artestandupcomedy

Vivemos em tempos em que a comédia – e especialmente a comédia – é muitas vezes ameaçada pela direita e pela esquerda. Talvez ainda mais pela esquerda: como Angela Nagle apontou, temos testemunhado ultimamente uma giro curioso em que a nova direita populista está assumindo o lado da transgressão e da rebelião, tradicionalmente associadas a esquerda: ela fala em quebrar tabus (de fala, mas também de conduta), ela ousa falar francamente, dizer coisas proibidas, desafiar as estruturas estabelecidas (incluindo a mídia) e denunciando as “elites”. Mesmo quando no poder, a direita continua com sua retórica “dissidente” de oposição e de corajosa transgressão (por exemplo, contra instituições europeias, ou contra o “Estado profundo”[1]). Essa mudança geral do simples conservadorismo para a transgressão pela direta tem também seus momentos cômicos. Por exemplo, mesmo a desconsideração das normas mais benignas da civilidade pode ser vista como uma transgressão corajosa. Insulto alguém e, então, afirmo que estou defendendo minha liberdade de expressão. A transgressão parece ser “sexy”, mesmo que signifique simplesmente não mais cumprimentar seu vizinho, porque “Quem inventou essas regras estúpidas e por que devo obedecê-las?” Nessa constelação e após desistir das ideias mais radicais de justiça social, a esquerda paradoxalmente acabou no lado conservador: defendendo o Estado de Direito, conservando o que temos, e respondendo a contradições, excessos, e mesmo catástrofes geradas pelo atual sistema socioeconômico (crises, colapsos ambientais iminentes, guerras, enormes desigualdades econômicas, corrupção, a ascensão das ideias neo-fascistas) através da introdução de cada vez mais regras, regulações e ajustes que supostamente contêm as “anormalidades” represadas. Esse crescimento – e corpo muitas vezes impenetrável de regras e sub-regras, que são facilmente desconsideradas pelos grandes jogadores, mas tende a complicar drasticamente a vida dos players e indivíduos menores – inclui regras e injunções “culturais” que se tornaram nas décadas passadas o principal campo de batalha entre a “esquerda” e a “direita”, particularmente nos Estados Unidos. Quando a questão de obedecer e apoiar ou não as regras do politicamente correto (e de políticas identitárias) se torna o principal e exclusivo campo da luta social, então algo deu muito errado. Ou muito certo, para a direita, certamente. A direita tem ganhado não simplesmente porque mais e mais as pessoas aderem às suas ideias, mas porque o elemento que faz a diferença (entre direita e esquerda) mudou e tornou-se completamente redefinido como uma guerra cultural.

Relacionado a isso, mas mais específico em seu funcionamento e seu papel ideológico está a ênfase sobre o afeto, vitimização, vulnerabilidade, sentimentos feridos, ofensa, e o recurso às autoridades sociais para nos proteger disso. Um tipo de “infantilização” massiva das nossas sociedades. Somos encorajados a nos comportarmos como crianças: a agir principalmente sobre como nos “sentimos”, a demandar – e depender – proteção constante contra o “mundo exterior”, seus perigos e lutas, ou simplesmente contra o mundo dos outros, outros seres humanos.

Importantes movimentos sociais (como o #MeToo) são frequentemente canalizados exclusivamente para a lógica do “juntar-se ao clube” (das vítimas) e demandando que o Outro (diferentes instituições sociais e medidas preventivas) nos proteja da vilania do poder, ao contrário de capacitar nosso empoderamento e nos tornar agentes ativos de luta e mudança social. A valorização da afetividade e dos sentimentos aparece no exato momento em que alguns problemas – injustiça, para dizer – exigem uma revisão mais radical e sistêmica a respeito de suas causas e perpetuação. A valorização social dos afetos significa basicamente que pagamos ao queixoso com seu próprio dinheiro: Ah, mas seus sentimentos são tão preciosos, você é tão precioso! Quando mais você sente, mais precioso você é. Essa é a uma típica manobra neoliberal, que transforma até nossas experiências traumáticas em possível capital social. Se pudermos capitalizar nossos afetos, limitaremos nossos protestos a declarações desses afetos – ou seja, declarações de sofrimento e dor. Não estou dizendo que nosso sofrimento não deve ser expressado e comentado, mas que isso não deveria “congelar” o sujeito na figura da vítima. A revolta deve ser precisamente sobre recusar ser uma vítima, rejeitando essa posição em todos os níveis possíveis.

