivo federal, a LOA é elaborada e enviada pela presidência da república às casas do legislativo até o dia 31 de agosto, onde é discutida por comissões mistas de orçamento e retorna novamente ao presidente da república para sanção final e publicação no Diário Oficial da União.
Já no Projeto da Lei Orçamentária Anual (PLOA), o governo federal continua a cumprir seu compromisso com a restrição orçamentária para as universidades e para a educação brasileira. Com corte orçamentário de 18,2% previsto apenas para o Ministério da Educação, em relação ao orçamento de 2020, setores da educação já afirmavam a fragilidade do funcionamento das universidades e institutos federais no próximo ano com o orçamento divulgado.
A redução orçamentária percentual é ainda maior para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), que em 2020 recebeu cerca R$ 3,6 bilhões para seus gastos e, segundo a LOA aprovada pelo congresso nacional, recebe apenas R$ 2,7 bilhões para 2021, caracterizando um corte de cerca de 34% no valor absoluto para a pasta.
Agências de Fomento
É notável o decréscimo de investimento em pesquisa desde o ano de 2016, quando foi aprovada a então Emenda Constitucional 95, que sob a justificativa de regular as contas públicas, congela investimentos em áreas fundamentais por 20 anos. Com menos de 5 anos de vigência já é possível observar a queda brusca de investimento em áreas de pesquisa, por exemplo.
Tal constatação pode ser feita ao se analisar a verba destinada às agências de fomento à pesquisa no Brasil. Citando apenas o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mantidos pelo MCTI, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mantida pelo MEC, é possível se obter um quadro geral que conta com 60% da estrutura utilizada por pesquisadores em todo o território nacional.
Já na PLOA, o CNPq contava com menos da metade da verba necessária para a manutenção do conselho. Com um montante previsto para apenas R$ 560 milhões, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) escreve, em nota, que: “Não satisfeito, o presidente da República, maior patrocinador do negacionismo científico no país, propõe um decréscimo de 57% no orçamento total do CNPq (passando de 1,3 bi para 560 milhões), principal agência de fomento à ciência brasileira, ameaçando a paralisação e até mesmo encerramento de suas atividades, incluindo o pagamento de bolsas de estudos em 2021.”
A situação da FNDCT se encontra ainda mais fragilizada. Para além do corte de cerca de R$ 4,8 bilhões para 2021, o fundo sofreu recentemente com a Lei Complementar 177/2021, que modifica a Lei Complementar 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Segundo Mário Mariano Cardoso, em entrevista ao portal do Andes-SN, coordenador do Grupo de Trabalho de Ciência e Tecnologia (GT C&T) do ANDES-SN: “Ao fim, a Lei Complementar Nº 177, de 12 de janeiro de 2021, sancionada por Bolsonaro, teve vetos exatamente nos pontos que poderiam possibilitar a disponibilização de mais recursos para a Ciência e Tecnologia. A lógica privatista do governo Bolsonaro se materializou mais uma vez”, ou seja, a lei complementar abre caminhos para o direcionamento de fundo público para a iniciativa privada e dificulta seu uso por parte das instituições públicas.
Por sua vez, a Capes sofre um decréscimo orçamentário de cerca de 30%, perdendo pouco mais de R$ 1,2 bilhão em investimento, fundamental para o custeio de pesquisas e pagamento de bolsas a pesquisadores sob a tutela da coordenação.
Pesquisa brasileira e os pesquisadores
Todo esse quadro, ilustrado superficialmente pela situação das agências de fomento à pesquisa em 2021, coloca pesquisadores de todos os níveis de dedicação em alerta. Sem o montante necessário para dar continuidade à estrutura de produção de conhecimento genuinamente nacional, a insegurança com relação ao futuro de suas carreiras acadêmicas e da ciência e tecnologia no Brasil se torna rotina.
Para colocar em termos práticos e explorar melhor a questão do lugar dos pesquisadores dentro de todo o processo que envolve o corte de verbas nas universidades, entrevistamos Isabella Mendes Freitas. Jornalista de formação, Isabella se dedica atualmente à conclusão de seu doutorado em antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCSO/UFJF).
A pesquisadora chama atenção à dimensão histórica da restrição orçamentária no âmbito da pesquisa, apontando como, na prática, isso coloca cientistas e pesquisadores em geral em uma situação de fragilidade com relação aos seus projetos, visto que com poucos recursos, as universidades e agências de fomento à pesquisa não dão conta de manter uma estrutura que dê suporte à pesquisa acadêmica.
Isabella chama atenção para um aspecto decisivo na manutenção dessa estrutura: “São essas agências de pesquisa que, por exemplo, financiam a pesquisa com bolsas. Então, em um primeiro plano, mais imediato, isso impacta na sobrevivência do próprio pesquisador ou pesquisadora, já que muitos deles têm nas bolsas de pesquisa sua única fonte de renda”. Sendo assim, além das carreiras acadêmicas se tornarem cada vez menos atrativas, os pesquisadores já inseridos na carreira acadêmica perdem uma série de mecanismos para a manutenção de seus projetos.