É muito óbvio que essa mudança para os sentimentos, afetos, sensibilidade e sua consideração/proteção (o oposto de estarem equipados para lutar, retrucar e lidar com as coisas) é um meio não amistoso para a comédia (e piadas). Em tempos quando precisamos de alertas para poder ler certas passagens de Shakespeare sem nos machucar, a comédia tem pouco espaço para respirar.

Conheci uma garota uma vez que se tornou obcecada com a ideia de evitar todos os possíveis alimentos ruins e não saudáveis, e estabelecer uma perfeita harmonia em seu corpo. Em certo ponto, ela estava me dizendo quão perto ele chegou de atingir esse objetivo. Como prova, ela me disse que se ela comer apenas um pequeno pedaço de chocolate, ela vomita. Seu corpo encontrou a harmonia perfeita e é agora capaz de detectar e imediatamente rejeitar o menor elemento estranho ou ruim.

E podemos perguntar, com Nietzsche, do que se trata a “boa saúde”? Trata-se de ser capaz de digerir e lidar com alguma soma de comida “ruim” e outros elementos “estranhos”, ou se trata de colapsar e vomitar violentamente ao menor sinal de algo “ruim” ou “estranho”?

A comédia está claramente ao lado da primeira opção e é de fato um fenômeno interessante a esse respeito: ela demanda muito sentimento e sensibilidade quando se trata de explorar as estruturas sociais e detecta seus paradoxos, contradições e pontos nevrálgicos, mas também exige algum grau de fraqueza e insensibilidade quando apresenta esses pontos em sua forma (cômica) específica.

Também, algum grau de blasfêmia e uma possível ofensa, de “cruzar a linha”, são elementos quase constitutivos da comédia (e das piadas). Não apenas porque a comédia favorece transgressão, mas porque ela essencialmente funciona com o que está no outro lado: com impulsos e ideias que tendemos a ter, mas não nos permitimos expressá-las ou simplesmente não (queremos) pensar a respeito. E podemos dizer que, de um ponto de vista cívico e civilizado, muitas vezes é benéfico que não nos permitimos a expressar esses impulsos. Mas o que é, ou deveria ser benéfico do ponto de vista cívico, é que não apenas os reprimimos, mas os confrontamos e lidamos com eles através de outros meios que não a repressão. O que está acontecendo a esse respeito é uma gigantesca repressão, acompanhado pelo necessário retorno do reprimido. (E a comédia é a forma social que permite por outros meios que lidemos com esses impulsos).

No relato freudiano clássico, a maioria das piadas (as tão faladas piadas tendenciosas) trabalham com e por causa de nossa resistência. Há algo em nós mesmos que resiste ao conteúdo, ou ao objetivo da piada – se expressa de forma clara e não-cômica. A técnica de uma piada contorna essa resistência ou a rompe completamente, graças a um prazer adicional e inesperado que deriva dessa própria técnica. A oposição não é apenas simplesmente entre uma forma direta e uma indireta de dizer algo (essa, ao contrário, constitui a forma da cortesia): uma piada diz coisas muito diretamente, mas por meios inesperados e sem um padrão. Sua técnica permite ir direto ao ponto nos surpreendendo, nos apanhando desprevenidos.

Mas vamos voltar um momento para a questão da resistência. Podemos complicar essa questão ao distinguir entre dois tipos de resistência. Há uma configuração simples que poderia ser descrita da seguinte forma: eu (mais ou menos secretamente) concordo com o argumento da piada, mas resisto a isso porque regras “culturais” externas (“não se deve dizer tais coisas em voz alta”). E então, quando alguém encontra uma forma ingênua de dizer isso posso achar graça e rir.

Em seguida, há outra forma de resistência que é mais interessante porque resisto ao próprio conteúdo: é o conteúdo, e não apenas sua expressão, que eu acho perturbador ou inadmissível. Aqui estamos lidando usualmente com a configuração onde algo como a repressão (no exato sentido freudiano de Verdrängung) concernente a um conteúdo específico de nosso desejo ocorre. Aqui a configuração se altera, não é mais o que “eu gostaria de dizer, mas normas culturais, considerações de respeito, polidez, etc. me impedem de fazê-lo.” Não, eu não gostaria de dizer ou ouvir, nesse caso. Quando ocorre a repressão (de um certo impulso específico do conteúdo), isso não implica que eu queira secretamente fazer isso, apenas não o admito; isso, ao contrário, significa que estou profundamente repugnado por isso (tenho fortes sentimentos sobre a questão, ou contra ela). Há um velho ditado segundo o qual diz que os mais zelosos, fervorosos e fanáticos anti-gays são “homossexuais recalcados”. Provavelmente isso é verdade, pelo menos alguns casos, mas não significa que eles sejam secretamente gays, mas apenas não admitirão isso em público. Não, eles genuinamente odeiam esse impulso em si mesmos, motivo pelo qual tentam reagir tão violentamente quando eles percebem isso nos outros. Não se trata apenas da duplicidade (público/privado), trata-se do fato de que nossos sentimentos mais autênticos podem já envolver alguma forma de repressão que se manifesta precisamente em nossos sentimentos espontâneos, imediatos.

Agora, novamente, isso não envolve uma postura culturalmente e moralmente clara e inequívoca. A estrutura de algumas outras reações de repulsão (outras que não sejam homofóbica), reações que achamos boas e dignas, não são menos “patológicas” e tem uma origem similar. Por exemplo, é seguindo o mesmo mecanismo que encontramos o canibalismo e a tortura, repulsivos e profundamente perturbador. Porque esses impulsos não são simplesmente desconhecidos para nós, mas tem se tornam desconhecidos, “estranhos” no processo de lidar com eles de uma forma “civilizada” (na maioria das vezes mediante a repressão).

Conservadores tradicionais e moralistas odiavam Freud por ele revelar e indicar uma fonte não-moral de toda moralidade, que supostamente levaria à completa relativização e abandono desta última. No entanto, Freud pontuou que essa fonte da moralidade era muito mais poderosa e resistente do que sua fundação em princípios abstratos, no Bem (divino) ou na “razão pura”. A afirmação que a fonte da moralidade não é em si mesma “moral” não solapa sua eficiência, mas ao contrário, a explica. Isso permitiu Freud dizer que “o homem normal não é apenas muito mais imoral do que ele acredita, mas também muito mais moral do que ele sabe.”[2] Moralidade ou consciência não são em si mesmas plenamente conscientes. Além disso, a moralidade e a censura moral não são simplesmente realizadas sobre o id, mas em cumplicidade com ele – como resultado os afetos da repulsão ou atração “genuína” envolvidos em diferentes posturas morais. (O superego, ou consciência, se alimenta das pulsões renunciadas/reprimidas e de sua pressão ou “energia”.) Então, e colocando isso de forma simplificada, podemos dizer que de um ponto de vista social, existem muitas “boas repressões”, no sentido de que podem ser maneiras muito eficientes e imediatas de lidar com muitos impulsos antissociais (ou socialmente destrutivos).

Contudo, como Freud insistia, a moralidade baseada sobre repressão tem um preço.  Esse preço pode ser visto e sentido nos sintomas, ou, mais geralmente, no que ele denominou das Unbehagen in der Kultur (Mal-estar na civilização). Quanto mais progredimos em nossa forma civilizada, e quando mais moralmente sofisticados ficamos, mas experenciamos o peso desse mal-estar.[3] Essa posição freudiana foi e ainda é percebida, algumas vezes, como implicando que a liberação viria com o abandono de toda moralidade; ou como implicando que deveríamos retornar a algum estágio mais simples e espontâneo das interações sociais. No entanto, o argumento de Freud era diferente, e Lacan o entendeu sob a forma de uma pergunta explícita, simples, mas difícil: poderia haver uma moral ou ética, não baseada e alimentada sobre a repressão? E se a resposta for sim, o que seria essa ética, como funcionaria? Como prática clínica, a psicanálise deve percorrer um longo caminho para levantar ou desmantelar o mecanismo de repressão. Ficaremos imorais como resultado disso? Sim e não. Certamente não ficaremos sem restrições a respeito de nossos impulsos e desafiamos os outros por simplesmente segui-los. Lidaríamos com eles por outros meios que não da repressão (a sublimação, por exemplo). E precisamos lidar com eles, porque esses impulsos são (e permanecem) contraditórios e conflitantes em si mesmos, e não simplesmente em vista ou por causa das normas culturais e sociais que os inibem. Em outras palavras, não é “levantando” ou abandonando nossas regulações culturais que poderemos esperar que o mal-estar, que o descontentamento simplesmente desapareça e que a vida se torne harmônica. A cultura é a solução para as contradições inerentes dos impulsos, mas é também uma solução que produz novas contradições e novos níveis de problemas. E ela não existe simplesmente em oposição aos impulsos, mas em cumplicidade com eles.