“Outro elemento, é que o corte em investimento na pesquisa dificulta o acesso de pesquisadores e pesquisadoras às fontes de pesquisa e aos instrumentos de pesquisa. Então, por exemplo, acesso aos laboratórios, insumos, à uma bibliografia atualizada, acesso a grupos e pessoas a serem investigadas, no caso das ciências humanas. Dificulta a circulação do conhecimento, porque esse pesquisador ou pesquisadora não vai ter condições de ir a um congresso, aos encontros da área de pesquisa, onde você consegue compartilhar conhecimento e circular a produção científica, e além disso limita os objetos e os objetivos da pesquisa”, completa ainda.
Partindo do pressuposto de que a maior parte da verba que financia a pesquisa vem do fundo público, ao mesmo tempo que mais de 90% da ciência brasileira é produzida em universidades públicas, Isabella ainda coloca a questão da dependência do Brasil em relação a outros centros de pesquisa fora do território nacional. Sem a estrutura adequada para o desenvolvimento do trabalho acadêmico, perdemos autonomia enquanto nação no que tange à desenvolvimento de tecnologias e métodos de pesquisa próprios.
Fizemos a entrevista em formato de podcast, confira na íntegra.
A partir de outra experiência na carreira acadêmica, entrevistamos, por meio de conversa em áudio no aplicativo Whatsapp, Cian Barbosa, sociólogo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em psicologia pela mesma instituição. Cian levanta questões como a dificuldade, dentro de um processo que limita as possibilidades de construção de uma carreira acadêmica no Brasil, de se seguir com o trabalho de pesquisa.
Dentro de sua própria experiência pessoal, relata por exemplo “O meu processo de formação sempre foi atravessado pela tentativa de conciliar trabalho com estudo, como é pra muita gente. Com exceção de um ano mais ou menos, quando recebi uma bolsa de iniciação científica como pesquisador na Fiocruz, sempre tive que administrar o tempo com bicos e trabalhos intermitentes, os malditos freelas e também aqueles esquemas pra tirar uma grana durante os ‘rolés’, vendendo comida ou bebida, coisa comum na vida universitária. Também trabalhei por muito tempo como garçom e barman, experiências que vão fazer parte também da minha dissertação.”
É dentro desse marco que se desenvolvem (ou deixam de se desenvolver), pesquisadores de carreira, que procuram dedicar a vida à produção científica. Cian destaca ainda, caracterizando como um processo de violência objetiva, como as políticas constantes de restrição orçamentária às universidades e à pesquisa, moldam os sujeitos do processo de produção de conhecimento em nosso país. Segue a entrevista por inteiro:
Foto cedida pelo entrevistado
Daniel Diogo: Primeiramente gostaria que você falasse um pouco sobre sua trajetória acadêmica, por onde passou e maiores dificuldades, para uma melhor contextualização da entrevista.
Cian Barbosa: Bom, minha trajetória acadêmica começa como estudante vindo da rede pública, na Região dos Lagos, que entra na universidade durante o processo de expansão do ensino superior no começo da década passada. Eu cursei sociologia na Universidade Federal Fluminense e foi uma experiência enriquecedora do ponto de vista da formação acadêmica e das primeiras experiências políticas no movimento estudantil, num momento histórico que seguiria como marco pra vida nacional recente, que foi 2013.
O meu processo de formação sempre foi atravessado pela tentativa de conciliar trabalho com estudo, como é pra muita gente. Com exceção de um ano mais ou menos, quando recebi uma bolsa de iniciação científica como pesquisador na Fiocruz, sempre tive que administrar o tempo com bicos e trabalhos intermitentes, os malditos freelas e também aqueles esquemas pra tirar uma grana durante os “rolés”, vendendo comida ou bebida, coisa comum na vida universitária. Também trabalhei por muito tempo como garçom e barman, experiências que vão fazer parte também da minha dissertação.
DD: Pela sua experiência, qual a importância de agências de fomento como Capes e CNPq para o financiamento da pesquisa no Brasil, principalmente para os pesquisadores?
CB: Putz, é fundamental. Em todos os níveis, desde fomentos para graduandos até a nível de doutoramento, é impossível ter uma cultura científica e crítica sem políticas de fomento, especialmente se consideramos necessário não deixar a vida e produção intelectual do país apenas pra galera abastada. É uma grande questão também, porque muita gente não compreende a vida acadêmica como um trabalho, e não entende a bolsa de pesquisa como um salário. Isso se deve também por uma certa alienação constitutiva da produção científica, mas eu penso que também se deve a certo pensamento liberal que entende “educação” e “pós-graduação” como formas de investimento pessoal, apenas pro currículo próprio e a construção individual da carreira. Não compreendem a universidade pública e a pesquisa como espaço de desenvolvimento da ciência.