Agora, se olharmos dessa perspectiva para nosso atual panorama social e político, o que vemos?

A principal corrente da esquerda (a tão chamada “cultural” ou “esquerda-liberal”) na maioria das vezes insiste que o mal-estar na Kultur apenas pode ser gerenciado por mais Kultur, por uma rede cada vez mais densa de regras e regulamentações e que qualquer problema que ocorrer pode ser resolvido ou tratado por meio da instituição de outra regra (ainda mais específica). (Isso conduz, entre outras coisas, à exclusão de todas as manifestações de prazer e desejo do espaço social, porque o prazer e o desejo, como tais, já envolvem uma transgressão, uma invasão no espaço do outro).

A direita “populista”, por outro lado, opera por meios de realizar um corte entre dois tipos de leis/regras: entre, de um lado, o que afirmam ser leis eternas, naturais (ou divinas) – como tal corporificada, por exemplo, em nossa “tradição cristã”, identidade nacional e “sexualidade natural”; e, por outro lado, as leis meramente (multi-)“culturais” que são todas “artificiais” e inibem toda nossa liberdade e espontaneidade natural. Em outras palavras, a direita isenta algumas leis como sagradas e desvia toda a rebelião e descontentamento popular produzidos pela manutenção da repressão na qual essas leis também se baseiam, em contraposição a outras leis que considera como “culturais”. Isso explica o deslumbrante investimento excedente que claramente existe para a direita quando ela começa a atacar certas regras de correção política. Sou a primeira a dizer que a correção política é uma estratégia bastante insuficiente e, na verdade, “politicamente incorreta”, porque evita a fonte do problema e substitui a tarefa de lidar com ele por regras adicionais. Mas o investimento excedente com o qual a direita recebe algumas dessas regras claramente indica que existe muito mais acontecendo aqui – uma genuína Verschiebung freudiana deslocada.

O que ambas estratégias têm em comum é que elas ignoram ou esquecem completamente a difícil e irritante questão da repressão; elas não querem saber nada sobre o que chamamos “causas sistêmicas” do problema. A esquerda “centrista” está ocupada atendendo os sintomas, usando os sinais e expressões de descontentamento. A estratégia da direita, entretanto, prova ser muito mais eficiente, porque – para colocar de forma simples – essa estratégia permite às pessoas mostrarem seu descontentamento e rebelar-se em certas regiões, sem diminuir os níveis de repressão e seu custo envolvido no sustento das leis “fundamentais” que definem sua visão de mundo e sua economia de mundo. Além disso, pelo acréscimo do número e da complexidade das regras e sub-regras, a esquerda liberal tende a aumentar os níveis de repressão, Verdrängung, e a direita lucra diretamente com esse aumento, canalizando a saída da pressão na direção que mais lhe convém em circunstâncias concretas. Isso é verdade nos níveis “pessoal” e “social”, que são profundamente conectados de qualquer maneira.

É aqui, nessa configuração, que a importância política da comédia surge hoje mesmo quando seu conteúdo não tem nada para ver com política. Obviamente, isso não significa dizer que a comédia possa substituir a política. A afirmação é simplesmente que a comédia é uma forma cultural que pode operar sobre a repressão, fazer algo para e com ela, e que é também aí que a dimensão política reside. “Comédia” é, obviamente, um termo muito geral. As coisas que listamos como comédia (todas as coisas que nos faz rir) pode ter efeitos políticos muito diferentes, incluindo efeitos muito reacionários. Mas o fato é que a comédia tem à sua disposição técnicas que, combinadas com o pensamento e com o talento certo, podem nos ajudar a lidar com esses impulsos mediante outros meios que não a repressão e, desse jeito, torna-los úteis como alimento e combustível inconsciente de nossas ações. Comédia pode nos atrair para fora de nossa cadeira (moral) bem consolidada, nos expondo a considerações e ideia que nós normalmente tenderíamos a resistir. Nos atrai para fora desse conforto não por meio de um despertar de consciência, mas através de um (tipo diferente de) de prazer. (Freud comparou essa Vorlust ao efeito da intoxicação, ao álcool). Podemos também dizer que isso nos convida a pensar de uma forma a fazer-nos descobrir o pensar como possivelmente prazeroso, como uma fruição. Nietzsche cunhou a expressão “gaia ciência” muito conhecida e popular com um dos títulos de seus livros (die Fröhliche Wissenschaft), mas o termo originário da tradição poética prosadora de Provençal (gai saber). Lacan escreveu extensivamente sobre essa tradição no contexto da “sublimação” (já definida por Freud como “satisfação da pulsão sem repressão”), e invoca um possível potencial emancipatório da “gaia ciência”. Penso que a boa comédia é algo muito parecido com a gaia ciência.

Tem sido arguido – por mim e outros – que a comédia pode ter efeitos reacionários e emancipatórios, ela pode desarmar o poder e consolidá-lo, empoderar as pessoas ou apenas as entreter e divertir. Essa dupla forma de comédia tem pouco a fazer com as escolhas e preferência políticas a priori do comediante (esse último prefere seguir uma certa maneira de entender e de fazer comédia). Na última parte de minha fala, gostaria de propor alguns pontos para nos ajudar a navegar nesta área muitas vezes confusa dessa distinção, com a ajuda do que disse até agora.

Como os termos que podem nomear essas diferenças, proponho “sit back comedy” e “stand up comedy”. Ambos os termos são entendidos como metáforas, e não se referem a posturas nas quais alguém faz comédia (sentado ou de pé), nem – no caso da “stand up” – simplesmente se referem ao estilo de performasse conhecido como stand-up. A principal diferença entre eles consiste no que eles fazem, ou não, para e com a repressão individual e social que alimenta qualquer “estado de coisas” atual. Eles os atacam, deslocam, desmantelam ou na maioria das vezes os usam e perpetuam?

“Sit back comedy” tipicamente lucra sobre nossa repressão, além de nos consolidar em nossas crenças e, mais importante, em nossa retidão, nossa superioridade (moral ou intelectual). Isso pode envolver fortes elementos de ironia, entendidos como construindo e jogando com a linha entre nós (aqueles que entendem e estão do lado certo) e os outros (aqueles que não entendem). James Harvey esclareceu esse ponto:

 

Onde uma piada de sucesso o conecta a uma audiência, uma ironia pode apenas fazer o oposto. Na maior parte das vezes, uma audiência ‘entende’ uma piada ou ela fica sem graça, como dizemos. Mas a ironia, pode apenas confirmar a si mesma, pode parecer mais rico inicialmente, se metade da audiência sentir falta dela.[4]

 

Isso pode ser do interesse do público presente, mas também pode se referir aos outros “lá fora” que não (ou não) o entenderam; no entanto, esse lugar do “outro (estúpido)” é estruturalmente construindo na ironia e na diferenciação deslizante que isso implica.

Não estou simplesmente identificando “sit back comedy” com a ironia, apenas sugerindo que ela, muitas vezes, contém esse elemento particular de ironia. Se você está do lado da ironia, então você nunca pode estar no lado errado, são sempre os outros, os “crentes ingênuos”, os “tolos” que estão errados.

Por exemplo, eu gostaria muito de qualificar o que Stephen Colbert fez no The Late Show em relação a Trump como “sit back comedy” (mesmo quando ele se levanta para fazê-la): você enche a audiência com votos democratas e então faz piadas de Trump, semana após semana, com piadas mais ou menos engraçadas. Não há riscos tomados ali; você brinca contra o pano de fundo do consenso geral (que cuida para nunca perturbar), rindo da estupidez dos outros. O efeito disso é amplamente conservador, mesmo se o teor for progressista. Desfrutamos do “nosso Trump”, assim como gostamos de não ser Trump, estar do lado certo da divisão, estando certo. (Eu imagino que esta pode ser uma boa definição da corrente majoritária da esquerda de hoje: tudo é sobre estar certo, com toda ambiguidade que esse modo de pôr ter em inglês. Então eu estou tentada a perguntar: por que não estar errado para uma mudança?) Poucos minutos de ridicularização de Trump por dia parece ser o suficiente para preencher nossa agenda política ou nosso dever.