Claro que existem críticas a serem feitas, em especial a uma certa cobrança academicista por hiper-produtividade, ou certos critérios meritocráticos que podem atuar pra conservar redutos departamentais e “feudos” acadêmicos. Mas essas críticas, apesar de necessárias, não devem se confundir de forma alguma com a defesa do sucateamento da pesquisa no país. Existem coisas pra serem consideradas se quisermos desmontar uma lógica meritocrática que engessa a pesquisa e o fomento, mas só faz sentido pensar isso se efetivamente existem agencias de fomento e alguma verba possível, algo cada vez mais distante, desde cortes na era Dilma que apenas se agravam com o golpe e o atual governo, que nunca escondeu o seu desprezo pelas universidades, pela ciência e sua bandeira anti-intelectual.
DD: Em sua trajetória acadêmica, como enxerga o papel de agências de fomento a nível estadual, como é o caso da FAPERJ?
CB: Acho que são também fundamentais, e podem ser refúgios em momentos como o atual, nos estados com governadores que não abraçarem a onda neoliberal de desmonte da universidade e da pesquisa, o que é raridade. Alguns dos problemas citados anteriormente também existem na FAPERJ, por exemplo, que tem bolsas destinadas apenas para programas de pós com notas Capes acima de 5. Apesar de eu não discordar da necessidade de fomento para programas de excelência, como esperar que programas mais novos, ou seja, menos tradicionais, se desenvolvam sem fomento? Além disso, é preciso lembrar que dada a desigualdade regional no país, não se pode contar apenas com o nível estadual. Obviamente a escala federal deveria balancear de forma justa nesse quesito, mas é o caminho simetricamente oposto que se toma.
DD: Em sua dissertação de mestrado, são abordados temas como formas de violência subjetiva, inclusive com exemplos relativos à precarização do trabalho de pesquisa. Tendo isso em vista, de que forma você considera que fatores de violência subjetiva, como cortes de verba para a pesquisa influenciam na carreira profissional dos pesquisadores?
CB: Na minha dissertação eu falo de violências objetivas e subjetivas e, apesar da questão universitária não ser um objeto específico da pesquisa, ela aparece inclusive como parte de relatos pessoais. O que eu tento fazer é trabalhar com esses conceitos pra pensar, por exemplo, como casos de violência como assassinatos ou suicídios (que seriam esses sim “subjetivos”, já que perpetrados por sujeitos) são os principais índices observados, principais noticias em destaque, ao passo que políticas econômicas de magnitudes absurdas não são nem percebidas como um pano de fundo sistêmico desses episódios e sequer compreendidas, elas mesmas, como formas de violência. A violência objetiva se dividiria em duas então, essa própria violência sistêmica mencionada, que envolve tanto o movimento do grande capital, do mercado, quanto as subserviências do Estado ao mesmo, e outra, uma violência simbólica, própria da linguagem e da cultura.
Então pra começar a ter uma ideia de magnitude basta comparar como em 2017, no governo Temer, houveram cortes de investimento de 44% em relação ao ano anterior, que já era ruim, deixando um número de 3,2 bilhões como recurso para a ciência e tecnológica, enquanto o perdão de dívidas de bancos privados bateu a casa de 27 bilhões. Esses cortes são violências objetivas na verdade, e hoje se refletem como tal pro amplo espectro da sociedade brasileira especialmente num momento onde as ciências e a universidade se revelam não só fundamentais como urgentes, frente à pandemia. Claro, os pesquisadores seguem tirando leite de pedra, mas sempre em uma perspectiva decrescente. E aí a gente vê tanto a evasão de cérebros, dentre os que podem/conseguem sair do país, quanto o crescente sofrimento universitário, tanto na perspectiva dos mais jovens ingressantes nas graduações quanto daqueles que já investiram grande parte do seu tempo, da sua vida, em projetos de pesquisa que fazem parte de projetos de vida mesmo. Porque a carreira profissional de pesquisador no Brasil existe na verdade pra pouca gente ainda, pra muitos isso se confunde com o esforço de praticamente bancar suas próprias pesquisas. Ou seja, a gente tem um cenário onde existe um verdadeiro mal-estar acadêmico e, apesar dele não se resumir aos cortes e questões econômicas, esse é um grande fator, talvez o principal no momento. A gente tem um “legado” de abertura da universidade pra pessoas que décadas atrás teriam muito menos condições de adentrarem nesse espaço, mas ao mesmo tempo um decaimento brutal da expectativa dessas pessoas com a possibilidade de continuar seus projetos e planos de vida.
A partir dos relatos dos pesquisadores e dos dados informados inicialmente, é possível se desenhar um quadro um tanto desanimador para a ciência brasileira. Com sua estrutura em desmonte constante e um plano de carreira pouco convidativo, o Brasil sofre do fenômeno da “fuga de cérebros”. Sem registros em dados oficiais, mas embasado em uma série de relatos de pesquisadores que encontraram no exterior uma oportunidade de desenvolverem seus projetos de pesquisa, tal fenômeno priva o Brasil de uma produção própria de ciência.
O desenvolvimento nacional e até a crise do coronavírus, nesse cenário, encontram-se extremamente comprometidos. O que coloca, como bem ilustrou Isabella em seu relato, as agências de fomento e entidades da sociedade civil ligadas ao desenvolvimento de ciência no Brasil, em posição de defesa, ao mesmo tempo que instiga a ação política.