Não há nenhum questionamento (cômico) real sobre o que faz Trump possível e o que o sustenta, ao contrário; ele é apresentado como o único e principal problema. Sem ele a América seria grande novamente, para pegar emprestado seu próprio slogan.

O que chamo de “stand up comedy” não se encaixa ao “stand-up” enquanto performance, mas ela contém alguns de seus elementos. Para começar: você não realiza a performance em um ambiente controlado ou dirige seu ato àqueles que já pensam como você e compartilham suas visões e convicções. Claramente, você se prepara bem para seu ato, mas você não o executa simplesmente, trabalha no seu roteiro. Você faz isso, em parte, respondendo ao comportamento da audiência e não necessariamente por jogar simplesmente em suas mãos. Sobre isso, quero dizer: digamos que sua piada tenha uma opinião que não vai muito bem com o público. Eu imagino que você, então, tem a chance entre abandonar esse ponto e passar para outra coisa, ou aumentar as apostas, insistindo e encontrando uma maneira mais engraçada de dizê-lo, que convence o público a assumir o ponto e a considerá-lo.

Convencer a audiência, “conquistando” (também lá, onde isso ainda não é “seu”), tentando não deixar ninguém fora, é um elemento muito importante da “stand up comedy”, que envolve tanto assumir riscos e engajar na arte do convencimento. Mas sobre tudo, o elemento crucial que chamo de “stand up comedy” é fazer a audiência levantar-se (em suas cabeças), caminhar por aí e habitar em espaços fora de sua área consolidada e estabelecer bem as divisas. E gostar disso.

Deixe-me concluir com um exemplo, que é interessante para meu objetivo, porque inclui ambas as comédias “stand up” e “sit back” e, efetivamente, usa a comédia cultural “sit back” para trazer ao “stand-up” e com isso as questões das causas sistêmicas (da repressão).

O que tenho em mente é um dos episódios mais famosos de Who is America de Sacha Baron Cohen, chamado “Building a Mosque in Kingman Arizona”. Cohen (em uma de seus personagens) discursa na assembleia da população local em Kingman Arizona. Ele primeiro os questiona se eles querem ver um “enorme crescimento econômico” na cidade, oriundo de um investimento de 385 milhões de dólares. Todos disseram sim. Então, ele disse sobre do que o investimento se trata – a cidade deles foi escolhida para a construção de uma “nova mesquita moderna” – não apenas uma mesquita, mas a maior mesquita fora do Oriente Médio. O entusiasmo das pessoas desapareceu rapidamente, eles começaram a protestar e proferir todas formas de objeções. Das mais razoáveis (porque eles iriam necessitar de uma mesquita como essa?) para as várias versões islamofóbicas de objeções (mesquitas é igual a terrorismo). À primeira vista, o episódio pode parecer simplesmente como uma tentativa de Cohen de provocar uma exibição de islamafobia coletiva em uma pequena cidade de Arizona. Mas não acredito que essa agenda “liberal” (nos sentimos bem rindo dos moradores preconceituosos) esgote o interesse desse episódio. Penso que a “islamofobia” bastante previsível está sendo usada aqui como meio de expor (ou ao menos apontar) uma mais geral, sutil e maliciosas chantagens liberais. A forma que Cohen apresenta esse projeto é cunhado sobre uma clássica manipulação “liberal”: se você quer que as pessoas aceitem algo, digamos A, você introduz A em um dado pano de fundo em que eles têm que escolher entre diferentes versões de A. Você não pergunta: “Você quer A ou não?” Você pergunta: “Você quer um A verde, azul ou alguma outra versão possível? Seja o que você escolher, você é livre para escolher”. E no momento que começam a considerar escolhas diferentes, pessoas são capturadas, elas já aceitaram A.

Então, em seu discurso, Cohen começa por dizer à população local que elas “têm que escolher entre dois diferentes projetos” da mesquita, o projeto 1 e o projeto 2, que ele os mostrou por slides. Então ele questiona: “então, quem escolhe o primeiro projeto?” Ninguém, todos protestaram, e ele imediatamente concluiu: “Então, vocês todos escolhem o segundo.” As pessoas estão ultrajadas, elas não queriam nenhum deles, disseram. Cohen continuou com sua estratégia corporativa de vendedor: “Deixe-me perguntar a vocês uma coisa. Vocês não gostam dessa construção: então contem-me sobre sua mesquita dos sonhos.” Em outros termos: apenas manter as alternativas dentro de escolhas que eu estou impondo a vocês. Nesse ponto, um dos habitantes interrompe o debate gritando energicamente: “Não existe mesquita dos sonhos!” Devemos pensar duas vezes antes de simplesmente destituir essa resposta por seu preconceito “islamofóbico”, e tomá-la como modelo do que deve ser nossa principal resposta para todas essas modalidades de situações chantagistas de “escolhas livres”.

Em outras palavras, talvez devemos complicar um pouco a causalidade com que usualmente “explicamos” essas questões, e dizer: o homem não está dizendo isso porque é um islamofóbico, ele torna-se “islamofóbico” (ou homofóbico, ou qualquer-coisa-fóbico) porque sujeitado a esse tipo de chantagem sutil e invisível e suas consequências por décadas.

A frustração acumulada, ainda que impotente, gerada por essa rede de escolhas liberais aparentemente neutra está sendo canalizada, na política populista contemporânea – com todo o suporte do lado econômico dessa chantagem – contra grupos designados de inimigos (muçulmanos, trabalhadores imigrantes…), precisamente para não ser direcionado contra suas causas sistêmicas.

O episódio de “Who is America” é muito engenhoso porque ele gerencia para expor, ao mesmo tempo, o preconceito islamofóbico e a rede de chantagens liberal-capitalista. Ele usa um para expor o outro, e vice-versa.


Alenka Zupančič é filósofa e cientista social. Ela trabalha como pesquisadora orientadora no Instituto de Filosofia, Centro de Pesquisa Científica da Academia de Ciência da Eslovênia. Ela também é professora na European Graduate School na Suíça. Notável por seu trabalho que interseciona filosofia e psicanálise, ela é autora de inúmeros artigos e livros, incluindo Ethics of the Real: Kant and Lacan; The Shortest Shadow: Nietzsche’s Philosophy of the Two; Why Psychoanalysis: Three Interventions; The Odd One In: On Comedy; e, mais recentemente, What is Sex?


[1] O conceito de Deep State busca expressar a ideia de um “Estado dentro do Estado”, ou seja, frações da burocracia estatal que operam à revelia de quer que esteja do poder.

[2] Sigmund Freud, ‘The Ego and the Id’, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, ed. James Stachey, Hoharth Press, London 1953-1974, vol. 19, p.52.

[3] Alterando da autoridade externa para a constituição do Superego (consciência): no caso de uma simples autoridade externa ela renuncia à sua satisfação (das pulsões) para evitar punições. “Se alguém tem executado sua renúncia, alguém está, ou estava, renunciar com a autoridade e nenhum sentido de culpa deve permanecer. Mas com o medo do superego a situação é diferente. Aqui, a renúncia instintual não é suficiente para o desejo persistir e não pode ser conciliado com o superego. Então, na maldade da renúncia que tem sido feita, um senso de culpa surge. […] a renúncia instintual agora sem demora tem um efeito completamente liberalizado; consciência virtuosa é sem demora gratificada com uma segurança de amor. Uma ameaça externa de infelicidade – perda de amor e punição por parte da autoridade externa – foram substituídos por uma infelicidade interna permanente, para a tensão do senso de culpa.” S. Freud, SE 21, p. 127-128.

[4] James Harvey: Romantic Comedy in Hollywood. From Lubitsch to Sturges, New York: Da capo Press, 1998, p. 672.

[5] James Harvey: Romantic Comedy in Hollywood. From Lubitsch to Sturges, New York: Da capo Press, 1998, p. 672.


Autor: Alenka Zupančič

Publicado:  Maio de 2019

Original: Link aqui


Tradução: Moisés João Rech


Revisão: Ricardo Menezes e Leonardo Mendonça

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